sábado, 19 de setembro de 2020

O dia de fazer o pão


Na saída da porta da cozinha, na casa da fazenda, havia uma área coberta que permitia ir à dispensa para buscar o que era necessário para cozinhar: panelas, formas, farinha, açúcar entre outras tantas coisas guardadas naquela peça, onde também se preparavam as massas de pão, biscoitos, bolachas. Nessa área coberta tinha um tanque, uma pia, a tália de barro encaixada em um suporte de madeira, com latas de azeite com alças de arame colocadas, propositalmente, na borda da madeira do suporte para aqueles que quisessem beber a água fresca do poço, pois a tália era abastecida pelo Vergilino várias vezes ao dia. Em frente à tália ficava a caixa da lenha de cor cinza claro, transformada em o banco preferido do Vergilino enquanto ele aguardava o almoço. Ela também era o lugar onde eu sentava no dia de fazer pão e batia as claras em neve, em uma bacia grande de barro, para pão de ló que a vó Cinda assaria mais tarde. Ali também, algumas vezes, me colocavam a bater gemada para um bolo ou bater a nata do leite tirado nas ordenhas da semana e que era recolhida até ter quantidade suficiente para fazer uma boa manteiga. Pequenas tarefas e grandes aprendizados de Lili.

O dia de fazer o pão era dia de agitação, de muito alvoroço desde das primeiras horas da manhã, a começar pelo ponto do calor do grande forno, que era preparado desde cedo para que, na virada do meio-dia, estivesse no ponto para assar os pães. Se o dia fosse de vento norte minha mãe e minha vó tomavam o ritmo desembestado do vento, os humores era sentidos de longe e pelo tanto que o Vergilino resmungava enquanto preparava a lenha e cuidava de manter o fogo e as brasas para aquecer o forno, sendo requisitado a toda hora por elas. 

O forno se localizava na área ao lado da dispensa, bem no fundo da área coberta, à esquerda desta área havia duas macieiras, uma folhagem de flores roxas contra parede lateral do forno e, na parte detrás, pé de hortênsias frondosos, em cores que iam do rosa claro ao azul intenso. Na outra lateral do forno havia um estreito corredor, onde se depositavam as lenhas cortadas para o fogão da cozinha e pedaços de lenha maiores e mais grossos para o forno grande. Nesse espaço havia também uma mesa de madeira já bem gasta e um banco comprido, naquela mesa as crianças almoçavam no verão em dia de casa cheia, ou era usada por convidados, como vizinhos e parentes, em dia serviço de campo. No dia de fazer pão, sobre a mesa ficavam as fôrmas, feitas artesanalmente de latas, já prontas com os pães, aguardando a hora de irem para o forno, e também as gamelas para colocá-los depois de assados. 

O pão era feito na sexta-feira, quando havia algum imprevisto, no sábado. Cedo da manhã minha mãe vinha de casa, entrava pela entrada do tanque e se dirija à dispensa para preparar o fermento, ou já o trazia preparado de casa, e iniciava a fazer, e depois sovar, as massas. Enquanto a massa do pão crescia, ela providenciava a massa das roscas de nata e a vó Cinda preparava a massa do pão de milho. Esse pão de milho era uma massa mole, quase uma polenta, colocada com uma concha sobre a fôrma, depois de assado ficava com aparência de um bolachão. Era o pão para os empregados, além de mais nutritivo, durava mais. Lili era requisitada para ajudar fechar as roscas de nata com as pontas dos dedos e levar as fôrmas para colocar sobre a mesa da casa do forno. Minha mãe fazia também biscoitos com a mesma massa do pão, que o pessoal da casa consumia logo que saia do forno, o famoso pão quentinho para o café da tarde. Ela ainda preparava pãezinhos especiais para as crianças com formatos de bichinhos, decorados com olhos de feijão: pombinhas, lagartos, corujas. As roscas, biscoitos e o pão de ló, cortado em quadradinhos e torrado, se guardava nas latas decoradas com figuras de passarinhos sobre um fundo branco e adornadas lindamente com tampas vermelhas. As latas ficavam guardadas no armário azul calipso localizado na passagem da cozinha para quarto da vó Cinda. 

