quinta-feira, 22 de abril de 2021

O quarto dos guris

Aos seis anos e meio fui para escola. Sai da largueza que só a dimensão do mundo rural pode nos dar e deixei para trás o hábito de andar descalça, de caminhar devagar na grama evitando pisar nas rosetas. Lili nunca gostou de usar calçados, gostava de sentir a terra, o frescor da grama úmida pelo orvalho da manhã ou pelo sereno do final da tarde. Entrar na escola naquela época significava me disciplinar e adotar o uso do avental branco, com minhas iniciais em forma de monogramas no bolso, caprichosamente bordadas pela minha mãe, meias brancas até altura do joelho e usar os desconfortáveis sapatos pretos. Lá pela quinta série passamos a usar camisas brancas, saias azul-marinho e as mesmas meias brancas esticadas até o joelho. Nesta época podíamos usar, além dos sapatos pretos modelo colegial, as congas brancas ou azul-marinho e também o famoso kichute, uma versão grosseira de tênis na cor preta com solado de borracha, que mais parecia ser feito do mesmo material com que se fabricavam pneus. Quando arrastávamos os pés ou fazíamos fricções no piso, eles deixavam riscos escuros nas cerâmicas vermelhas da cozinha do chalé em que fomos morar na cidade. Meu pai comprou o chalé para que minha mãe e meus irmãos também viessem morar na cidade para estudarmos. Eu já morava com os tios há pelo menos dois anos. Foi por decisão da minha mãe que deixamos meu pai no campo, morando na casa em frente à casa da fazenda, para que todos pudéssemos ir ao colégio. Ela fazia jus ao desejo de que frequentássemos a escola, participava ativamente da nossa vida escolar, nunca deixava de ir a uma reunião de pais. Mas religiosamente toda sexta-feira voltávamos para o campo. Lili já descia do ônibus rumo à casa da fazenda, com mais idade e há muito morando todos fins de semana com a vó Cinda, eu tinha então conquistado uma prateleira e uma gaveta na penteadeira do quarto dela. Eu me revezava no uso de uma ou outra das camas das tias, pois a vó usava a cama do meio, de frente para janela, de onde podíamos apreciar a lua subindo enquanto a noite avançava. Quando todas as tias estavam na casa, eu mudava para quarto de casal que dava para o pátio, bem na altura do poço, entre o banheiro e o último quarto da casa, à esquerda do final do corredor, que era o quarto destinado aos guris.

O quarto dos guris era meu refúgio, lá eu tirava um cochilo de tarde e ficava lendo, em geral as revistas Manchete, Realidade e Cruzeiro da tia Jane, muito bem guardadas na parte debaixo do sofá-cama cor de cenoura, encostado na parede que separava a sala do corredor principal da casa. Aquele sofá contrastava com a sobriedade do resto da sala, estava sob o olhar solene dos meus bisavós Lídia e Alfredo, naqueles retratos em quadros de molduras douradas e rebuscadas, e que em nada combinavam com aquele sofá de cor radiante. Às vezes me entediava com as leituras e passava a vasculhar o gavetão do guarda-roupa. A gaveta ficava na parte inferior do móvel, era alta e pesada, com dois puxadores em forma de concha. Ali dentro havia um mundo, muitas lembranças da família espalhadas entre caixas de madeira e em outras que eram de embalagens de camisa. Elas eram cheias de fotografias, recortes de jornais antigos, cadernos dos meus tios e tias do tempo do internato no colégio de freiras de Jaguari. Na parte superior do guarda-roupa, havia umas poucas roupas penduradas nos cabides e, na prateleira, algumas cobertas. Na reforma da casa, as tias decoraram a parte interna das portas com recortes das charges do Amigo da Onça, de tanto ler, mesmo não entendendo muito a ironia daquele humor tão crítico, eu decorava as falas e as imagens.

Assim que entrava no quarto, encontrava-se à esquerda um móvel de cor clara, pintado de amarelo, em um tom meio desbotado. Havia poucos objetos expostos sobre o tampo de madeira forrado com um plástico estampado com flores miúdas, sobre ele nada mais do que um castiçal de velas e umas embalagens de desodorante, um guardanapo de crochê e um vaso de porcelana. Ele foi alocado neste quarto depois da reforma casa, sempre foi uma sapateira junto ao antigo quarto de banho da casa. Na parede, acima do móvel, tinha um espelho de moldura larga, levemente arredonda na parte de cima, também pintada de cor amarelo desbotado. Muitos dos móveis da casa foram revitalizados e pintados nesta única cor, o que fazia com que eles sempre contrastassem com tom azul céu das paredes, o que dava um certo charme aos ambientes. Neste armário se guardavam calçados velhos, chinelos, botinas, alguns já com muitos anos de uso, eram também guardadas as sandálias de plataforma muito usadas pelas minhas tias. Atrás da porta havia um cabide de madeira com casacos, capas de chuva e chapéus pendurados. Por um tempo também esteve pendurada uma espingarda, escondida bem no canto da parede. De cada lado da peça, ficavam dispostas duas camas de madeira encostadas nas paredes, ao fundo, a janela de vidro, uma basculante por onde entrava a luz da tarde e muito calor no verão, só amenizados por uma cortina grossa, feita de um tecido pesado, de cor clara e bastante rústica. 

