domingo, 29 de maio de 2022

Onze anos

Duas quadras e meia de casa e Lili já estava no portão do Ginásio. Iniciava uma nova etapa com a chegada da quinta série e completava, por fim, seus cinco anos de vida urbana. O largo pátio calçado da entrada da escola era um universo a ser percorrido e com certeza seria explorado nas brincadeiras com as colegas. Pés de Pinus ao lado do mastro das bandeiras guardavam aquele espaço todo ladrilhado e indicava o quanto a construção era grande. Dois blocos grandes pintados de um cor clara em contraste com a cor vermelho escuro das vigas definiam a arquitetura e compunham o prédio da escola, que ocupava grande parte do quarteirão, contornando a esquina da Cipriano D'ávila com a Carapé. 

Em dias de sol, formávamos fileiras por turma e por ordem da série que estávamos cursando. As cortinas de grade eram erguidas ao máximo e nos posicionávamos bem em frente às duas portas largas da entrada, A terceira grade ficava constantemente fechada, todas desciam de um caixa desde o alto do teto. Na parte superior, um certo final de tarde, um colega dado às traquinagens pendurou ali minha famosa bolsa de macramê, meu orgulho de moda. Lili havia deixado de usar a pasta preta de guardar os cadernos, para usar algo mais despojado com o qual pudesse identificar sua personalidade, uma vez que os uniformes eram obrigatórios, algo nela deveria fazer a diferença. Fui salva pelo diretor que a retirou com o gancho de ferro de puxar e desenrolar as pesadas cortinas de ferro.

Havia dois modos de acessar a escola, através da entrada principal ou pelo pátio na parte mais baixa do terreno. Quando chovia a fila era organizada na parte coberta, no subsolo de um dos blocos do prédio, por onde podíamos chegar usando a escada junto ao declive do terreno, na altura na qual se alinhavam os Pinus e os mastros das bandeiras. No saguão da entrada principal, de um lado ficavam as salas da direção e da secretaria, e do outro, os murais com os avisos. Ao fundo, destacava-se solene a estátua de São Vicente Ferrer, colocada sobre um púlpito preso na parede. Ela separava os dois corredores de acesso a cada um daqueles blocos de salas: as aulas dos pequenos e as aulas dos grandes. O jeito sereno do santo se mostrava ainda mais resplandecente com a luz da lâmpada no centro do teto, que dava diretamente sobre ele. O santo padroeiro da cidade tinha um lugar de destaque, parecia nos receber e também nos abençoar lá do alto, logo acima de dois grandes vasos carregados de lírios da paz, enfeitando aquela entrada interna do novo colégio de Lili. 

Em uma grande faxina na escola, dizem que o santo foi cuidadosamente banhado, para retirada do pó e fuligem acumulados. A coordenação de tal empreitada foi da tia Jane, professora da escola e, por algum tempo, diretora. Coisa certa que uma limpeza de tal envergadura era ato de capricho comandado por ela. Desde este acontecimento, criou-se uma falação na cidade de que o tal banho inusitado dado no santo pelas professoras solteiras havia surtido um grande efeito, pois elas teriam, segundo as línguas afiadas da cidade, desencalhado. E elas eram muitas, o banho foi tarefa coletiva das mulheres. Para Lili, o tal desencalhar soava como se as professoras estivessem sem saída, a causa e efeito do banho no santo era visto como um milagre. Todo o excesso de limpeza e zelo das professoras com o santo lhes custou a piada do "desencalhar" até a última delas se casar, inclusive a tia Jane que se casou tempos depois e foi-se embora para outra cidade.