Lili se deliciava com queijo, mel e o pão caseiro na casa da vó Xiruca. Na porta dos fundos da cozinha, havia um forno que lembrava o modelo da casa dos esquimós. Ele ficava bem alto do chão, porque eu não alcança, parecia pequeno, mas vó Xiruca fazia nele os pães para alimentar sua numerosa família. Como lá na casa da vó Cinda, na casa da Vó Xiruca também se fazia outras massas, como as das roscas de leite em um formato em que a massa era de uma rosca torcida, eram macias e crocantes ao mesmo tempo. Guardei o sabor desta receita no meu paladar para sempre. 

Já as roscas de nata da minha mãe eram doces e quando se mordia elas esfarelavam na boca de tão macias, ideais para acompanhar um chá ou um café, feitas com: uma xícara de nata, duas xícaras de açúcar, um ovo, uma pitada de sal, uma colher de manteiga, uma colher de chá de sal amoníaco e farinha até dar o ponto de modelar as roscas. Essa receita traz um aroma adocicado daquelas tardes em que transformávamos a dispensa e casa do forno em uma padaria, pães para o café da manhã do pessoal da casa, para nós lá de casa e para a vó Cinda. O pão de ló, os biscoitos e roscas para as visitas e o pão de milho para os empregados. Todos saboreavam as delícias daquelas fornadas semanais, do dia de fazer o pão.   



 



     

sábado, 12 de setembro de 2020

Maria baila um xote

Sentada na lateral da mesa, Lili desenhava paisagens sob a luz do Aladin, o lampião à querosene que iluminava a cozinha. No entanto, para olhar bem dentro das panelas sobre o fogão à lenha, era preciso segurar um castiçal com uma vela branca um pouco mais que altura do peito, para ter uma maior claridade e analisar o ponto da comida, nosso jantar que fumegava no calor do fogão. Maria começava o jantar ouvindo o programa de músicas gaúchas na rádio Jaguari, no horário do final da tarde, antes do programa Voz do Brasil. Assoviava uns trechos de alguma vanera ou um xote, pois a música tornava a tarefa de fazer o jantar um evento, principalmente, quando estávamos em poucas pessoas na casa e jantávamos todos na mesa da cozinha. Maria sentia-se acompanhada e integrada aos demais que faziam seus afazeres em volta da mesa: Lili desenhava seu mundo de cenas da vida no campo, vó Cinda fazia o seu crochê e o Vergilino escolhia o feijão para o almoço do dia seguinte. Quando estava mais animada, por algum trago que tomava às escondidas, Maria bailava pela cozinha, me puxava de onde eu estava sentada e bailava comigo, sem deixar de dar umas gargalhadas ao ver que eu não conseguia acompanhá-la. A bebida soltava-lhe o pudor e a condição de empregada ficava-lhe menos definida.

Maria era um mulher magra, de cabelos curtos e crespos, nariz achatado e uma pele com os poros cheios de cravos, quando caminhava parecia levitar, era ligeira e risonha, mas eram as gargalhadas sua marca registrada. Elas eram reconhecidas de longe, pois achava graça das nossas brincadeiras, das nossas brigas e das nossas invenções. Sabendo do espantada que ela era, preparávamos várias formas de assustá-la, como colar um lençol branco por cima e fingir ser um fantasma. Em silêncio e no escuro, escondidos no último quarto da casa, lá no final do longo corredor, começávamos a chamá-la, ela corria para nos atender e ao abrir a porta aquele que estava vestido com lençol se atirava sobre ela. Maria dava um grito ensurdecedor e depois desatava a dar risadas e nos chamar de medonhos. 

No inverno Maria fazia bolinho de chuva enquanto jogávamos uma partida de canastra ou dorminhoco. De vez em quando chegava perto da mesa da sala de jantar para espiar o que fazíamos, dava uma olhada no jogo, dava uma provocada com o jogo de cada um, e soltava mais uma boa gargalhada com as nossas respostas. Ela se dava tempo para nos apreciar, parecia não ter pressa de terminar com a pilha da louça do almoço ainda sobre a pia da cozinha. 

