sábado, 15 de agosto de 2020

Visitas na vida rural

As visitas no meio rural realizadas na vizinhança são carregadas de cordialidade e solidariedade. A distância dos centros urbanos torna a vizinhança uma comunidade de afetos, de trocas de gentilezas, de favores, de serviços e de participação nas celebrações familiares. A primeira lembrança de Lili de uma visita é a sensação difusa de uma viagem curta, sobre a qual tem como memória imagens entrecortadas, de que acompanhava o pai e um tio ao interior de Jaguari. Uma viagem na Kombi bicolor do Tio Cláudio, na busca de localizar um familiar da Dida, pois estava agoniada por notícias de um familiar. Ela vivia há muito tempo na Fazenda, auxiliava na lida da casa e na criação dos filhos da minha vó. Foi ela quem deu apelidos carinhosos a todos eles. 

As visitas nas redondezas eram rotineiras desde meu avô Alberto. Nas manhãs de domingo ele encilhava o cavalo, saia muito cedo, dependendo da distância, e retornava para o almoço. Visitava os compadres, os irmãos, os tios e os amigos que moravam nas redondezas. Não tardava muito nas suas visitas, mantinha o ritual domingueiro como uma prática fundamental da vida social no meio rural. Minha vó Cinda já deixava as visitas para os momentos mais necessários, sobretudo, para exercer sua solidariedade. Acudia uma vizinha recém parida, levando uma galinha para fazer um bom caldo, externalizava sua consternação com alguém enfermo, como na vez que visitamos o Tio Penin, trocava mudas e receitas com as comadres e também contribuía com as festas religiosas, doando um frango para assar ou fazer um risoto, ou um saco de batata doce, ou uma abóbora para preparar os doces que seriam vendidos nas festas.

Lili se esmerava em cuidar do vestido de organza na cor rosa antigo, bordado com bolinhas da mesma cor, exposto sobre a cama, já separado para o casamento da filha de um vizinho. Era o vestido mais bonito que já tinha usado. Minha mãe aconselhou que eu deixasse o vestido sobre a mesa onde estava o cobertor sobre qual ela passava as roupas com o ferro à brasa, enquanto rumava para o banho. A ansiedade tomava conta de mim, e lá fui eu me atrever a passar o vestido, eu mal alcançava na altura da mesa, larguei-o o ferro quente sobre o vestido, mas não consegui passar. O ferro quente grudou no tecido, sobrando apenas uma marca do ferro desenhada bem no meio do vestido, o delicado tecido havia derretido com o calor excessivo das brasas. Claro, minha mãe se desesperou porque precisou providenciar outro vestido para mim, depois de dar uns bons gritos comigo. Lá fomos rumo à casa do seu Nica na charrete amarela para o casamento da sua filha. Era uma festa ao ar livre, debaixo das árvores, onde estavam as mesas feitas com tábuas longas, dispostas sobre cavaletes, já preparadas para o churrasco do almoço: pratos e talheres, o famoso limão com palitos cravados e copos para as bebidas. Era uma casamento matinal, uma cerimônia simples e depois um festejo com muita música e comida. Já passando a metade da tarde, serviram a famosa torta de casamento. Eu corria pelo jardim e pelo pátio, entrando e saindo da casa, espiava o quarto dos pais da noiva onde sobre a cama estavam expostos os presentes dos convidados para os noivos. E claro não comi da famosa torta, ocupada em brincar com as outras crianças da festa. E me sentia feliz com vestido substituto, era lindo igual ao que havia sido queimado.

Outra visita que fiz com a Vó Cinda e minha mãe foi na casa dos vizinhos que moravam mais perto da fazenda, foi uma visita para desejar melhoras na saúde da dona Ilsa. Era uma chácara localizada logo depois que passava a ponte sobre o arroio da Divisa, à direita da antiga estrada intermunicipal, e fomos na charrete amarela como sempre fazíamos nas visitas. A casa por dentro se mostrava muito limpa e cuidada, muitos guardanapos de crochê sobre as mesas e armários. À esquerda da entrada da chácara um açude, com patos e creio que marrecos. Dona Ilsa parecia realmente adoentada, estava muito pálida e parecia muito fraca, tinha o cabelo liso e reto, na altura do queixo, usava um óculos de lentes grossas. Sentei-me de frente para uma das suas filhas, que deveria ser poucos anos mais velha do que eu. Sentada em uma cadeira de palha ela fazia crochê com muita destreza, fiquei observando e pensando que eu ainda não tinha toda aquela habilidade. Inquieta na cadeira só via a hora de sair pelo jardim, cheio de flores coloridas e chegar até o açude, queria fazer como na chácara da Vó Xiruca, correr aqueles patos em cima da taipa do açude pra dentro da água. Mas fui surpreendida por uma pergunta inusitada da dona Ilsa para minha mãe, olhou pra minha mãe questionando se ela já estava fazendo o meu enxoval. Aquela pergunta me torturou toda o caminho de volta pra casa. Mas fui salva pela minha mãe que respondeu à dona Ilsa que antes de pensar em casar eu precisa era estudar. Depois também entendi, que por força de uma saúde debilitada, dona Ilsa via no casamento um futuro para as filhas, pelo menos esta era a explicação da minha mãe cada vez que eu voltava no assunto. Afinal, fazer crochê com tanta destreza eu tinha tempo para aprender , mas naquele o que eu mais deslumbrava era a escola, meu sonho de Lili.        

