sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Os chás da tia Maria

Dia de abater um porco, era dia de fazer linguiças, morcilhas, patês,; dia de abundância. Todos se envolviam com alguma tarefa no dia da carneação e íamos aprendendo a produzir e apreciar os alimentos que fazíamos. Eu ficava na volta para atender algum chamado da minha mãe e minha vó, a postos para buscar algo que precisassem. naquele dia de trabalho familiar. Assim que minha mãe terminava de cozinhar as morcilhas, meu pai retirava elas do caldeirão de ferro pendurado sobre o fogo de chão, que se mantinha abarrotado de lenha e brasa. Ele separava uma morcilha e cortava-a em rodelas grossas e as despejava em um prato cheio de farinha de mandioca. E todos corríamos para comer.

Lili se fartava com aquelas iguarias recém cozidas a ponto de fazer bigode de farinha de mandioca. Logo que a primeira linguiça tomava forma saindo da máquina de moer carne, que era adaptada para encher a tripa com o preparo para a linguiça, meu pai ia colocando as linguiças prontas sobre a grande mesa coberta de cortes de carne, no espaço onde conseguia juntá-las. Minha mãe as amarrava nas pontas com tiras de palha de milho, que eu rasgava cuidadosamente para que funcionasse como um barbante para uma amarração, colocava-as de molho na água morna para que ficassem malháveis e, com isso, facilitar o momento de fazer nó do acabamento que fecharia a linguiça. A primeira delas que ficasse pronta ia para um espeto, fazíamos assim o controle de qualidade: a quantidade de sal, alho e pimenta. Era dia de provar muita comida, dia de misturar linguiça quente com bergamota de sobremesa, dia de exageros e de um misto de diversão e trabalho Certa vez, Lili se fartou tanto que passou mal, mas lá estava a vó Cinda com seu chá de marcela, bem docinho, para  ajudar a recuperar o estrago no estômago da neta. Por muito tempo, Lili dispensou a linguiça nas refeições. 

Na vida rural, tudo que era mal estar se curava com chá. No inverno tomávamos chá preto no lanche da tarde como bebida quente, apenas para aquecer. Nos aniversários de Lili sempre havia uma torta bem recheada, merengues, rosquinhas de polvilho, pudim, tudo acompanhado por uma bela xícara de chá preto.

Os chás para dores e mal estar eram recomendados e alguém sempre conhecia alguma erva específica para cada enfermidade do corpo. Chá de cidreira para acalmar, chá de boldo e losna para o estômago, chá de carqueja para diarreia, chá de malva para fazer um gargarejo quando se tinha dor de garganta ou alguma ferida na boca, chá de camomila para enjoo e também pata aliviar a tensão da dor. E sempre tinha alguém na família que era a enciclopédia dos chás. Este era o caso da tia Maria.

Tia Maria era uma mulher alta, de fala mansa, sorriso afável e acolhedor. Usava o cabelo sempre curto e  na maioria das vezes vestia saia e blusa. Também era calma para andar, não se apressava, ia caminhando devagar e conversando. Era a filha mais velha do vô Alberto e vó Cinda e como filha mais velha ajudava a cuidar dos irmãos, era responsável pelas irmãs menores e o irmão mais jovem. Dizem que se dedicava a tarefa de dar banho neles, vesti-los e penteá-los, além de fazer tranças nas meninas e muito chá pra meu tio Ruco. Na adolescência aprendeu a fumar cigarro de palha, minhas tias contava que ela e a prima Amélia para fumam escondidas, temiam ser repreendidas pelo vô Alberto, mas ele acabou descobrindo pelo cheiro que vinha do alto das árvores, ondes elas se acomodavam para fumar um palheiro. 

Tia Maria se casou cedo e foi a primeira sair da fazenda para morar em uma chácara localizada em umas terras da família, que ficavam a uns poucos quilômetros da casa dos pais, situada logo depois da velha ponte de madeira do arroio do Salso. Minha mãe passava temporadas com ela, especialmente, quando nasceram os seus primeiros filhos. Anos mais tarde, mudou-se para cidade, e levou com ela os aprendizados de uma vida no campo e as sabedoria sobre os chás.

Na cidade, minha mãe se aproximou ainda mais da tia Maria, pois tínhamos ido morar na mesma rua, um quadra da casa dela. Todos dias, após o café da tarde, minha mãe fazia uma visita, tinha uma rotina de visitá-la no mesmo horário. Elas combinavam uma passada no cemitério para levar flores para algum familiar, nas datas de nascimento e morte, também idas à missa, visitas às primas e comadres,  muita conversa sobre as novelas que assistiam juntas. 

Com um cigarro no canto da boca, tia Maria estava sempre disponível para uma conversa na porta da casa, que ficava bem junto da calçada. A casa dela era fácil de entrar, a porta da frente nunca estava trancada ou chaveada, era só mover a maçaneta, entrar e chamá-la. Pela lateral da casa havia também um portão pelo qual se entrava em um terreno grande, já na chegada a gente se deparava com um cachorro buldogue muito feroz preso em uma corrente, por vezes também estava o cavalo do tio Adão encilhado, debaixo de uma sombra, além de ter muitas galinhas ciscando soltas pelo terreno. 

Do terreno podia-se acessar os fundos da casa e dar em um pátio interno onde havia um poço velho que não se usava, sobre ele tinha um quantidade de vasos dispostos com mudas de sementes que ela colhia ou ganhava, tinha mão boa para flores e plantas, parece que tudo que ela plantava nascia e crescia bem. À direita, uma área cercada com roseiras, muitas flores e algumas orquídeas Ao fundo, uma saída lateral entre o muro do vizinho e o galpão, chegava-se à horta, onde ela cultivava temperos, canteiros com várias verduras e muitas ervas para os chás que costumava fazer e oferecer para quem necessitasse: vizinhos com algum mal estar, minhas tias solteiras com ressaca ou enjoadas do estômago, e meu tio Ruco quando ele ficava ansioso ou nervoso. 

No verão, ela sentava com o marido na calçada em frente à casa até tarde da noite. Durante o dia, ela dava umas espiadas no movimento da rua do portal da casa, saudava as comadres que passavam, ficava sabendo das novidades da cidade, conversava com os parentes. Ali ela acolhia muita gente com aquele sorriso afável, olhar enviesado e muita calma. 

Era só sentir o cheiro de pão novo que lá estava Lili na cozinha da tia Maria. E o cheiro bom da comida exalava pelo ambiente, invadindo o corredor, passando entre o exuberante vaso com flor de maio, todo florido, naquela cor que chamavam rosa maravilha. Nas primeiras dores da menstruação, assustada Lili se socorria na casa da tia Maria, porque lá sempre tinha um chazinho quente, o chá dela era como um colo. Sinto o gosto doce e o aroma marcante de camomila.

Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...