sábado, 25 de junho de 2022

O santo padroeiro

Só três lugares na cidade tinham o São Vicente Ferrer, padroeiro da cidade, em um lugar de destaque: a igreja, a escola e o hospital. Vi o Santo na salinha de espera na primeira vez que de fato consegui entrar nas dependências internas do hospital. Meu acesso à ala dos quartos se deu quando fui ver minha mãe em uma das tantas vezes que ela se atacou de uma crise na vesícula. Isso sempre acontecia na segunda-feira, depois de um fim de semana no campo. O churrasco do domingo sempre tinha fartura de carne de ovelha, por isso era certo um estrago digestivo da minha mãe. Saboreava com gosto uma costela de ovelha bem assada, especialidade do churrasco do meu pai. Na minha infância comia-se muita carne de ovelha tanto quanto se comia a das galinhas que ela criava. 

O hospital já estava na lembrança remota da Lili, quando aos quatro anos foi levada por uma das tias paternas para olhar, da janela lateral de um dos quartos, a mãe e o irmão que acabava de nascer. Visitas eram proibidas para os pequenos. O santo exposto naquele saguão tão diminuto resguardava os doentes. Enquanto eu olhava pra ele, tinha a sensação de que passava despercebido pelas pessoas que chegavam ao hospital, como se ninguém se importasse com o lugar sagrado que ele ocupava naquele recinto.  

Na escola, o São Vicente Ferrer tinha seu lugar de honra na ampla área da entrada do prédio, lá estava a postos nos vigiando, para os mais crentes e tementes a Deus, nos protegendo. Ele estava ali, desde antes de Lili iniciar a segunda fase do primeiro grau. Desconfio que colocar o santo na escola foi obra da dona Maria Cony, a nossa eterna professora ilustre, ela era a diretora do colégio quando iniciei o quinto ano. Uma senhora altiva, estatura média, cabelos curtos e afofados, usava uns óculos de lentes grossas com aro preto quadrado. Ela tinha o porte de grande dama e, geralmente,  andava vestida com seus bem alinhados terninhos escuros. Muito religiosa, era comum vê-la ao final da tarde indo em direção à igreja, quase sempre acompanhada de sua irmã, dona Noemi, que tocava órgão durante a missa. 

Dona Maria e Dona Noemi e a irmã Maria Clara moravam em uma casa antiga, ao lado da prefeitura e de frente para praça central. Seguidamente, tia Jane me enviava para buscar as famosas e deliciosas queijadinhas feitas por dona Noemi. Havia um pequeno saguão para fora da casa,  antes da porta principal, decorado com ladrilhos parecidos com os da sala de jantar da casa da fazenda, então toquei a campainha. Lembro de sentir um certo constrangimento ao tocar, mas entrei na sala de estar e aguardei tranquilamente a encomenda. Durante a espera, eu fiquei analisando o ambiente, tudo era como elas, bem arrumado e discreto. A vergonha vinha do fato de uma vez que outra eu me juntar à Tina, Jeane e Cecília na traquinagem de tocar a campainha da casa das Cony e logo sair correndo até dobrar a próxima esquina e desaparecer. Tocar campainha era uma brincadeira boba, nem sei bem do que achávamos graça, mas sabíamos que havia na cidade três lugares em que a campainha nunca falhava, sempre funcionava: a casa das Cony, a casa do padre e a farmácia da tia Ivoloy.

Na igreja, claro, o santo espanhol São Vicente Ferrer ficava no alto da sacristia, iluminado pela luz tênue das velas no centro do retábulo. No seu pedestal recebia também a luz indireta e amarelada das lâmpadas das luminárias redondas, de vidro leitoso e dispostas no entorno da peça da sacristia, que seguia a forma de semicírculo da construção. Ele figurava de modo harmonioso com o silêncio da igreja e se destacava entre os demais santos que se espalhavam no entorno do altar e nas laterais. 

Na quarta série nos ensinavam sobre a história do município. Lili, então, descobriu que o  santo padroeiro foi trazido pelos Jesuítas para aquelas terras entre os rios Ibicuí, Toropi e Jaguari. Nos primeiros tempos de ocupação, a localidade foi nomeada de Redução de São José, que deu origem primeiro à vila e depois ao município. Contavam na escola que na praça central havia muito gado pastando e que, no terreno da casa da esquina, onde moravam os médicos da cidade, localizaram um antigo cemitério indígena.  

Anos depois, a pequena redução de São José se transformou em uma estância de gado da Redução de São Miguel. A história missioneira da cidade tinha uma magia para Lili. Um passado tão longínquo mas que parecia tão importante, tornava a sua cidade um lugar no mundo e na história. O mesmo santo trazido pelos jesuítas continuava zelando por todos na igreja, situada em frente à praça, que foi construída naquela mesma vasta área de pastoreio do gado da Estância de São Vicente, que adotou não só o santo como padroeiro como o seu nome ao ser elevado a município em 1876 e a se chamar de São Vicente do Sul.

Carapé

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