Na vizinhança do vô Joãozinho e da vó Xiruca também se ia muito frequentemente à casa dos vizinhos, levar uma encomenda, um mimo para as comadres, pedir uma ferramenta emprestada. Naquelas redondezas, as chácaras eram mais perto uma das outras, porque a maioria dos que viviam naquelas terras eram famílias de imigrantes. A proximidade facilitava as trocas e as ajudas entre os moradores. Numa tarde, fomos visitar a Dona Cristina, vizinha e amiga da vó Xiruca. Minhas tias menores e eu atravessamos o campo em direção ao sul, era um campo coberto de carqueja, as pernas iam ficando arranhadas, cruzávamos a cerca da divisa do campo e depois a estradinha de chão e lá estava a casa no alto do terreno. Essa visita estão naquelas memórias difusas, são objetos e cores que me trazem as sensações do campo. Dona Cristina era uma senhora idosa como o cabelo bem grisalho preso na nuca, ela estava sentada em uma cadeira de balanço. Nas paredes, pintadas em tom verde claro, haviam fotos antigas dos familiares, a peça onde ela estava era uma sala longa, na parte dos fundos da casa, como se fosse uma varanda coberta cheia de folhagens. Minhas tias se orgulhavam de me apresentar como sobrinha, embora não tivessem grandes diferenças de idade comigo.

Outra vizinha da Vó Xiruca que visitávamos era dona Amélia, era a vizinha mais próxima. Para chegar mais rápido na casa dela, encurtávamos a distância passando pela cerca do lado oeste do arvoredo, ali tinham dois tocos de troncos de árvore para facilitar a gente cruzar sobre a cerca. Buscávamos alguma coisa, talvez um queijo, que Dona Amélia fazia para vender. Sempre víamos as filhas fazendo serviço da casa. Era uma mulher com um aspecto duro e parecia ser muito amarga. Gritava muito com as filhas e  me dava medo. 

Quando chegava o verão, apareciam muitas vistas na casa da Vó Cinda, primeiro eram netos e sobrinhos da minha bisavó Lídia. A casa ficava repleta de gente. As melhores camas eram destinadas aos vistantes e os da casa se acomodavam como podiam, hospitalidade da educação familiar. Mas o que mais incomodava as minhas tias era a quantidade de louça para lavar, especialmente a do jantar. Lavar louça e panelas de ferro em bacias grandes, com água quente e sabão e à luz de velas, era um serviço cansativo. As visitas na fazenda dobravam as tarefas domésticas das mulheres da casa. Contam que minha tia Jane chegou a apelidar as panelas de ferro de "vacas", por serem grandes e pesadas de limpar, enquanto chorava pelo excesso de louça que se amontoava para lavar. Minha vó Cinda sempre tinha de reserva muitas latas de bolachas, vidros de compotas, garrafas de licor e caixas de doces para dar conta de receber bem os visitantes na fazenda. Mesmo depois da morte da bisavô sempre a casa tinha muitas visitas, ou no fim de semana ou nas férias.

Para Lili as visitas mais esperadas eram das tias e dos primos e primas, que chegavam para as festas de fim de ano e as férias. Era o momento de ter mais meninas para brincar, mais gente para dividir as brincadeiras debaixo dos cinamomos em frente da casa, de caçar vaga-lumes de noite e, quem sabe, dar um passeio na kombi bicolor do Tio Cláudio até o rio Jaguari, no Passo dos Vidais, para um banho fresco em um dia de muito calor.  

3 comentários:

  1. Novamente muito bem relatado,era bem assim,voltei novamente ao passado,obg amiga, irmã, colega 🙏🤗

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  2. Belo Texto, Lili. E escrito num período difícil!
    Beijo grande e boa sorte sempre.

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