domingo, 28 de agosto de 2022

A grande perda

Agosto chegou. Metade do ano havia passado e com tantas comemorações pelo centenário do município, não tínhamos nos dado conta de que novamente voltaríamos aos longos ensaios com a banda, agora para o dia da independência. Mal folgamos nas curtas férias de inverno e lá estávamos nós formando pelotões, acertando o passo para mais um desfile. Em sala de aula preparávamos os jograis relatando o momento histórico do grito do Ipiranga, eles seriam apresentados no dia destinado à nossa turma na programação da semana da pátria no palanque construído em frente à prefeitura. 

Com toda força que o pulmão permitia cantávamos os hinos da independência e do Brasil, decorando a letra e melodia até ficarmos exaustos e entediados. Agosto sempre foi mês de clima devastador: frio, geada, calor e vento norte, e ficávamos expostos ao mal humor do tempo, enquanto nos atribuíam horas de preparação para o sete de setembro. Lili andava em círculos, envolvida com atividades da escola mas o pensamento em outro lugar. Vó Cinda tinha voltado para Santa Maria porque não andava bem. A ausência dela e a delicada situação da sua saúde desnorteava ainda mais os dias agitados de Lili, tal como aqueles primeiros ventos quentes de agosto.

Nesta época, do nada minha mãe me dava umas tarefas no período da tarde, quando eu não tinha aula de educação física, como a de comprar rendas, linhas e botões na loja da dona Nena e seu Braúlio. Era um teste de paciência aguardar dona Nena encontrar um pedido, tudo era no ritmo da sua mansidão. Seu Braúlio nem se movia da cadeira de palha entre o balcão e a grande prateleira coberta de variedades de tecidos, apenas gritava para dona Nena atender os clientes que chegavam. As encomendas da minha mãe eram para me ocupar, do contrário eu passava as tardes na casa das amigas, ou estudando ou jogando conversa fora. 

Entre as tarefas dadas pela minha mãe, teve a do dia que ela me colocou de acompanhante da Ivaldina. Uma mulher miúda, toda vestida de preto, saia longa e camisa de manga, usava a tradicional roupa de viúva, e desde que a conheci parecia estar sempre vestida com a mesma roupa. Tinha cabelo alvos, bem puxados e amarrados no alto da cabeça na forma de um coque. Já levava muitas rugas no rosto miúdo e oval, nariz adunco e foi primeira mulher com bigode que Lili conheceu. Saí com a Ivaldina enganchada no meu braço, caminhávamos devagar pela rua Brasil, a terra solta levantava pó a cada pisada. O passo dela era lento e eu tentava ir no mesmo compasso. Eu já a conhecia das suas visitas à minha avó na fazenda. Aparecia do nada, contavam que ela ia à pé, depois ficava mais de semana hospedada. Era daquelas muitas comadres que a vó Cinda fez na vida. Dizem que era muito perguntadeira, no entanto falou muito pouco durante nosso trajeto até sua casa. Embora contrariada com meu papel de acompanhante, levei a comadre Ivaldina até a porta da sua casa. Mostrou gentileza comigo, queria que eu entrasse, eu tinha a pressa de adolescente na ponta dos pés, não me permitia demoras. Apenas espiei pela porta, sobre a pequena mesa da sala, uma almofada onde ela fazia rendas de bilro. Trabalho delicado daquela mulher tão rara com bigode.

A casa da fazenda andava vazia, apenas o velho pé de camélia abundava em flores no jardim. Nos fins de semana Lili ficava algumas horas no quarto da vó Cinda. Deitava na sua cama para sentir o calor de um abraço imaginário. Eu sempre dormia nos seus braços antes de ir para cama à noite, não importava que eu já tivesse o tamanho de uma garota de doze anos. Em uma destas tardes, com o calor da primavera fazendo explodir as orquídeas do toco da laranjeira, tia Tânea e tia Ivoloy entraram apressadas abrindo as janelas do quarto, eu as tinha fechado para tirar uma soneca. Olhei para elas assustada e algo palpitou no meu peito, só pude perguntar: o que houve? Então o mundo de Lili se desmanchou entre as lágrimas e o desespero: vó Cinda se foi e eu me perdi vagando entre as peças vazias e silenciosas da casa. Minhas tias preparavam a casa para o velório. 

Setembro iniciou triste e cinzento. As festas de sete de setembro não entusiasmavam Lili. Minha mãe e minhas tias se cobriram de uma enorme tristeza. Os dias iam passando mais devagar. A primeira perda de Lili foi brutal. As tardes passaram a ser de leitura e desenhos, voltar para campo se tornou uma batalha constante com meu pai. Eu não queria passar mais os fins de semana na fazenda, havia silêncios insuportáveis na casa, no jardim, na casa do forno, na despensa, tudo se esvaziou. A cidade era agora um refúgio. 

visita da Ivaldina tinha sido um gesto de apreço pela comadre Lucinda, era para prestar suas condolências à minha mãe. 