Este quarto, muito antes de abrigar os netos da vó Cinda e, embora fosse atribuído aos guris, sobretudo porque era usado por eles durante as férias da escola, sempre foi o quarto de hóspedes temporários, de casais que ficavam longo tempo na fazenda. Por um bom tempo moraram ali tia Cecília e tio Bento, irmão do meu avô, logo que se casaram, Posteriormente, tia Maria e tio Adão se hospedaram no quarto em um período que meuavô esteve doente. Meu pai e minha mãe moraram por mais de dois anos nesta peça, era uma parte da casa mais reservada e possibilitava uma certa privacidade de quem o habitava, por isso muitos familiares se hospedaram nele. Antes da reforma da casa, o quarto tinha outros móveis e duas portas. Tornou-se o quarto dos guris com saída dos meus pais, pois tio Ruco ainda solteiro passou a usá-lo assim como os netos mais velhos quando visitavam a fazenda. 

Apesar de simples e acolhedor, era o último quarto da casa, dava para o lado do pátio, bem na parte da casa onde o teto ia descendo, acompanhando o declive do telhado. Ao sair da peça, dava-se no fundo do corredor, quase na porta alta que abria em duas folhas, por onde se tinha acesso direto ao grande galpão da charrete amarela. Era o aconchego e o calor do sol da tarde do quarto dos guris que no inverno era prazeroso para Lili tirar cochilos em um daquelas camas, sobre aqueles colchões feitos de capim Santa Fé, costurados com rigor e capricho pelas mulheres da casa. Às vezes pinicavam, mas eram firmes e dizem que, seguidamente, eram expostos ao sol e revisados por causa dos percevejos.

O maior fascínio de Lili era mesmo revirar as caixas de madeira e as de camisa. Deslumbrava-se com os retratos de familiares, analisava as imagens desbotadas em tons de sépia. Registros de um passado muito remoto, parentes vestidos com a elegância dos ternos bem ajustados e de mulheres com vestidos longos e ricos em detalhes, cabelos presos e rostos com traços, ao mesmo tempo, fortes e delicados. Uma que outra foto não era retrato, como a famosa foto do tio Meirelles guiando uma carroça antiga. Ele era casado com tia Idalina, irmã da minha bisavó Lídia. O casal viveu muitos anos na fazenda e dizem que depois de ficar viúva tia Idalina também morou neste quarto. Quanto mais eu revirava aqueles guardados, os cadernos de desenho do tio Ruco e da tia Jane, os jornais do início do século XX, que meu avô Alberto recebia dos parentes com notícias do país, tudo ali parecia aguçar minha imaginação. Neste quarto, aos doze anos comecei a me interessar pela escrita e escrever os primeiros poemas e textos de novelas. Lili povoava seus sonhos com estórias de outros tempos, guardava tantas memórias que sequer podia dimensionar o quanto elas afetavam sua própria história, pressentia o futuro costurado nos detalhes daquelas recordações, engavetadas no velho guarda-roupa do quarto dos guris.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Tradições da Páscoa

O sinal de que a Páscoa se aproximava era quando se iniciavam os preparativos da pescaria nos dias que antecediam à semana Santa. Lili acompanhava o preparo que o pai e os tios, que durante um tempo trabalharam na fazenda, arrumando linhas, redes e anzóis para a pesca nos açudes do campo de cima ou o das vacas mansas e, às vezes, no arroio da Divisa. Também, uma vez ou outra, eles pescavam nos açudes da vizinhança: na chácara do Dr. Ayres ou na do Seu Noé. DE véspera lançavam as redes e as linhas nas águas, as deixavam na espera para fisgar, nas linhas, ou enredar na rede, alguns peixes durante a calmaria da noite. Meu pai e meus tios herdaram o gosto pela pescaria do seus tios Luís e Adolfo, com quem costumavam pescar na infância nos arroios do Salso e da Divisa e com eles aprenderam os rituais da pesca e também a contar estórias de pescador. 

Minha mãe e minha vó Cinda, pelo menos dois meses antes da Páscoa, já tinham preparado as passas de pêssego que elas chamavam de origone. Secavam as lascas da polpa do pêssego e as colocavam numa forma no sol durante dias, para desidratar e secar, depois guardavam-nas em potes bem fechados até a sexta-feira santa. Cedo da manhã elas preparavam o doce para servir no meio da tarde, com canela polvilhada, dando um toque especial ao famoso arroz com pêssego, a sobremesa tradicional da sexta da paixão.