A estranha e primeira novidade de estudar no ginásio, como a escola era popularmente chamada, é que nos separaram dos meninos. Duas quintas séries, porta de sala lado a lado, o que nos ajudou a não perder a comunicação direta ali mesmo nos corredores, onde a gente conversava, dava risada, burlava uns com os outros. O grupo de meninas cresceu com novas colegas vindas da escola Coqueiros e da escola do Cavajuretã: Roselei, Sônia, Corina, Jussimara, Jeane entre outras. Separadas dos meninos nos fortalecemos, os segredos aumentaram, os interesses foram ficando comuns e, cada vez mais, nossa conversa se voltava para interesses de namoro, sobre beijos e tipos de beijos, trocar pôster de artistas, falar sobre a música preferida, olhar figurino de roupas nas revistas, comprar brilho labial com formato e gosto de morango no catálogo da Avon. E elaborar longos questionários que mais pareciam fazer parte de um inquérito sobre a vida da pessoa, e nosso alvo já se voltava para as respostas dos meninos. Nem sempre eles colaboravam, afinal viam na tal empreitada uma armadilha que buscava saber os segredos mais bem guardados dos guris: de qual menina eles gostavam.  

As nossas salas ficavam quase em frente à escada por onde descíamos para o subsolo e para o pátio onde fazíamos educação física: lá treinamos muito salto em altura e salto à distância. Haviam ainda nesta parte inferior do prédio, salas de depósitos para os materiais de artes, para os instrumentos da banda e bolas e redes para as atividades da educação física, além do consultório da dentista e a cozinha, onde ofereciam a merenda.

No mesmo corredor das nossas salas de aula, ao lado da sala dos professores, ficava a biblioteca: algumas prateleiras com livros, classe reunidas fazendo mesas para estudo e pesquisa, um quadro com avisos e mesas com máquinas de escrever, que o pessoal ensino médio usava nas aulas do técnico em contabilidade. Lili se encantou de imediato com a pequena biblioteca, procurava livros, enciclopédias e revistas, tudo era fascinante. Uma a duas vezes por semana dava uma verificada no material para ver se havia chegado algo novo. 

A leitura dos livros da tia Jane e as aulas de redação instigaram Lili para a escrita. Passou a escrever novelas curtas. O material, minhas colegas mais velhas me forneciam facilmente com seus relatos amorosos ou com seus pretensos desejos românticos. Lili reinventada as histórias relatadas pelas amigas, criava personagens inspirada pelas fotonovelas da revista Grande Hotel. Os protagonistas começaram a ter nomes fixos: Max e Verônica. Durante dias, eu juntava as moedas do troco das compras, às vezes, também ganhava umas moedinhas das vizinhas pra quem eu comprava pão todas as tardes. Com o valor guardado, eu corria para comprar revistas de fotonovelas na banca da praça, afinal ali estava meu modelo dos diálogos e de como contar uma estória romântica. 

A banca na esquina da praça era ponto de encontro e paquera dos jovens. No outro lado, na esquina do Clube, o ponto de conversa sobre política dos mais velhos e também das fofocas. Meu colega Tampinha havia se mudado da cidade, o pai dele foi por um bom tempo o proprietário da banca. Quando iniciei meu interesse na leitura de fotonovelas, o dono era seu Mozarte, um senhor alto, elegante e com um bigode de galã.

O ano crucial da entrada no ginásio foi intenso: professores diferentes, disciplinas novas,  cadernos e mais cadernos para passar a limpo, muitas provas para se preparar. Um ano que Lili perdeu quase dois meses de aulas por causa de uma caxumba e, logo depois, por uma rubéola, um ano puxado para dar conta de tantos temas novos. Sem contar ter passado pela constrangedora vistoria da escola por suspeita de piolho encontrado na cabeça de alguma colega, todas iam para fila de catação de lêndeas e do bichinho perdido na cabeleira das gurias. A inspeção era feita no pátio da escola debaixo do sol da primavera, já prenunciando o calor forte do verão.

Meu dia feliz e o melhor presente do ano foi meu aniversário de onze anos, pude convidar algumas amigas e lá estavam minhas avós de julho. Era uma gostosa tarde fria no início do mês de agosto. Tomamos juntas um xícara de chá acompanhada de uma torta de Nescau feita por uma das minhas tias doceiras. Minha vida na cidade tinha seu roteiro e eu podia dar conta de vislumbrar um novo horizonte tal como fazia lá na fazenda, contemplando a lua cheia nascendo por detrás da frondosa timbaúva ao lado da porteira.


Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...