segunda-feira, 19 de julho de 2021

Sapato vermelho de verniz

Por muito tempo Lili foi a única neta dos avós paternos, era absoluta no seu reinado. Meu pai se casou jovem e como era um dos filhos mais velhos, as tantas tias e tios que eu tinha foram casando e tendo filhos quando eu já estava com mais de dez anos. Assim, eu e meus irmãos gozamos felizes da temporada de primeiros netos do vô Joãozinho e da vó Xiruca. Todo ano havia um casamento e uma festa na família, algumas eram na casa da chácara, outras eram nas famílias dos noivos e noivas. Nestas bodas familiares sempre havia uma quantidade de comidas deliciosas, cheiros bons, fartura de assados e sem faltar obviamente os maravilhosos doces feitos pelas mulheres habilidosas da família: ambrosias, pudins, tortas, doces de figo e abóbora em calda, entre outros. 

Cada casamento em que a festa era na chácara, tudo era preparado de véspera. As carnes do churrasco, as de porco para o assado e as de galinha para o risoto. Cedo da manhã eram colocadas no forno de barro e, nos panelões sobre o fogão à lenha, além das batatas e mandiocas, preparava-se também o caldo para o risoto. As saladas eram uma abundância de verdes colhidos na horta, verduras e legumes variados, que haviam sido cuidadosamente plantados e cuidados pelo meu avô. A horta da chácara parecia um lugar sagrado onde ele, no seu jeito calado e severo limpava, regava e cuidava dos canteiros bem perfilados e repletos de mudas, enquanto tragava seu cigarro de palha. 

Nestas ocasiões festivas, sentia-se logo na chegada ao pátio, o cheiro da fumaça de um fogo armado no chão e sobre ele um caldeirão de ferro de onde vinha aquele aroma de temperos e carne: era o cheiro do caldo do risoto inigualável que minhas tias faziam. Lá estavam elas, de avental e lenço no cabelo, mexendo aquele caldeirão com uma pá de madeira  para cozinhar por igual todo aquele arroz. Elas se divertiam nesta tarefa, riam de tudo, o tempero desse risoto vinha misturado com alegria e prazer, o que dava o toque final naquele momento festivo que envolvia toda a família no preparo das comidas da festa, na arrumação da casa e das mesas para o almoço debaixo das árvores, enfeitadas com vasos de flores do jardim da minha vó. 

O primeiro casamento que Lili assistiu, gerou muita expectativa, pois aos seis anos a ideia do que era uma cerimônia de casamento povoava o mundo da Lili. E foi justo o casamento do tio Ruco que fez explodir nela uma quantidade de emoções e sentimentos, ainda desconhecidos no mundo de uma menina que vivia no campo. Madrugamos na fazenda com o rebuliço e arrumação das mulheres, com os rolos no cabelo para ajeitar o penteado, as roupas bem passadas e a maquiagem adequada para aquele momento. Vó Cinda como sempre muito nervosa com compromissos de tal grandeza, em especial, porque era seu filho mais jovem, apegado à casa, à ela e à vida da fazenda, que estava se casando. Lili sentia toda uma emoção nova, era seu dia de vestido de festa: vestido branco de tecido leve, na altura do ombro uma transparência que dava-lhe delicadeza, muito apropriado para o calor escaldante do mês de fevereiro, era pura harmonia com as delicadas sandálias brancas que eu calçava. 

Neste dia, coube ao tio Cláudio levar todas as crianças na Kombi bicolor, a excitação da criançada era notada pelas muitas conversas e burburinhos na curta viagem até igreja matriz da cidade. A noiva vestida com muita elegância e beleza, chamava atenção para seu véu, adornado com fios delicadamente torcidos que desciam do alto da cabeça, era diferente e moderno, moldava seu rosto de traços marcantes e bonitos. Eu a admirava com encantamento, embora já tivesse me dado conta que não seria eu a aia do casamento do meu tio Ruco. Descobri que era muita honra ser escolhida para papel de aia de casamento, mas logo baixei a cabeça para que não vissem meus olhos quase explodindo em lágrimas e para esconder minha breve vergonha pelo ciúme que senti da menina que cumpriria este papel. Na hora da fotografia com os noivos e sobrinhos me postei frente à noiva para reivindicar o lugar de aia, ainda que por um instante.

