sábado, 1 de agosto de 2020

Noites de diversão

Lili descobria o mundo nas coisas simples. A vida no campo possibilitava imaginar o que estava por vir, sem grandes expectativas, tudo era na medida de viver um dia de cada vez. Cada novidade era um horizonte que se alargava. Foi assim com primeira caixa de giz de cera que eu ganhei da tia Betty, com suas maravilhosas doze cores. Gostava de desenhar as pessoas: meu pai a cavalo, minha família, minha vó Cinda.
Na sala de visitas da casa da fazenda eu vasculhava os objetos sobre a cristaleira. Uma concha enorme em que se podia ouvir o som do mar, sem conhecer o mar; uma escultura de um velho, moldada na cerâmica e uma fruteira com um prato de vidro fosco e pé de metal. Podia-se avistar na prateleira de cima uma jarra rosada, com um medalhão oval branco, e dentro dele a figura de uma menina. A jarra rosada era da minha bisavó Lídia, muito bem guardada na cristaleira e inalcançável para Lili. Na parte de baixo da cristaleira se guardavam as louças melhores e, entre elas, uma das tias costumava esconder caixas de bombons. A descoberta deste esconderijo rendeu alguns roubos inocentes depois do meio-dia, na hora em que a casa silenciava. Distribuíamos os bombons entre nós e guardávamos o segredo a sete chaves.
A sala era a peça da casa menos usada, pois apenas se abria a porta da frente em dias de festa ou de visitas. Era um lugar de silêncio, nas paredes os retratos dos bisavós, quadros grandes e pesados com molduradas largas e douradas. Um único quadro na sala que não era um retrato, na parede oposta à cristaleira, era um quadro do coração Jesus, como se ele estivesse justo naquele local com o propósito de proteger a casa e zelar pelos antepassados. Sobre um tapete de couro de vaca, bem no centro da sala, uma mesa escura com seis cadeiras. Abaixo da janela, um sofá de espaldar e braços torneados, com assento de um couro plastificado de uma cor que lembrava a de uma gemada bem batida. Predominavam na casa as cores amarelo claro em alguns objetos e móveis, como as camas de ferro, e nas paredes, um tom de azul celeste. Acompanhava este sofá, que chamavam de namoradeira, duas cadeiras de braço. O que destoava daquela sala sóbria e clássica era um sofá-cama cor de cenoura. O sofá das dormidas coletivas das crianças da casa, quando havia muita gente para pernoitar, a sala se transformava em nosso quarto, cheio de nossas risadas e conversas até tarde da noite. A sala ganhava vida nas noites das crianças. Nos dias de chuva, deitávamos no piso da sala para jogar varetas. Os jogos eram novidade trazida pelos primos ou nos davam de presente de aniversário e serviam para nos aquietar e nos ocupar nos dias de inverno. Nesta sala também Lili começou sua aventura pela arte do desenho, desenhando sua tia Jane e o namorado.  

Do mesmo modo que na casa da vó Cinda eu me encantava pela jarra rosada, na cristaleira da sala de estar da casa da vó Xiruca eu me deslumbrava por uma miniatura, um conjunto de café, branco e dourado, feito de porcelana. Naquela sala ampla de uma casa simples de madeira, os móveis eram bonitos e bem distribuídos no ambiente. Logo na entrada da sala, à esquerda uma grande cristaleira, um conjunto com um sofá e duas poltronas de braços vergados, forrado em um tom de marrom claro. Ao fundo, estava a sala de jantar com uma mesa de pernas torneadas, um conjunto de cadeiras e um armário com que tinha nas portas vidros verdes, na forma de losangos, contrastando com a cor castanho claro da madeira do móvel, que ganhava mais beleza com os lindos puxadores de metal escuro. Era tão larga a sala para os olhos de Lili que nela podia dançar e bailar livremente naquele espaço entre sala de jantar e o corredor onde, sobre uma prateleira, o rádio tocava as músicas gauchescas preferidas das tias, alegrando os domingos.

