segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

A grande mudança no trajeto de Lili


Acanhada e nervosa Lili entrou pela primeira vez pelo portão principal da escola no início de março de mil novecentos e setenta. Andou pela suave rampa, metade coberta pela sombra das árvores, outra metade, a mais íngreme já na altura da porta de acesso à parte interna escola, era uma cobertura de zinco, tendo na lateral, à direita, um corrimão de madeira reforçado. Parecia que aquele caminho era mais misterioso que longo. Não entrei dentro do recinto porque precisava antes encontrar meu lugar na fila junto aos colegas da turma da primeira série, que já estavam na parte baixa do pátio, entre as duas rampas. Havia outra rampa de acesso, a do portão lateral, ambas davam direto na porta de entrada. A escola, para quem estava quase com sete anos, e sem vivência em locais urbanos, parecia um lugar imenso, vasto como o gramado da frente da casa da fazenda. Ela ocupava boa parte do quarteirão e as crianças vinham chegando pelos dois portões, o que  aumentava ainda mais a sensação de ter muita gente estudando ali.

Aos poucos fui aprendendo a identificar os colegas. Eu não sabia até aquele momento o que era um colega e também o que era ter amigos, pois vinha do campo, meu mundo era preenchido pelas pessoas da família. Embora tudo fosse novidade e desafio ao mesmo tempo, fui arranjando modos de me acomodar naquele novo mundo da vida social que a cidade me oferecia. Tinha colegas vindas do campo também, outros mais experientes pois tinham frequentado o jardim de infância. A maioria, assim como eu, aprendeu logo a fazer sozinho o trajeto de casa à escola. A Osmilda e o Tivico vinham de muito longe, aliás o César Augusto chegava muito antes da hora na escola, junto com o guarda de quem ele, por inspiração, recebeu o mesmo apelido: Tivico. Eu podia vislumbrar o imponente e belo coreto da praça quando dobrava a primeira esquina na volta pra casa. O percurso de volta à casa dos meus tios era um momento de liberdade, tal como era caminhar pelo campo, eu estava no comando do meu trajeto.

A casa que fui morar na cidade se localizava em uma esquina, a três quadras da escola. Uma casa simples, pintada de uma cor indefinida entre o azul e o verde, era mais baixa que  a altura da rua de chão batido, pavimentada com uma mistura de terra vermelha bem sedimentada e uma terra solta cheia de minúsculas pedras moídas. Havia um pequeno portão de ferro que dava acesso direto à porta da frente, até lá uma calçada de tijolos e nas laterais umas margaridas perdidas pelo gramado do pequeno jardim. Meu quarto dava para o oeste, da janela pintada de vermelho escuro, eu podia ver a luz, apenas a luz do entardecer, porque dali eu já não conseguia ver o sol se pôr como no meu campo. 

A rotina escolar foi sendo assimilada: fila para entrar, cumprimentar a professora ao passar pela porta da sala de aula, guardar a classe na sala, de preferência sempre a mesma, responder a chamada, levantar a mão para falar, perguntar ou responder. Muitas vezes fiz xixi na calcinha de vergonha de pedir permissão para ir ao banheiro, depois acostumei. A disciplina me assustava, mas a venci pelo desejo de aprender. Entendi rapidamente como funcionava a fila para tomar a sopa da merenda, enquanto ficava de olho espichado para sala ao lado da cozinha vendo a Dona Sueli abrir o cadeado do armário mágico das guloseimas. Nele estavam guardadas caixas de doces para vender: balas, pirulitos, chicletes, merengues, sorvetes cobertos com maria mole adornados com anéis de fantasia, o maior desejo de consumo das meninas, além das saborosas merendinhas recheadas de morango ou chocolate. Mas me sobrava a sopa entulhada de legumes e verduras feita e servida pela Dona Joana, sob os olhos atentos da Dona Ana, que cuidava a vez de cada um ir à mesa para comer. Não havia lugares para todos, por isso se alternavam os horários das turmas para hora da famosa sopa. 

No pátio, Lili foi se integrando nas brincadeiras organizadas pelas colegas, logo estabeleceu laços de amizade, passou a sentar perto da Márcia e da Iolanda, nas fileiras do meio e mais à frente, elas estavam sempre concentradas na aulas. Optei por sair da classe localizada na fileira encostada na parede do corredor, onde me sentia invisível. Em seguida passei também a organizar os jogos, as rodas, a vez de cada uma na brincadeira das meninas. Quase nunca nos misturávamos com os guris. Colocava-me sempre disposta a participar, eu não era de disputas o que me dava vantagem em ser escolhida nas brincadeiras de grupo: ciranda-cirandinha, passa-passará, a canoa virou, escravos de Jó. Depois vinha a hora das atividades com bola e corda na educação física. Trazíamos, escondidos nos bolsos dos uniformes, pedaços de giz para desenhar uma sapata nas calçadas do pátio, em geral ao lado do poste de ferro no qual a bandeira do Brasil mantinha-se hasteada, movendo-se ao sabor do vento. 

Uma vez por semana tínhamos a tal hora cívica: hastear bandeira e cantar o hino e, especialmente neste dia, o uniforme deveria estar no capricho, pois passávamos por uma boa inspeção da Dona Ana, sob a observação criteriosa da nossa diretora Dona Celi. Embora ela como diretora tivesse aquelas funções fiscalizadoras, era afável, o seu sorriso desmanchava qualquer rigor que viesse a nos impor por causa da necessidade de vistoriar o uniforme ou prezar pela disciplina dos alunos, tanto no momento do recreio nos pátios externos como nas áreas comuns dentro da escola, onde não nos era permitido perambular. Quando a professora pedia para chamá-la, podíamos transitar no corredor. Em geral saímos em busca da diretora por causa das traquinagens perigosas e violentas do Ricardo, filho do turco que tinha uma loja do outro lado da rua. Às vezes, a mãe dele aparecia de surpresa na altura da janela da nossa sala de aula para espiar como ele estava se comportando.

Eu rondava a sala grande da biblioteca, raramente tínhamos atividades naquele espaço. Um misto de biblioteca com sala de artes. Eu me dedicava com afinco nas leituras e nas tarefas de artes, fiz uma cegonha de lã rosa e amarelo, moldada no arame, para a minha mãe e uma bota decorada com massa parafuso, pintada de prata, para o meu pai. Cada data comemorativa preparávamos algo especial na semana anterior, para presentear a família. O capricho de Lili estava nos detalhes, todas as folhas do caderno eram decoradas com pequenas flores coloridas, desenhadas no canto direito da parte superior de cada folha. E os cadernos forrados com capas de papel de presente que a mãe guardava e se reaproveitava. Cada novo tema de aula era sublinhado com cores variadas do seu conjunto de lápis de cor. A caneta azul e as coloridas só entraram na nossa rotina escolar no quarto ano, quando íamos nos preparando para a grande mudança que o quinto ano nos traria. A mais aterrorizante delas era ir estudar no Ginásio, sair da nossa escola. Mas a mudança para Lili se deu quando ela deixou o campo, a entrada na escola foi um divisor de águas. Navegar era preciso, os tantos desafios que chegavam só parecia o começo de uma grande travessia, definitiva: a da vida do campo para vida na cidade. 

Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...