sábado, 5 de junho de 2021

As matriarcas.

Lili conheceu as bisavós através dos relatos da família. Por muito tempo, as memórias trazidas nas falas da mãe e das tias maternas e paternas despertaram na Lili uma inexplicável curiosidade a respeito do trajeto de vida das suas bisavós. Lembranças que iam costurando uma narrativa cheia de dores, trabalho, resignação, detalhes oferecidos pelo testemunho das suas avós que as conheceram. Lili foi assim criando histórias de vida de outros tempos, tomada por uma espécie de encanto pelo passado das bisavós, tão cheio de lapsos, imprecisões e imagens que iam se reconstruindo pelas vozes das mulheres da família. 

Minhas duas avós perderam suas mães ainda meninas e muito pouco se comentava sobre elas nas conversas familiares. Por outro lado, duas matriarcas na figura das minhas bisavós  Carolina e Lídia, mães de seus maridos, se apresentavam com força e vitalidade nos relatos que eu escutava nas tardes de conversas junto à maquina de costura ou, à noite, logo depois do jantar na casa da vó Cinda. Na casa da vó Xiruca, as conversas foram movidas pelo meu desejo de conhecer vó Carolina, pois gostava do seu nome e fui descobrir sobre sua vida só na minha adolescência. Eu costumava visitar seguidamente a Vó Xiruca depois que ela foi morar na cidade, em uma antiga chácara que meu avô comprou nos anos 70.A casa era um chalé, que de tempos em tempos, a pintura variava entre a cor azul, outras vezes, a verde, e tinha como sempre um jardim e horta muito caprichados. Meu desejo de conhecer mais sobre família me fazia bombardeá-la de perguntas, que ela respondida no tempo dela, era um aprendizado de paciência ouvi-la. Eu sempre notava que em cada conversa com minhas avós, as recordações se tornavam muito vivas, pareciam movidas pela intensidade das saudades e da admiração que elas tinham por minhas bisavós. Absorvidas nestas estórias, Lili tentava montar o quebra-cabeça familiar se perguntando de onde elas tinham vindo? Como chegaram até ali? viviam no interior do município e como que, por obra do destino, tornaram-se vizinhas rurais? 

Vó Carolina era uma imigrante vinda da região do vasto território austro-húngaro, filha mais velha de Estefan e Anna Cristina. Com cerca de seis anos fez a longa travessia rumo a América e, além dos pais, veio também acompanhada do irmão mais novo, e várias outras famílias com crianças como ela. Montaram seu barraco em terras destinadas aos imigrantes no interior do Uruguai, na região do Rio Negro. Nesta localidade iniciaram uma nova vida, nasceram mais três dos seus irmãos e também ali conheceu a família do meu avô Antônio. Chegaram a essas terras por volta de 1890, e pelo que dizem alguns registros, oriundos da Bucovina, uma região de fronteira entre a Ucrânia e a Romênia. Anos mais tarde, na virada do século, algumas famílias desses imigrantes tomaram o rumo em direção ao Brasil e ocuparam terras devolutas na zona rural de São Vicente. Foi assim que as famílias do meu bisavô Antônio e minha bisavó Carolina chegaram nos campos onde se estabeleceram e sobreviveram da agricultura e de alguns afazeres e técnicas que dominavam, conhecimento que traziam das experiências e dos aprendizados de vida das suas famílias na Europa Oriental. Casaram-se jovens, minha bisavó Carolina se dedicava aos afazeres domésticos, dizem que com grande capricho e meu bisavô Antônio à carpintaria. Passaram dificuldades para se estabelecerem e criarem uns quantos filhos, que à medida que se tornavam adultos saiam para trabalhar em outros lugares. Minha bisavó Carolina resistia bravamente às dores nas articulações e às consequências de uma doença que a paralisava. Com a perda da mobilidade e avanço da enfermidade de que tanto padecia, meus avós João e Xiruca, com poucos anos de casados, mudaram-se do Umbú para a chácara dos meus bisavós, especialmente, para cuidar da vó Carolina. Ela morreu uns quatro anos depois e ele nunca mais foi o mesmo, se entregou para bebida e vivia na oficina de carpintaria na sua solidão.

