terça-feira, 4 de agosto de 2020

Sabedorias de um pai

O melhor colo do mundo é de uma mãe ou de um pai. Quando somos bebês o colo da mãe é nossa segurança, conforto e ninho de afeto, fortalecendo os laços incondicionais do amor maternal. Entretanto, para Lili, o colo que era seu ninho de aconchego sempre foi o do seu pai, pois já bem crescida seguia buscando um lugar de acolhida e mimo no colo paternal. Escrever sobre o meu pai é escrever sobre um modo de olhar o mundo e de compreendê-lo. 
Um dia eu estava no gramado em frente à casa da fazenda conversando sozinha. Eu criava muitas histórias e as verbalizava, assumia a palavra de cada personagem e ia desenvolvendo as minhas narrativas. Eram conversas imaginárias, uma forma de Lili inventar seu mundo na infância. Ele passou por mim e me disse: sonhando acordada? Esta sensibilidade traduz quem era meu pai. Na sua simplicidade captava a profundidade dos gestos e observava como tudo se passava ao seu redor. Para ele minhas histórias eram sonhos enquanto perspectivas.

Seus olhos azuis intensos, herdados do seu avô Antônio, às vezes se acinzentavam, outras vezes chegavam a um verde oliva meio desbotado. Dele Lili herdou esse tom na cor dos olhos e desconfia que uma certa resiliência diante do que a vida nos entrega para ser enfrentado.

Bilo, como todos conheciam meu pai, nasceu em uma família de vida simples e dura. Era o quarto filho de uma família numerosa e sendo um dos filhos mais velhos, logo meu avô o colocou para ajudar na lida dos afazeres domésticos da chácara e no serviço da lavoura. Durante o inverno, com apenas sete anos de idade, saia de madrugada para lavoura de arroz. O frio encarangava os dedos dos seus pequenos pés, pois usava um chinelo velho de borracha, era o que tinha para calçar. Nas famílias como a dele, os pequenos trabalhavam desde muito cedo, fizesse sol, chuva, frio ou calor, cedo da manhã já estavam se ocupando do serviço com os animais domésticos ou já se aprontavam para ir auxiliar na lavoura. Os pais contavam com os filhos para o trabalho no campo.
Estudou pouco, cursou só os anos iniciais, até o quarto ano. Primeiro frequentou a escola junto da Fazenda do vô Alberto, iam a cavalo ele e mais dois irmãos. Atravessavam o banhado da várzea e cruzavam o arroio da Divisa para chegar à escola, lá iniciaram a vida escolar. Tempos depois abriu uma escola mais perto da chácara do vô Joãozinho, e eles passaram a frequentar a escola que, na verdade, era uma sala na casa da dona Mariquinha, a professora. A escola recebia as crianças que viviam nas proximidades, misturavam-se alunos de todas as idades e de diferentes níveis de escolaridade. Meu pai ria ao relatar que ele refazia as contas da Dona Marquinha, que não era lá muito boa na matemática. 

De fato, meu pai tinha a matemática da vivência, da prática. Calculava as distâncias com o número de passos dados entre um ponto e outro. Cada canteiro da horta era milimetricamente alinhado e demarcado com uma linha de pesca. Corria os olhos pelo céu e se orientava com a hora do sol, seu relógio era a sensação da passagem do dia assim como analisava os sinais da natureza para fazer o prognóstico do tempo. Os saberes eram acumulados a partir do que havia aprendido ao longo da vida, mostrava uma inteligência intuitiva. Muito do que sabia fazer era artesanal, trançava caprichosamente réstias de cebola e alho, e trabalhava com as cordas com o mesmo cuidado de quem zelava pelos arreios como instrumento de trabalho e também de uso nos momentos de lazer, porque se orgulhava de ser bom laçador e disso fez seu gosto pelos rodeios. 

Aos doze anos já estava trabalhando na vizinhança. Ele contava que sua especialidade era fazer parvas na lavoura de arroz durante o período da colheita. As parvas eram os montes de palha de arroz na forma de cone. Esta tarefa rendia-lhe uns bons trocados. Nesta idade, diariamente ele e seu irmão mais velho tinham também a tarefa de entregar o leite para os clientes na cidade e no retorno trazer as compras encomendadas pela minha vó ou pelo meu avô.

