sábado, 16 de julho de 2022

O centenário

Quando março chegou, logo entramos em um intenso preparo para as festividades do centenário do município no final de abril. Era o mês do santo padroeiro e também da data de emancipação da antiga vila São José, que foi rebatizada com nome do santo. Em 1876, a vila de São Vicente deixou de pertencer ao município de São Gabriel. A cidade estava movimentada e com muitas expectativas para os festejos. Lili ansiava pelo dia da festa 

Os ensaios com a banda e os das apresentações da escola para a celebração da data tomavam conta de todos. Todo dia fazíamos trajetos diferentes acompanhando o compasso da banda. Percorríamos toda a chamada avenida Cipriano D'Avila até alcançar o Alto da Bronze, campo de futebol bem em frente ao hospital, e retornávamos pela 7 de setembro. Muita gente saía para fora das suas casas para nos saudar. Lili se entusiasmava com tanta preparação, pois as festividades eram anunciadas para marcar o dia histórico, por esta razão nossa dedicação nos ensaios era enorme e muito cobrada, não podíamos fazer feio. Lá íamos nós aperfeiçoando o ritmo da marcha e o alinhamento dos pelotões. O Negro Vieira, famoso entregador de jornal e mercadorias, já nos aguardava nas imediações da rodoviária, onde costumava passar grande parte do seu tempo. Dali para frente ele nos acompanhava, e ao lado da banda, como se também estivesse nos guiando, marchava forte e concentrado, até chegarmos de volta ao portão da escola.

Sob os cuidados especiais do Tunico, o jardineiro mais boa gente e educado daquelas paragens, tudo estava impecável na praça central, tal como as camisas de tergal que ele usava e lhe davam tanta elegância. Os canteiros no entorno do coreto ja estavam cobertos de amor-perfeito, cada dia com mais flores, mostrando que à medida que a temperatura diminuía, sentia-se os sinais da mudança do clima. Estávamos chegando ao outono, estação que eles desabrocham com vivacidade. As roseiras podadas e vigorosas realçavam a pintura nova do coreto. Os ares da cidade eram de glória. Todos andavam ansiosos a espera da visita do governador que havia anunciado sua presença nas comemorações. 

Em casa nos ocupamos todos com os preparativos. Tia Jane assoberbada com as atividades da escola, na expectativa da organização do desfile, que deveria sair sem atropelos e imprevistos. Minha mãe mandou fazer uniforme novo, renovar os aventais do Borges do Canto para meus irmãos, uma nova saia e blusa pra mim. Tudo com monogramas da escola bordados por ela na cor azul-marinho. Meu irmão menor ganhou um papel para representar as profissões importantes no desfile do dia 29 de abril: uniformizou-se de padeiro. Lili havia sido escolhida como representante da turma para concorrer, por meio de votos, à rainha da escola do ano do centenário. E isso fez o sexto ano ser inesquecível.

Os dias eram aulas nos primeiros períodos e depois ensaio com a banda até a hora do almoço. Pela tarde minha ocupação era pedir votos para os vizinhos, parentes e conhecidos. Vó Cinda estava de volta na casa da fazenda, e me comprou uma boa quantidade de votos. Eu me sentia vibrante com ela por perto. Planejava estar presente no ato de comemorativo com o governador, ia usar seu terninho preto e a blusa com gola de renda guipir branca. Sua roupa mais chique, usava sempre em dias importantes. 

O clima estava agradável e o sol radiante. Nas primeiras horas da manhã já estávamos organizando nossas filas. Os pelotões temáticos contavam a história do municipio, suas origens jesuítica e missioneira. As professoras corriam entre as fileiras de cada ano escolar, revisando uniforme, ajustando vestimentas e sempre nos lembrando do bom comportamento durante a passagem em frente ao palanque montado nas escadarias da igreja matriz para receber o governador.

Aquela manhã de 29 de abril de 1976 foi longa. Iniciamos nossa caminhada para nos posicionarmos e seguirmos no acompanhamento dado pelo ritmo da banda que, primeiro puxou os pelotões do Grupo Escolar Borges do Canto, depois as demais escolas. Somaram-se ainda as escolas do interior do municipio e as que ficavam nos arrabaldes da cidade. Naquele dia a população cresceu lotando a praça e as calçadas no entorno. A espera foi longa, ficamos horas no mesmo lugar sem poder sair, para não desmanchar a formação do pelotão e desorganizar o desfile. Quando não se podia mais segurar, íamos rapidamente ao banheiro da casa paroquial. Os pequenos pareciam inquietos e cansados. E nada do governador

Lili ficou na ponta dos pés sem sair da fila para melhorar o ângulo de visão e ver que cara tinha o governador. No alto do tablado improvisado sobre as escadas da igreja, um palanque oficial, com as bandeiras do município, do estado e do Brasil. Logo aquele pequeno espaço se avolumou de autoridades. Bem passado do meio-dia, iniciou-se uma chuva de luzes dos flashes das câmaras fotográficas do seu Olívio e do Arvei, registravam o momento histórico. O governador era alto, dali onde Lili estava podia ver sua careca reluzente e o terno azul marinho que usava. Nada entendeu do discurso do governador Synval Guazelli, pois como para todos ali, o cansaço se abatia sobre ela e toda a gurizada. O pessoal da banda resistia, apoiados nos instrumentos. 