Muitos domingos da minha infância assim como dos meus irmãos e primos eram programados pela Maria em mais aventura, o que incluía um acampamento com direito a passar o dia no meio do mato, entre pitangueiras e maricás, uma pescaria no açude do campo das vacas mansas, um piquenique durante as tardes de domingo, regado a bolo, k-suco ou um empadão que ela preparava especialmente para a ocasião. Uma vez Maria nos levou até o córrego na saída do açude grande, a água descia por baixo de uma ponte de madeira, pois a estrada ainda não era asfaltada, ali se pescava lambaris e se podia correr atrás das preás que se escondiam no matagal. A gente podia pescar no alto da ponte, sob vigilância dela, que cuidava dos carros. Enquanto não avistava os carros vindo pela estrada, ela bailava sobre a ponte e cantava o xote laranjeira, sua música preferida, rodava feliz com sua saia plissada cor de rosa já bem desbotada. Ela se divertia conosco fazendo aquelas tardes de domingo mais intensas e inesquecíveis.

Maria me ensinou os primeiros pontos de tricô, me auxiliava cada vez que eu caia no choro porque perdia os pontos na agulha e o tricô ia se desmanchando. Uma noite, cansada e sem saber onde iria dormir com a casa lotada de gente, adormeci na cama dela, ao levantar vi que havíamos dormido uma para o lado da cabeceira da cama e a outra para lado dos pés. Ela dava um jeito de eu não voltar para casa dos meus pais, porque queria seguir ali na casa da Vó Cinda, com as tias e os primos. 

Mas Maria não só nos alegrava com os passeios domingueiros, ela criava receitas, algumas exóticas para nosso paladar de criança, como omelete com as beldroegas do jardim, vísceras de ovelha empanadas e o doce de geleia de mocotó, comíamos como se fosse uma gelatina de doce de leite. Era especialista em doce de laranja azeda em calda, pudim de leite e carreteiro. Com ela, aprendi comer coalhada com açúcar no café da manhã e arrancar com mãos na lavoura as batatas para sopa da noite. Ensinamentos e sabores que ela nos oferecia como novidade, e assim também nos expandia o paladar.

Uma vez por mês ia visitar seus pais e ver seus filhos, alguns muito pequenos, talvez por esta razão nos oferecia tanto afeto e acolhida. Vi lágrimas nos olhos dela por saudades dos filhos e também por um amor mal resolvido. O vento às vezes me traz o eco das gargalhadas generosas da Maria se divertindo com a gurizada da casa. Se o Vergilino era nosso guardião, a Maria era nossa recreacionista rural, por isso ambos são memórias felizes da Lili. 

domingo, 6 de setembro de 2020

Esconderijos secretos e brincadeiras singelas

Lili aprendeu muito cedo o quanto era divertido se esconder, embora não tivesse noção dos efeitos que essa brincadeira produzia e, com pouco mais de dois anos de idade, descobriu a magia de brincar de esconde-esconde. Minha mãe e minha vó Cinda passaram uma manhã a minha procura, desesperadas com meu sumiço. A ingenuidade da brincadeira provocou muita preocupação, mas lá estava eu espremida atrás da porta de um quarto, achando divertido toda aquela movimentação em busca da Lili.

O fato é que nas minhas memórias mais remotas, a primeira lembrança é a voz alta e brava da vó Cinda, uma lembrança difusa dela me reprendendo à beira do poço do arvoredo. O tal poço era cheio de barro, tinha uma água com um limo verde boiando na superfície, água suja e fétida na qual os porcos se banhavam. Lá estava eu na borda do poço, no meio das macegas, depois de correr incansável atrás de uma galinha com seus pintinhos. O medo da minha vó estava claro no tom de voz, temia que eu caísse naquelas águas imundas do poço do arvoredo. Esta memória vem como um esboço mostrando-me Lili muito pequena, usando um vestido curto, cabelos loiros com cachos nas pontas e um ar de assustada diante da reação da vó Cinda. O medo da minha vó ficou na minha memória na forma de sentimentos de afeto e cuidado. Experimentar e observar o mundo ao meu redor me vinha sempre como um desafio constante, talvez por esta razão eu procurasse esconderijos e lugares inexplorados. 

