domingo, 6 de setembro de 2020

Esconderijos secretos e brincadeiras singelas

Lili aprendeu muito cedo o quanto era divertido se esconder, embora não tivesse noção dos efeitos que essa brincadeira produzia e, com pouco mais de dois anos de idade, descobriu a magia de brincar de esconde-esconde. Minha mãe e minha vó Cinda passaram uma manhã a minha procura, desesperadas com meu sumiço. A ingenuidade da brincadeira provocou muita preocupação, mas lá estava eu espremida atrás da porta de um quarto, achando divertido toda aquela movimentação em busca da Lili.

O fato é que nas minhas memórias mais remotas, a primeira lembrança é a voz alta e brava da vó Cinda, uma lembrança difusa dela me reprendendo à beira do poço do arvoredo. O tal poço era cheio de barro, tinha uma água com um limo verde boiando na superfície, água suja e fétida na qual os porcos se banhavam. Lá estava eu na borda do poço, no meio das macegas, depois de correr incansável atrás de uma galinha com seus pintinhos. O medo da minha vó estava claro no tom de voz, temia que eu caísse naquelas águas imundas do poço do arvoredo. Esta memória vem como um esboço mostrando-me Lili muito pequena, usando um vestido curto, cabelos loiros com cachos nas pontas e um ar de assustada diante da reação da vó Cinda. O medo da minha vó ficou na minha memória na forma de sentimentos de afeto e cuidado. Experimentar e observar o mundo ao meu redor me vinha sempre como um desafio constante, talvez por esta razão eu procurasse esconderijos e lugares inexplorados. 

Quando chegavam as férias de inverno ou de verão, a casa da vó Cinda se enchia de netos, porque ela era em si mesma um aconchego, às vezes ranzinza, mas com uma amorosidade constante nos gestos e no modo de acolher, que se traduzia em doces, pães, jogos de memória, uma coberta estendida sobre nós em uma noite de frio, ou uma conversa na frente da casa depois do jantar enquanto admirávamos as estrelas. Nestas temporadas explorávamos os cantos dos galpões e do arredores da casa para o esconderijo mais secreto e difícil de ser localizado.   

A brincadeira que mais fazíamos reunindo os maiores e os pequenos era esconde-esconde. Ficar atrás de uma das inúmeras portas dos galpões da fazenda já era tarefa fácil para nós. Os maiores tornavam a brincadeira mais desafiante porque subiam nos cinamomos do pátio dos cavalos, ou no jirau, encontravam lugares impossíveis dos pequenos acessarem. A dificuldade dos esconderijos tornava a brincadeira infindável, sempre sobrava alguém para encontrar e lá se ia a tarde toda na espera de encontrar o último escondido. Outra brincadeira, na verdade uma traquinagem, era colocar um balde de água na parte posterior da porta, deixando um vão muito estreito para passar,  alguém empurrava para passar e levava um banho inesperado. A vítima que mais sofria com essa brincadeira era o pobre do Fidêncio, um senhor barrigudo, de meia idade, que usava uns óculos de lentes muito grossas e vestia umas roupas bem surradas. Era um andarilho que de vez em quando aparecia na fazenda carregando uma trouxa de roupas numa vara. Tinha a preguiça no corpo, se oferecia para pequenos serviços em troca de pouso e comida, mas cedo da tarde já estava acomodado num banco na frente da casa, fumando um palheiro e, às vezes, aproveitando um mate com o Vergilino. 

Logo depois da porta do galpão da charrete, que dava para o pátio e a entrada da casa pelos fundos, chegando até a cozinha, havia um barril enorme, provavelmente de um antigo alambique ou das barricas de vinho de Jaguari. Naquele barril se guardava a colheita do feijão e também a de amendoim, como ele nunca ficava totalmente cheio, então servia como um excelente esconderijo, era pular e puxar a tampa pelo lado de dentro, assim dificultávamos a tarefa de localização. Quando chegava a época da esquila das ovelhas, o galpão da charrete servia de depósito para os enormes sacos de juta com os velos da lã tosquiada das ovelhas. A pilha dos sacos formava um imenso colchão macio e o espaço entre eles podia  também se transformar em um bom esconderijo. 

Outras vezes a brincadeira era simplesmente um pega-pega no extenso gramado da frente da casa, ou provocar um carneiro mal humorado que gostava de correr atrás de nós dando marradas na gurizada, uma diversão movida a gargalhadas. Já na casa da vó Xiruca, o meu brinquedo era fugir de um garnizé invocado, cada vez que sapateava perto dele, o bicho corria desesperadamente para me alcançar e bicar minhas pernas. Descobri um dia que minha calça Lee, novidade comprada na Argentina pela tia Jane, era uma excelente armadura contra o garnizé e nunca mais minhas pernas ficaram marcadas pelas bicadas do garnizé.

Das coisas bobas e singelas de que nos ocupavam nas longas férias de verão na casa da Vó Cinda, estava o banho de chuva aproveitando a água que jorrava das calhas nos cantos do telhado da casa, era uma disputa feita no jogo de empurrões, um banho refrescante, dava-nos um gosto de liberdade indescritível. Também tínhamos tardes de jogo de bolita no chão batido debaixo dos cinamomos. Ao entardecer, o sol descia sobre cerro do Loreto nas bandas do oeste, o calor ia diminuindo, era hora de organizarmos um jogo de caçador e assim cada eliminado passava então ocupar uma ordem na fila do banho. A noite caia e no corredor da casa, com toalha e roupa para trocar nos braços, esperávamos a nossa vez do banho. Depois da janta, ainda tínhamos energia para um jogo de víspora e, já esgotados pelo dia de brincadeiras, caíamos fatigados na cama, em mais um dia de férias felizes no campo.

4 comentários:

  1. Muito bem lembrado novamente,tua narrativa é precisa,de um tempo sem maldades,onde o importante era ser feliz🙏

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  2. Descreve lindamente um tempo passsado e puro.

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  3. 😍😍Lembranças!! Que tempo maravilhoso, tudo era tão simples, a vida era fácil de ser vivida. Hoje é tudo tão diferente. As crianças têm tantos brinquedos e não se divertem com nada.

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  4. Lindo, Eliana! Parece que estou revivendo os tempos na casa de minha vó!
    Parabéns pela singeleza do texto. Aguardo outros para ler....

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