domingo, 3 de julho de 2022

Quando a banda passava

A virada para ano de 1976 prenunciava turbulências na vida de Lili. A primeira menstruação caiu como um grande incômodo e veio com ela os altos e baixos do humor. Sentia-se ainda uma menina do campo, mas os seios cresceram rapidamente e ela percebia estar entrando de fato em uma nova fase, na qual sequer sabia como administrar. 

O primeiro dia do ano foi assustador, vó Cinda não estava bem, há tempos vinha com desconfortos abdominais. Eu a achava muito pálida e notava que andava muito cansada. Lá se foi para consultar um médico mais especializado e eu fiquei com um aperto no coração. Antes de iniciar o ano na escola, ela pediu que me levassem à Santa Maria porque sentia saudades de mim. Estava melhor, mas permanecia desde janeiro na casa da tia Betty sob seus cuidados. 

A entrada no sexto ano em março, estava como a vida de Lili, tumultuada: minha amiga Márcia, companheira de fazer os trabalhos escolares e com quem eu brincava de professora, foi embora. Chegaram na nossa turma, a Isabel e a Cristina vindas de outras cidades. Seguíamos só as meninas na sala de aula. Novos professores, muitas disciplinas e a pasta da escola pesada de cadernos. Usei todos papéis de presente guardados pela minha mãe para fazer capas nos cadernos do sexto ano, uma estampa diferente para identificar cada matéria. 

A educação física agora era feita na quadra da praça, pois começamos a aprender handebol, abaixo de instruções dadas aos gritos pela professora Amelinha, o diminutivo do nome não condizia com o jeito duro com o qual nos tratava. Para montar o time da turma ganhamos a força e o impulso da Nádia, que eu já conhecia porque ela era filha da Gessi, a senhora que trabalhava na casa da nossa vizinha, dona Lalá. Ninguém se atrevia com a Nádia, ela era furiosa e não deixava ninguém ser preconceituoso por causa da sua pele negra. Tornou-se a a fortaleza da nossa turma. O jogo na quadra era um festival de unhadas, arranhões e puxada de cabelo, a defesa era implacável nos seus métodos. Quando eu estava disposta ia para a goleira e voltava para casa cheia de machucados de tanta bolada, colocava toda minha pouca força em enfrentar as bolas certeiras da Nádia.     

A maior das novidades é que começamos cedo os ensaios com a banda, logo estaríamos desfilando no aniversário da cidade. Participar da turma da banda era privilégio para os meninos, o grupo era formado por alunos de várias turmas e só eles tocavam na banda. As meninas entravam para guiar a banda pelas ruas da cidades como balizas. Nos ensaios para os desfiles comemorativos marchávamos todos os dias puxados pela banda, fazíamos várias voltas nas imediações da escola, descendo ou subindo as ruas próximas, e passando pelo nosso antigo colégio Borges do Canto. Também na hora cívica a banda se encarregava de tocar o hino. Silêncio no pátio, algumas risadinhas e o olho vigilante da dona Maria Cony nos observando.

Todo mundo tirava um minuto do seu tempo para ir para janela ou para a porta das casas assistir a banda passar. Até a desnorteada da Manuelinha, que dormia no banco da praça, ajeitava suas inúmeras saias sobrepostas, apoiava-se no seu cajado feito de um galho de árvore e apreciava o som harmônico das batidas dos instrumentos. Com certeza, a música trazia paz para Manuelinha, sempre tão agitada nos seus devaneios. Lili queria mesmo era ser baliza, mas era tarefa para as meninas maiores que estavam nas séries finais do primeiro grau ou já no segundo grau. Moças mais altas e magras, dignas de estarem à frente da nossa banda. Além disso, minha mãe não aprovava meus ímpetos de querer me exibir na frente da banda comandada pelo mestre Heitor. Meu desejo de querer estar na banda foi passando, tal como ela passava pelas ruas da cidade toda vez que havia algo a ser celebrado.


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