O rádio portátil com botões na parte superior, forrado de couro era sempre permitido aos mais velhos, principalmente aos guris. Lili fica desapontada, era a única menina, a desvantagem de ser mulher vinha na hora da disputa pelo rádio. Da janela do quarto eu podia ouvir as risadas dos guris e som alto do rádio, me restava deitar ao lado da vó Cinda e esperar chegar o meio da tarde para, então, ter uma nova oportunidade de conseguir o rádio. Mas nada superou as expectativas de ter o rádio em mãos do que a chegada da televisão.
A primeira televisão que chegou à fazenda era movida à bateria. Uma televisão de tela pequena, a parte de trás na cor turquesa, imagem preto e branco que, para ficar mais nítida, dependia do vento batendo na antena externa, instalada logo na saída para o pátio, muitas vezes a imagem ficava com  chuviscos atravessados na tela. Vó Cinda gostava de futebol e a televisão chegou para que ela pudesse acompanhar a copa de 70. Sentávamos nas cadeiras da sala de jantar para olhar os jogos. Dali olhávamos a pequena televisão localizada na parede estreita entre as duas basculantes da sala de jantar. Acima da televisão havia um quadro oval de madeira, com uma pintura a óleo de uma pastora com suas ovelhas ao entardecer. Esse quadro minha vó Cinda ganhou de presente de uma vizinha que era dada às artes como a pintura de telas. 
Lili lembra pouco dos jogos da Copa, mas foi invadida de imaginação com as novelas. Acalantou o sonho de ser atriz, algo que nunca havia cogitado naquele seu mundo do campo. Eu acompanhava a vó Cinda no horário das novelas, para ver Mulheres de Areia e alimentar meu sonho de ser artista. Vergilino se aproximava pela porta lateral e se acomodava num canto, se encantava não sei se com as novelas ou com o aparelho de televisão. Era um mundo novo, trazido pela tela da televisão, as noites já não eram tão monótonas e nem estávamos tão distantes nem tão isolados na Fazenda.
Além da televisão, depois da janta, quando casa tinha mais netos, jogávamos víspora, um jogo de bingo. Para marcar os números no tabuleiro, que meu pai cantava a cada rodada, usávamos grão de milho ou feijão. Minha vó na cabeceira da mesa, meu pai em um dos lados e os netos que tomavam seus lugares na grande mesa de jantar, às vezes alguma tia se somava ao grupo. O jogo era uma aventura de risadas, choros, gritos e alegrias. Outros dias jogávamos memória com a Vó Cinda, que se divertia espiando os cartões para memorizar a localização ou para encontrar o par da peça que tinha nas mãos. Cada espiada dela em um cartão era um coro de netos gritando: "não vale, não vale". Mas era justamente essas risadas e gritarias que a divertia e criava laços de afetos inesquecíveis dela com seus netos. Lili estava sempre junto, encantada com as novidades, colorindo seus desenhos, aprendendo a vez de jogar e não desistir tão fácil de seus sonhos.
No verão, a diversão à noite ficava por conta de estender alguma colcha ou pelegos no gramado da frente da casa para olhar as estrelas, localizar o cruzeiro do sul entre a lenheira e o famoso pé de ipê rosa da Vó Cinda. Procurávamos estrelas cadentes e os sputniks, como chamávamos naquela época os satélites se movimentando no céu. Uma vez que outra inventávamos máscaras iluminadas com casca de melancia para dar sustos na Maria, a senhora que trabalhava na casa e era muito espantada, sempre se assustava com nossas traquinagens. Caçávamos vaga-lumes para fazer lanternas e assim seguíamos brincando, rindo e gritando no largo gramado além do portão do jardim da casa.    

3 comentários:

  1. Show Lili me fez recordar a copa de 70 que olhei com seu Augustinho e dona Bibiana na casa deles tantas lembranças continua sempre escrever que tá maravilhoso.

    ResponderExcluir
  2. Mais belas recordações lilli,tu não esquece nada.a copa de 70 olhei numa vizinha, não tínhamos tv,o resto do relato, com muitas famílias, senão todas era a mesma coisa,valeu mais uma vez, parabéns

    ResponderExcluir

Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...