Realizei o sonho de ser aia na cerimônia de casamento da tia Janina, primeira tia que se casou depois do meu pai. Era inverno e chegamos cedo na capela onde se realizaria a celebração, em uma pequena igreja localizada no interior de Jaguari. Como tudo naqueles anos setenta, as cores da igreja eram naquele azul turquesa igual aos armários da cozinha da casa da fazenda. Decorada com flores do jardim da chácara da família do noivo, a beleza simples daquela igreja combinava com a simplicidade das bodas realizadas no campo. Lili vestiu-se com roupas mais simples e claro mais quentes, o dia estava muito frio. Minha mãe comprou um lindo sapato de verniz vermelho, bem sobre o pé haviam pequenas flores feitas com furinhos no próprio couro, a cor do sapato combinava com vestido de lã xadrez escocês vermelho e azul-marinho, e completava essa combinação, as meias brancas de renda. O sapato vermelho de verniz me deslumbrava, era a coisa mais bonita que eu tinha naquela idade.

Enfim havia chegado meu dia de estreia como aia, me comportei e cumpri bem minha honrada tarefa. Como na casa dos meus avós paternos, na festa do casamento havia abundância de comidas e doces e se estendeu até o meio da tarde, quando sol já ia se indo e o frio voltava com força. Nas brincadeiras com as crianças, Lili fez um pequeno risco no seu sapato vermelho de verniz, ficou chorosa. Mas outras festas haveriam de acontecer, só não sabia se novamente como aia de casamento. Um dia, veio um convite para outro casamento, minha mãe e eu retiramos o famoso sapato de festa para lustrar o tal risco que eu havia feito naquele dia. Descobri, então, que ele já não me servia. Corriam lágrimas pelo meu rostro pela falta de oportunidade de uma menina do campo de usar seu sapato de festa mais vezes, usá-lo foi daquelas coisas raras da vida. Só foi um dia de aia e um dia só com meu lindo sapato vermelho verniz.   

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Chá de cidreira

Meu tio Ruco era o penúltimo dos oito filhos da vó Cinda e do vô Alberto. Ouvia várias vezes a história de que meu avô sentiu muito a falta dele quando meu tio teve de sair da fazenda para estudar, foi viver em uma pensão em Jaguari. Era um guri manso, sensível e um tanto distraído. Foi difícil para ele sair do aconchego da família ainda tão menino. Dizem que chorava muito de saudade e pela distância do campo. 

Lili recordava dele como a imagem de um tio adulto, de sorriso manso e amoroso. Todas as tardes, quando ele estava na casa da fazenda, tinha a hora do chá com biscoitos ou bolachas. O cheiro do chá de cidreira invadia a cozinha no meio da tarde. Ele sentava na lateral da mesa, naqueles bancos azul-turquesa igual a cor do armário da cozinha onde eram guardadas as latas com as famosas roscas de nata feitas pela minha avó e minha mãe. Colocava uma das latas sobre a mesa e arrumava um espaço para me colocar sentada bem ao lado dele e, enquanto colocava um boa porção de açúcar no chá, para logo sorvê-lo vagarosamente, ia me fornecendo pequenos pedaços de bolachas. Era um ritual de amorosidade que era tal qual a doçura daquele tio. Dele recebi o apelido de Lili, dizia que combinava comigo por eu ser tão pequena, de cabelos loiros e encaracolados nas pontas e com bochechas sempre rosadas: uma pequena Lili.

O laço que nos aproximava foi sendo bem amarrado pelos colos que eu recebia seguidamente. Ele me carregava pelo pátio, me trazia balas, tocava com a mão sobre a minha cabeça cada vez que eu passava por ele. Tudo que lembro dele é coberto de gestos de afeto, era aquele sorriso tímido que misturava um certo jeito reservado com timidez e mansidão. O tempo para ele parecia mais devagar. Era diferente do meu tio mais velho, que era agitado e cheio de rompantes. E também bem longe da inquietude e pressa características das minhas tias. Era o oposto, em muito se afinava com meu pai, foi por esta razão que depositei confiança em toda minha amorosidade por ele. Minha mãe, com quem ele era muito apegado, percebeu este laço que construímos e delegou a ele me levar para estudar. Então fui morar  na cidade com ele, minha tia Tânea e um bebê que estava por chegar.

Entrar na escola foi um divisor de águas, me jogou da vida no campo para a vida na cidade, aprendi novas rotinas por causa do colégio: assistir às aulas, fazer os temas, cuidar do uniforme e estudar bastante. Nesses desafios lembro, ainda que vagamente, dele me acompanhar no horário de fazer os temas, me auxiliava com as contas de matemática. Se minha mãe ou meu pai não vinham me buscar na sexta-feira, ele me levava de ônibus no sábado, dia que ele se dedicava a cuidar das ovelhas da fazenda junto com meu pai. Ele parecia combinar perfeitamente com aquele rebanho de ovelhas, elas eram pacatas e ele cuidava delas no mesmo ritmo. Raramente se via ele irritado ou bravo, ficava ainda mais calado quando não gostava de alguma coisa, muita das vezes preferia se recolher. 