Quando chegavam as férias de inverno ou de verão, a casa da vó Cinda se enchia de netos, porque ela era em si mesma um aconchego, às vezes ranzinza, mas com uma amorosidade constante nos gestos e no modo de acolher, que se traduzia em doces, pães, jogos de memória, uma coberta estendida sobre nós em uma noite de frio, ou uma conversa na frente da casa depois do jantar enquanto admirávamos as estrelas. Nestas temporadas explorávamos os cantos dos galpões e do arredores da casa para o esconderijo mais secreto e difícil de ser localizado.   

A brincadeira que mais fazíamos reunindo os maiores e os pequenos era esconde-esconde. Ficar atrás de uma das inúmeras portas dos galpões da fazenda já era tarefa fácil para nós. Os maiores tornavam a brincadeira mais desafiante porque subiam nos cinamomos do pátio dos cavalos, ou no jirau, encontravam lugares impossíveis dos pequenos acessarem. A dificuldade dos esconderijos tornava a brincadeira infindável, sempre sobrava alguém para encontrar e lá se ia a tarde toda na espera de encontrar o último escondido. Outra brincadeira, na verdade uma traquinagem, era colocar um balde de água na parte posterior da porta, deixando um vão muito estreito para passar,  alguém empurrava para passar e levava um banho inesperado. A vítima que mais sofria com essa brincadeira era o pobre do Fidêncio, um senhor barrigudo, de meia idade, que usava uns óculos de lentes muito grossas e vestia umas roupas bem surradas. Era um andarilho que de vez em quando aparecia na fazenda carregando uma trouxa de roupas numa vara. Tinha a preguiça no corpo, se oferecia para pequenos serviços em troca de pouso e comida, mas cedo da tarde já estava acomodado num banco na frente da casa, fumando um palheiro e, às vezes, aproveitando um mate com o Vergilino. 

Logo depois da porta do galpão da charrete, que dava para o pátio e a entrada da casa pelos fundos, chegando até a cozinha, havia um barril enorme, provavelmente de um antigo alambique ou das barricas de vinho de Jaguari. Naquele barril se guardava a colheita do feijão e também a de amendoim, como ele nunca ficava totalmente cheio, então servia como um excelente esconderijo, era pular e puxar a tampa pelo lado de dentro, assim dificultávamos a tarefa de localização. Quando chegava a época da esquila das ovelhas, o galpão da charrete servia de depósito para os enormes sacos de juta com os velos da lã tosquiada das ovelhas. A pilha dos sacos formava um imenso colchão macio e o espaço entre eles podia  também se transformar em um bom esconderijo. 

Outras vezes a brincadeira era simplesmente um pega-pega no extenso gramado da frente da casa, ou provocar um carneiro mal humorado que gostava de correr atrás de nós dando marradas na gurizada, uma diversão movida a gargalhadas. Já na casa da vó Xiruca, o meu brinquedo era fugir de um garnizé invocado, cada vez que sapateava perto dele, o bicho corria desesperadamente para me alcançar e bicar minhas pernas. Descobri um dia que minha calça Lee, novidade comprada na Argentina pela tia Jane, era uma excelente armadura contra o garnizé e nunca mais minhas pernas ficaram marcadas pelas bicadas do garnizé.

Das coisas bobas e singelas de que nos ocupavam nas longas férias de verão na casa da Vó Cinda, estava o banho de chuva aproveitando a água que jorrava das calhas nos cantos do telhado da casa, era uma disputa feita no jogo de empurrões, um banho refrescante, dava-nos um gosto de liberdade indescritível. Também tínhamos tardes de jogo de bolita no chão batido debaixo dos cinamomos. Ao entardecer, o sol descia sobre cerro do Loreto nas bandas do oeste, o calor ia diminuindo, era hora de organizarmos um jogo de caçador e assim cada eliminado passava então ocupar uma ordem na fila do banho. A noite caia e no corredor da casa, com toalha e roupa para trocar nos braços, esperávamos a nossa vez do banho. Depois da janta, ainda tínhamos energia para um jogo de víspora e, já esgotados pelo dia de brincadeiras, caíamos fatigados na cama, em mais um dia de férias felizes no campo.

Carapé

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