O povo se amontoava para além das calçadas invadindo o espaço dos canteiros da avenida, com seus pés de extremosas ainda em fase de crescimento. Foram muitas horas de espera e de ansiedade por aquele famoso ato comemorativo. Vi a vó Cinda acompanhada das minhas tias no fio da calçada, bem posicionada para assistir a cerimônia, claro impecável e altiva no seu terninho preto e cabelos bem afofados, no estilo da moda dos penteados daqueles anos. 

A fome chegava com passar das horas. Meu irmão menor, que levava um pão d água da padaria do seu Darci na sua caracterização de padeiro, já havia devorado o pão no desespero da fome. Passou em frente ao governador um padeiro sem pão na cesta. O dia de festa havido sido longo e intenso. O governador fez sua passagem relâmpago na cidade. Lili se decepcionou com a brevidade daquele festejo, afinal eram cem anos da sua cidade, era a festa do centenário. Também não alcançou votos para ser a rainha da escola do ano do centenário, mas sabia que o dia tinha sido marcado na sua memória, afinal foi o grande momento histórico dos seus doze anos.

domingo, 3 de julho de 2022

Quando a banda passava

A virada para ano de 1976 prenunciava turbulências na vida de Lili. A primeira menstruação caiu como um grande incômodo e veio com ela os altos e baixos do humor. Sentia-se ainda uma menina do campo, mas os seios cresceram rapidamente e ela percebia estar entrando de fato em uma nova fase, na qual sequer sabia como administrar. 

O primeiro dia do ano foi assustador, vó Cinda não estava bem, há tempos vinha com desconfortos abdominais. Eu a achava muito pálida e notava que andava muito cansada. Lá se foi para consultar um médico mais especializado e eu fiquei com um aperto no coração. Antes de iniciar o ano na escola, ela pediu que me levassem à Santa Maria porque sentia saudades de mim. Estava melhor, mas permanecia desde janeiro na casa da tia Betty sob seus cuidados. 

A entrada no sexto ano em março, estava como a vida de Lili, tumultuada: minha amiga Márcia, companheira de fazer os trabalhos escolares e com quem eu brincava de professora, foi embora. Chegaram na nossa turma, a Isabel e a Cristina vindas de outras cidades. Seguíamos só as meninas na sala de aula. Novos professores, muitas disciplinas e a pasta da escola pesada de cadernos. Usei todos papéis de presente guardados pela minha mãe para fazer capas nos cadernos do sexto ano, uma estampa diferente para identificar cada matéria. 

A educação física agora era feita na quadra da praça, pois começamos a aprender handebol, abaixo de instruções dadas aos gritos pela professora Amelinha, o diminutivo do nome não condizia com o jeito duro com o qual nos tratava. Para montar o time da turma ganhamos a força e o impulso da Nádia, que eu já conhecia porque ela era filha da Gessi, a senhora que trabalhava na casa da nossa vizinha, dona Lalá. Ninguém se atrevia com a Nádia, ela era furiosa e não deixava ninguém ser preconceituoso por causa da sua pele negra. Tornou-se a a fortaleza da nossa turma. O jogo na quadra era um festival de unhadas, arranhões e puxada de cabelo, a defesa era implacável nos seus métodos. Quando eu estava disposta ia para a goleira e voltava para casa cheia de machucados de tanta bolada, colocava toda minha pouca força em enfrentar as bolas certeiras da Nádia.     

A maior das novidades é que começamos cedo os ensaios com a banda, logo estaríamos desfilando no aniversário da cidade. Participar da turma da banda era privilégio para os meninos, o grupo era formado por alunos de várias turmas e só eles tocavam na banda. As meninas entravam para guiar a banda pelas ruas da cidades como balizas. Nos ensaios para os desfiles comemorativos marchávamos todos os dias puxados pela banda, fazíamos várias voltas nas imediações da escola, descendo ou subindo as ruas próximas, e passando pelo nosso antigo colégio Borges do Canto. Também na hora cívica a banda se encarregava de tocar o hino. Silêncio no pátio, algumas risadinhas e o olho vigilante da dona Maria Cony nos observando.

Todo mundo tirava um minuto do seu tempo para ir para janela ou para a porta das casas assistir a banda passar. Até a desnorteada da Manuelinha, que dormia no banco da praça, ajeitava suas inúmeras saias sobrepostas, apoiava-se no seu cajado feito de um galho de árvore e apreciava o som harmônico das batidas dos instrumentos. Com certeza, a música trazia paz para Manuelinha, sempre tão agitada nos seus devaneios. Lili queria mesmo era ser baliza, mas era tarefa para as meninas maiores que estavam nas séries finais do primeiro grau ou já no segundo grau. Moças mais altas e magras, dignas de estarem à frente da nossa banda. Além disso, minha mãe não aprovava meus ímpetos de querer me exibir na frente da banda comandada pelo mestre Heitor. Meu desejo de querer estar na banda foi passando, tal como ela passava pelas ruas da cidade toda vez que havia algo a ser celebrado.


Carapé

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