sexta-feira, 28 de agosto de 2020

As águas em que nos banhávamos

Uma das melhores diversões, e privilégio da infância no campo, é tomar um bom banho em um açude ou em um rio. As águas em que nos banhávamos não só nos refrescavam no verão como ajudavam a transformar nossa energia uma calmaria, sobretudo, no final da tarde. A ida ao rio Jaguari ou um banho no grande açude do campo de cima era um prêmio pelo nosso bom comportamento e também uma recompensa pelo cumprimento das tarefas que as tias nos delegavam: varrer o pátio, ajudar colocar o lixo no carro de mão, auxiliar na faxina do galpão, colaborar com a limpeza do jardim. Na casa da vó Cinda a ida ao açude dependia da disposição da tia Nira, que se aventurava a levar uma turma de pirralhos para se banhar. A partir do meio da tarde, a cada meia hora, lá estávamos nós em volta dela que, pacientemente, nos ouvia e seguia pedalando na máquina de costura. Quando ela dava o sinal de que estava na hora, era uma corrida para colocar a roupa de banho, providenciar toalha e sabonete, roupa para trocar, pois já saíamos do açude com o banho do dia cumprido.

Lili sempre teve medo das águas barrentas do açude, principalmente, na temporada das sanguessugas. Muitas vezes saíamos do açude com as sanguessugas grudadas nas pernas e só conseguíamos tirar em casa, onde então alguém colocava algo quente para que elas se soltassem dos nossos pés e pernas. Lili se enojava com elas, não se aventurava muito para dentro do açude. Momento pior que esse só o das brincadeiras dos guris mais crescidinhos que me puxavam pelas pernas por baixo da água, para terem o prazer de assistir o meu desespero. O famoso caldinho era uma brincadeira típica dos guris, desafiando-se entre si. Para gerenciar a gurizada, a tia Nira colocava limites de horário para o retorno para casa e estipulava a distância até onde podíamos avançar na água, na maioria das vezes ela nem entrava no açude, sentava para fumar e nos cuidar. Na parte mais alta, antes da chegada à beirada do açude, havia um velho eucalipto onde deixávamos as roupas, e sempre tinha um cusco para vigiar as vacas e as roupas. Antes de voltar para casa, caminhávamos sobre a larga e alta taipa do açude, de lá podíamos apreciar um belo pôr do sol. 

Este grande açude, que muitos chamavam de barragem por causa do tamanho e da profundidade, servia para irrigar as lavouras e para matar a sede do gado. Porém, no início dos anos setenta, a finalidade mais importante que ele ganhou foi fornecer a água, que movida por uma roda vermelha de metal, era bombeada para os canos que chegavam até à casa da fazenda,  abastecendo, assim, uma caixa que possibilitava termos água nas torneiras e no chuveiro. A instalação deste sistema com uma roda mobilizou o pessoal da casa, dos grandes aos pequenos, uma engenharia pensada pelo tio Cláudio, sempre atento e disposto a ter alguma solução que melhorasse as condições da casa da fazenda. Minha vó Cinda não cabia em si de tão faceira, pois era um conforto do qual finalmente poderia usufruir.  

Lá na vó Xiruca este conforto ela nem desfrutou. O açude fornecia a água para quase tudo, ele se estendia ao longo da entrada da chácara, pela taipa se acessava à casa. Era bonita aquela estradinha da entrada contornando o açude, imprimia um ar bucólico que só a vida no campo nos permite vislumbrar. Era um açude que tinha formato de lago, com seus patos e marrecos nadando tranquilamente. Ali a família se banhava no verão e minha vó Xiruca lavava trouxas de roupas. Nunca tomei banho no açude dos patos, porque os medos de Lili não me deixavam arriscar.

Os dias de passeio no rio Jaguari, na altura do Passo dos Vidais, despertava nossa tagarelice e nossa alegria se espalhava pela casa. Lá íamos nós na kombi bicolor cinza-escuro e branca do tio Cláudio, cheia de crianças ansiosas por um mergulho no rio. Corríamos para preparar o passeio, roupas, toalhas, chinelos, um pão ou um bolo, bolachas, afinal a água nos deixava cansados e famintos, ou então levávamos umas melancias, que pegávamos no tabuleiro na beira da estrada onde meu pai as vendia. 

A estrada do Passo dos Vidais até rio Jaguari era de chão batido e com muita areia, ao longo do caminho se avistavam as moradas de alguns parentes, a escolinha, chácaras e lavouras até a entrada no mato. Já dentro do mato uma clareira onde haviam umas duas casas de veraneio e uns banheiros que a prefeitura construiu. Claro, na temporada de férias de verão, o balneário se enchia de acampamentos, acomodados debaixo de árvores frondosas. Para chegar até à água era preciso descer uma rampa, pois o barranco era muito alto pelo lado que acessávamos o rio. A melhor parte de ficar no rio era uma ilha de areia com uns poucos maricás, quase na margem oposta, por isso era preciso cruzá-lo, cuidando de tomar o caminho menos fundo do rio. Os pequenos atravessavam enganchados nos braços dos grandes ou no colo. Nas areias mornas brincávamos, jogávamos bola e podíamos entrar e sair da água na parte mais rasa. Dizem que quando Lili era muito pequena mergulhou toda cabeça em um buraco de água nas margens do rio e foi resgatada rapidamente pelo tio Cláudio, que não desviava o olho na vigilância sobre os pequenos. Meu pai e minha só nos autorizam a ir ao rio se ele fosse o responsável, tal era a confiança nos seus cuidados. 

 O banho no rio Jaguari era uma grande aventura, melhor que a ida nas tardes de domingo, era passar o dia todo no rio, com um churrasco, um carreteiro, milho assado e refrigerante para o almoço. No intervalo, entre os banhos da manhã e da tarde, aproveitávamos para explorar as imediações da mata e brincar com as crianças das famílias dos veranistas acampados no Passo dos Vidais. Depois de já estarmos com os dedos murchos de tanto tempo de molho nas águas do rio, nos reuníamos debaixo de uma árvore e partíamos as melancias. Ao entardecer, quando os mosquitos começavam a nos atacar, regressávamos felizes e exaustos do banho de rio.



Um comentário:

  1. Essa parte dos banhos,nos remete para uma infância sem maldades,tempo de ouro,era só diversão,obg

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