   


domingo, 7 de agosto de 2022

Treme Terra, o propagandista do cinema

A cidade da Lili tinha encantos que iam sendo descobertos por ela como novidades típicas da vida urbana, sempre em contradição com a vida silenciosa e lenta que os tempos vividos no campo haviam impregnado na sua alma. Aos doze anos meus interesses voltavam-se para diversões que só a cidade podiam me proporcionar. Eu vivia conflitos constantes, dividida entre o campo e a cidade. Eu sabia que o campo não sairia de mim, e a cidade eu precisava ainda descobrir. 

Toda sexta-feira minha mãe arrumava sacolas com roupas para lavar com a água límpida e doce tirada de balde do poço da nossa casa lá nas terras da fazenda. Ela juntava as roupas da casa em um saco de viagem e nos carregava para rodoviária depois do almoço. No sábado era roupa estendida por todos lados, debaixo da parreira, nos arames do varal no pátio, onde podia ela distribuía as roupas para secar. Queria aproveitar o sol, o vento e água doce do poço.

A água que corria nas torneiras da casa do chalé era salobra, como a de todas as outras casas da cidade. Quando se fervia, na superfície boiava uma película embranquecida criando, ao longo do tempo, crostas brancas dentro das chaleiras. Além disso, a água salobra não ajudava o sabão fazer espuma suficiente para uma lavada eficiente de louças, menos ainda das roupas, tarefa que minha mãe se dedicava ao extremo, nossos uniformes precisavam ficar alvos para a segunda-feira. Mas a ida para o campo nas sextas-feiras à tarde me tirava de certas diversões, como ir ao cinema, ver os jogos na quadra da praça à noite, comprar sorvete de creme e morango sábado de tarde no bar do seu Nelson ao lado da rodoviária e depois conversar com as amigas nas escadas do coreto.

O cinema da cidade era mais frequentado por guris e homens, não muito recomendado para as meninas, talvez porque lá dentro ficava escuro demais quando iniciava o filme. As meninas entravam sempre acompanhadas dos pais, irmãos ou em grupo. Um vez e outra vinha uma peça de teatro para cidade e se apresentavam no palco do cinema. Então, a escola nos levava, foi assim que entrei pela primeira vez no cine teatro Carlos Gomes, situado em frente à praça, quase ao lado do correio. A cor do prédio tornava impossível não reconhecê-lo de longe, era pintado também naquela cor azul calipso dos armários da cozinha da casa da fazenda. 

Nada superava assistir uma peça de teatro ou ver um filme quando se abriam aquelas cortinas de cetim vermelho escuro. Elas iam abrindo lentamente assim que começava a tocar uma música, e nos enchia de expectativas, fosse pela peça, fosse pela sessão do filme.

O funcionário do cinema fazia todo serviço, trabalhava na bilheteria, vendia os doces, andava com a lanterna procurando poltronas vazias para nos acomodar quando as luzes se apagavam. Quando algum filme entrava em cartaz, ele saia pelas ruas da cidade carregando sobre o corpo um cavalete com cartazes de filmes pendurados. Cada vez que a gente cruzava por ele ficávamos tentando ler o nome do filme. Divulgava-os na parte da frente e nas costas, aproveitando para fazer dois anúncios ao mesmo tempo. 

João Treme Terra cruzava a praça em todas as direções, ou andava várias vezes na quadra da rodoviária, parando de vez em quando para descansar na banca de revistas, na esquina da praça, no cruzamento da rua 7 de Setembro com a General João Antônio. Treme Terra tinha este apelido porque tinha a língua presa, o que dificultava clareza na sua fala, se atrapalhava com a dificuldade que tinha para que o entendessem, se tremia todo. Era muito magro, queixo proeminente, olhos espantados. Algumas crianças temiam sua presença. Lili desde pequena se fascinava com a função que o Treme Terra cumpria. Para ela, ele era nada mais nada menos que o grande propagandista do cinema. Foi assim que o identificou aos sete anos, tentando explicar quem ele era para o irmão menor que se assustou com a sua figura.

Certo dia, Lili foi autorizada a ir ao cinema assistir um filme do Teixerinha, chamado "Ela tornou-se Freira", pois os filmes dele faziam muito sucesso. No cine teatro Carlos Gomes passavam só filmes de faroeste ou filmes do Teixerinha. A tela do cinema me fascinou do mesmo jeito que a tela da televisão em preto e branco que a vó Cinda ganhou de aniversário, pois juntas descobrimos as novelas. As telas e palcos despertaram em Lili o desejo de ser artista. A cidade então começava a me colocar no mundo de outro jeito.

Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...