Por volta dos 16 anos foi trabalhar na Fazenda do meu avô Alberto. Lá conheceu minha mãe, mas ele era o peão e ela filha do patrão. Dois anos mais tarde foi para exército,  permaneceu três anos. Retornou à fazenda para seguir trabalhando, meu vô Alberto, por quem ele tinha muito apreço, já havia falecido. Com o meu avô Alberto se transformou em um um homem campeiro e desenvolveu um olhar sobre o campo que deu-lhe uma imensa sabedoria. O retorno o reaproximou da minha mãe, queria cuidá-la, o romance com ela se concretizou e eu nasci pouco tempo depois. Dentro de quatro anos vieram mais dois filhos. Moramos em frente a casa da fazenda por muito tempo, assim ficamos perto da vó Cinda. Ele passou a se dedicar a criação de ovelhas, um pouco de gado e a plantar melancias. Aos domingos fazia um buraco na terra, enchia de lenha, armava um suporte com varas, espetava carne em espetos de galho de laranjeira, que ele mesmo falquejava, e fazia o seu melhor churrasco.
  
Lili sempre recorda dos gestos de agrado do pai, que vinham na forma de presentes singelos como balas de fruta ou de banana, rapadura ou uma caixa de isopor cheia de picolés, comprados na antiga lancheria do seu Nelson. Cada vez que meu pai ia à cidade fazer compras, era certo que trazia uma barra pequena de diamante negro nos bolsos da bombacha, meu chocolate predileto. Este hábito rendeu-lhe o apelido de tio bala, dado por seus sobrinhos. Um Natal eu tive sarampo, fiquei muito fraca e não conseguia comer, para me agradar ele trouxe da cidade uma garrafa de guaraná e biscoitinhos mignon. Com esse agrado especial, meus irmãos decidiram que ficar na cama comigo era uma boa forma de pegar sarampo e também ganhar guaraná e os famosos biscoitinhos mignon da padaria do seu Darci.

Na antiga casa que morávamos havia um pátio com muitos cinamomos. Meu pai escolhia a melhor sombra no verão para sentar e tomar chimarrão nas horas estabelecidas pelo seu ritual gauchesco. Junto à cerca das imediações da casa, havia um pé solitário de cinamomo onde ele deixava o cavalo encilhado, após retornar de uma campereada. Ali, naquele pé de cinamomo, nosso cachorro foguete deitava quase nas patas do cavalo para vigiá-lo. Mais para frente da casa, entre outros dois pés de cinamomos, ele colocou um balanço com uma tábua e um pelego, fez pra mim e depois todos usamos. Ocupava nossas noites de verão, depois da janta, com jogos de adivinhações. Ouvia as piadas e adivinhações no rádio em programas de humor e depois repetia as perguntas conosco. 

Era um homem pouco instruído, mas muito sociável. Preservava as amizades e as fortalecia com gestos de solidariedade, de auxílio a algum vizinho ou amigo na lida do campo. Cada vez que alguém vinha na nossa casa ajudar a carnear um porco, uma vaca, uma ovelha, levava consigo um pouco de carne, linguiça ou banha. Para as visitas sempre havia um chimarrão novo, uma prosa na sombra de um árvore e na saída uma porção de batata doce, um saco de laranja ou bergamota, uns pés alface ou um maço de couve ou uma dúzia de ovos.    

Ao longo da nossa infância tomou pra si a tarefa de ensinar a lida com gado a todos os guris da família. Leva-os para suas andanças na recolhida do gado, no serviço de curar, apartar ou banhar a gado. Primeiro dava voltas a cavalo com os pequenos, depois os ensinava a andarem a cavalo. Umas das minhas primeiras memórias que tenho é a da sensação de tocar as folhas dos pés de uva do Japão, quando numa volta a cavalo com ele percorremos o entorno da casa da fazenda. 

A vida não foi de todo boa com ele. Teve tristezas, desilusões e, sensível como era, tinha sempre votos de confiança nas pessoas. A palavra valia um contrato verbal mais que um de papel. As decepções as colocou no copo das bebidas que passou a tomar, se tornou um homem enfraquecido. No entanto, atento aos sinais do que era importante na vida, um dia decidiu se reerguer. Contou-me que vendo o neto mais velho, ainda muito pequeno, sentar-se em um banquinho bem junto dele, olhando fixamente nos seus olhos não soube o que responder quando foi indagado pelo neto sobre o que estava acontecendo com ele. Desde então compreendeu, sábio como era, que mudar era um gesto que dependia de não sentir mais vergonha. Sentiu-se muito menor que o neto. A sua grandeza o fez tomar outro caminho e esta sabedoria, como tantas outras que acumulou na vida, foi seu maior legado. 

2 comentários:

  1. Grande tio bilo,tive o prazer de conversar várias vezes com ele, nas carregacoes de melancia,que ia p São Borja,lá valia uma nota, não produz naquelas bandas.Bom Lili,ele serviu exército com meu finado sogro,muito amigos, camaradas.lindas lembranças,que Deus os tenha como exemplo de pais em seu reino,grande beijo colega,amiga

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