Meu tio Ruco comprou um fusca, o carro possibilitava que ele em alguns dias da semana fosse à fazenda, em geral no final da tarde, para curar as ovelhas, revisar o rebanho com meu pai, dar uma olhada na minha vó e tomar um mate com eles. O fusca era de um cor muito difícil de definir, nem marrom, nem amarelo, um cor que costumávamos identificar como de "burro quando foge". 

Fusca era o carro do momento, quem podia comprar um carro preferia o fusca e a cidade foi sendo invadida por fuscas de várias cores: o fusca vermelho do Seu Adalberto Cony, escolhido a dedo por causa do time favorito, era um colorado fanático;  o fusca azul claro do professor Eugênio, nosso professor de inglês da oitava série, um italiano grande, com um tom muito exigente, imponente quando lia os textos em inglês. Qualquer pergunta desconcertante que fazíamos subia um rubor intenso no seu rostro e pescoço, por causa disso, a gurizada o apelidou de peru. Ele estacionava o fusca bem em frente à escada da entrada da escola, saia sempre muito apressado, ou para dar aula na Escola da Coqueiros, bem ao lado da igreja luterana, ou para retornar para Jaguari onde morava; o fusca branco da professora Lina, nossa simpática e amorosa professora de artes, no caso dela, o fusca ficava estacionado do outro lado da rua, em frente da casa do Vito, meu colega desde a primeira série, e do pequeno estúdio de fotografia do Seu Olívio; o fusca verde do padre Cargin, estava sempre estacionado na rua lateral da escola, bem na descida, para facilitar o arranque. Ali o fusca dele era alvo das traquinagens dos guris, esvaziavam os pneus do fusca do pobre do padre, sem contar o boato que se espalhava pela cidade de que o fusca estacionado ali, era mesmo um disfarce, porque na verdade o padre descia em direção à casa da tia Ney, a famosa casa de prostituição da cidade, localizada logo mais abaixo na rua, lá onde iniciava a estrada de chão batido. No fusca verde, o padre Cargnin fazia suas viagens de exploração paleontológica e arqueológica, vivia subindo nos cerros do Loreto realizando suas escavações em busca de fósseis e vestígios arqueológicos. E, claro, não se pode esquecer do fusca mais famoso da cidade, a fama era mais pelo motorista do que pelo carro, o fusca branco do seu Carlito Gabriel, vizinho do meu vô Joãozinho. Cada passagem do Seu Carlito pela cidade era uma aventura na certa. Nas esquinas, ele apertava com força a buzina apressando quem pudesse cruzar o caminho, carro ou pessoa, colocava a cabeça para fora da janela e gritava: "pobre, sai do caminho", este era um dos xingamentos para quem parava o carro na frente do seu fusca e atrapalhava ele de seguir caminho. No fusca cabia de tudo: melancias, sacos de sementes, seu rádio, cuia e térmica de chimarrão. 

No fusca do tio Ruco, Lili fez visitas ao interior do município. Era época de eleição, eu não entendia muito bem como ele podia ser candidato a vereador, calado como era e com certeza sem talento e preparo para discursos e promessas, mas era com certeza gente boa, estava estampado na cara nele. Eu me divertia com essas viagens, valia uma visita na fazenda do seu Antero e de dona Madalena Xavier para comer doces em calda e as famosas rapadurinhas de leite, além é claro de brincar com as meninas. Tempos depois, a filha mais nova, a Cristina, foi minha colega na quinta série. Dona Madalena teve uma loja na cidade, lá minha vó comprou o último presente de aniversário que ela me deu. Eu escolhi na vitrine da loja uma pulseira de prata, feita com argolas minúsculas, que se encaixavam como uma mola, minha primeira pulseira. Tio Ruco sempre fazia uma parada na fazenda, na ida ou na volta, quando fazia viagens rápidas a Jaguari. Mal ele apontava na porteira, eu corria para o tanque no pátio da parreira, lavava os pés, colocava um chinelinho de borracha, ajeitava o cabelo e pulava para dentro do fusca. Eu me fazia de companhia para ele, nem saia de dentro do carro, estava ali só pelo passeio e por aquele momento silencioso, só sentindo o vento morno entrando pela janela. 

Meu tio Ruco morreu jovem, justo em um acidente com aquele fusca de cor estranha. Todas as lembranças que tenho dele, centram-se em um sorriso manso, nas falas espirituosas e nas conclusões certeiras sobre certos assuntos, sempre depois de um longo tempo de escuta e observação. Ele foi breve nesta vida, uma brisa calma e calorosa que passou por nós. Todo chá de cidreira que tomo, vem junto uma calma no meu coração e lembro do seu sorriso tímido e doce.

Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...