Lili lembra que na chácara onde nasceu seu pai, havia um galpão rústico de madeira, sem pintura, com uma varanda onde tinham empilhadas lenhas, madeiras, ferramentas penduradas nas tábuas das paredes e, pelos cantos, os tornos nos quais o bisavô Antônio trabalhou para sustentar a família. Era homem da arte da madeira, então meu avô Joãozinho se dedicou ao cultivo do arroz nas terras da família. As dores e os ensinamentos da bisavó Carolina ficaram na memória da minha avó, sua nora, que se dedicou tanto a cuidá-la, na época em que já tinha de dar conta de quatro filhos pequenos. Com ela, vó Xiruca aprendeu a fazer uma comida que conheceram como "galush", uma trouxinha feita com folha de couve cozida, recheada com arroz feito junto com várias carnes, bem temperado. Contava a vó que este prato se comia nas festas de casamento das famílias desses imigrantes.  

Minha outra bisavó, que conheci como Vozinha, era uma descendente de portugueses, ou talvez de espanhóis, e viveu muito. Morreu com 98 anos depois de fraturar uma perna, ainda que tenha durado um bom tempo pelo cuidado incansável da minha vó Cinda, da minha mãe e das minhas tias. Dela quase nada se conhecia de onde teria vindo, o passado de sua família até antes de casar como meu bisavô Alfredo. Conhecíamos a Tia Idalina, sua irmã que morava na fazenda e Bentoca, seu irmão mais novo, moço de olhos muito claros, diferente dela que tinha feições mais amorenadas e um ar de seriedade constante, era o que as fotos diziam a Lili quando mirava os retratos da bisa Lídia na parede da sala. Deu a um dos seus filhos o nome do seu pai, Bento, mas parece não ter tido coragem de dar o nome de sua mãe a uma das suas três filhas, Sinforosa. Lili girava entorno da mesma pergunta: de onde teria vindo ela? O que sabíamos  era o que nos contavam a partir daquela famosa caixa dourada, com a fotografia de duas mulheres, encaixada em um fundo de veludo. Era um retrato antigo, provavelmente, de meados do Século XIX e a caixa era guardada e, muito bem escondida, no guarda-roupa da vó Cinda, pois ela a cuidava como uma prova do passado da família. As mulheres do retrato eram a mãe e a avó da bisa Lídia: a quarta e quinta geração antes de mim. 

A bisa Lídia tinha uma vida confortável, uma casa na fazenda com empregados para as tarefas do pátio, do campo e da lavoura. Entre as estórias contadas é que Sinhá Maria, que cuidava dos afazeres domésticos, era filha de escrava. Era uma mulher de poucos sorrisos, mas de bom coração, sobretudo, com os netos, os protegia das represálias do meu avô e dos chinelos da minha vó Cinda. Maior prova desse amor foi ter criado os netos quando sua nora adoeceu gravemente por uma depressão profunda após o parto do filho mais novo e, especialmente, quando acolheu os filhos da tia Santinha, falecida aos 39 anos. Quando suas netas ficaram adolescentes e a escola em São Vicente se estendeu até depois do 4º ano, foi morar uma temporada na cidade para que elas pudessem seguir estudando. A casa da fazenda sempre estava repleta de visitas, e minha vó Cinda cuidava de garantir o bem servir e o bem hospedar os parentes da vozinha. As caixas guardadas nos gavetões dos roupeiros e nos baús dão prova de que ela tinha parentes próximos em outras paragens, pois ela recebia fotos, postais e cartas de primos e sobrinhos de muito longe. O retrato da caixa dourada parece ter sido feito em um estúdio em Pelotas, a existência dele me provocava milhares de hipóteses de que ela teria vindo dessas bandas do Sul. Seu lugar de origem eram peças soltas que Lili buscava encaixar, recompondo estórias pelas vozes das mulheres da família. Como ela, aprendi o gosto por uma varrida de pátio, passou esta prática para minha mãe e por sua vez, a recebi como uma herança simbólica da sua existência no meu passado. 

Minhas avós foram responsáveis por construírem uma narrativa sobre a personalidade dessas mulheres. suas sogras. A dúvida que ficou lá atrás, muito antes de eu ser a bisneta delas, é se um dia elas chegaram a se conhecer. Chegaram naquelas terras quase na mesma época, vindas de tão longe, formaram suas famílias, uma com ares de quem usufruía de certos confortos, a outra sofrida desde pequena fugindo de conflitos e guerras, para ter uma vida mais digna. E ambas viveram toda uma vida separadas apenas pelo arroio da Divisa e do Salso. 

Carapé

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