Nas primeiras horas da sexta-feira, no sereno da madrugada, antes do sol sair, meu pai já tinha percorrido o campo e feito a colheita da marcela. Teríamos chá para boa parte do ano. Em seguida, ele começava a providenciar a fritada de peixe para o almoço. Com uma boa porção de peixes: jundiás, traíras, piavas e grumatã estava garantido o almoço do dia. Se armava uma trempe no fogo do chão, sobre ela uma caçarola com banha quente e se fritavam as postas temperadas e empanadas com farinha de trigo e de mandioca. Com as postas do jundiá meu pai fazia um ensopado bem temperado. Para as crianças sempre separava-se a parte da cabeça dos peixes, para evitar que alguns de nós se engasgasse com a espinha. Lili aguardava ansiosa o pai retirar a espinha das postas, para que pudesse comer com tranquilidade. Confiava no cuidado dele.

No sábado, pós sexta da paixão, acordávamos já com um mantra religioso repetido pelas tias, era o "hoje é dia de tirar aleluia". Nunca entendi bem porque nos sentenciavam tanto, era dia de aplicar o castigo pelas teimosias e traquinagens acumulado durante todo um ano. Mas tudo ficava no plano da possibilidade, o temor ficava no ar, porém ninguém se atrevia a tanto. Nos mantinham na linha só fazendo as promessas de castigo. O dia passava devagar pela ansiedade na espera pelo domingo de Páscoa, dia de ganhar doces. Só parávamos para apreciar a lua cheia que despontava alaranjada e imensa por trás da frondosa timbaúva, à direita da porteira de entrada da fazenda. 

No domingo de Páscoa já acordávamos mais cedo que o normal, na expectativa de procurar os ninhos com os ovos de Páscoa. As cestas dos ninhos eram preparadas por nós, cada um fazia a sua, usando caixas de papel. Nelas colávamos papel crepom colorido, deixávamos o papel picotado nas pontas para fazer um efeito de franja e, por fim, fazíamos uma alça e estavam prontas nossas cestas feitas de caixas de embalagens, em geral, de sapato. Dias antes da Páscoa, Lili separava as cascas de ovo que eram usadas para fazer os pães, bolachas e bolos, limpava-as e guardava-as para encher com doce de amendoim. Como não tínhamos tinta em casa, as cascas dos ovos não eram pintadas, às vezes, eu colava as sobras do papel crepom para dar um cor nos ovos de Páscoa.

Na semana Santa o clima já era outonal, pela manhã uma bruma tomava conta da paisagem, a gente se agasalhava por causa do friozinho da manhã e saia pelo pátio e galpões procurando os ninhos. Meu tio Cláudio era especialista em esconder os ninhos em lugares inusitados, chegávamos ficar toda uma manhã correndo e verificando os cantos e os possíveis esconderijos para conseguir encontrar o ninho. Quanto mais afoito se era por doces, bem mais difícil era para achá-lo. Um ano encontrei meu ninho dentro da caixa de colocar bagagem da charrete amarela, ela ficava na parte de baixo do banco. Outra vez, depois de uma manhã de desespero e de uma busca sem fim, achei meu ninho cuidadosamente encaixado em uma trama de galhos da parreira do pátio. Era só olhar pra cima, mas eu só procurava olhando pelo cantos e pra baixo. A procura pelos ninhos era uma diversão e uma disputa controlada pelo: "tá quente", "tá morno", "tá frio" à medida que nos aproximávamos ou nos afastávamos do esconderijo.

A Páscoa para Lili tinha o gosto do ovo de glacê, muito doce, colorido e delicadamente decorado. As decorações eram detalhes de açúcar, umas rendas e laços açucarados, com flores e passarinhos. Eu os guardava por dias, tinha pena de comer aquela beleza de decoração. Me contentava, de início, com os coelhos grandes de pão de mel e alguns chocolates e bombons. Mas nada superou em alegria, o dia em que ganhei uma caixa de bombons "noite de gala" do meu padrinho, o moço dos lindos olhos azuis. Pois caixas de bombons eram presentes para adultos, me senti diferenciada das outras crianças. O Domingo de Páscoa também era dia de contar os doces, protegê-los das lambidas da Susana, que astutamente havia encontrado uma maneira de arrecadar mais doce para o ninho dela. A gente ficava com nojo quando ela lambia algum doce dos nossos ninhos e dávamos a ela o doce lambido. Para Lili tudo era muito precioso, comê-los um a cada dia prolongava o sabor e os dias alegres da Páscoa, uma tentativa de aprisionar o tempo, aquele exato momento de muita doçura e de família reunida. 

Carapé

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