sexta-feira, 2 de abril de 2021

Tradições da Páscoa

O sinal de que a Páscoa se aproximava era quando se iniciavam os preparativos da pescaria nos dias que antecediam à semana Santa. Lili acompanhava o preparo que o pai e os tios, que durante um tempo trabalharam na fazenda, arrumando linhas, redes e anzóis para a pesca nos açudes do campo de cima ou o das vacas mansas e, às vezes, no arroio da Divisa. Também, uma vez ou outra, eles pescavam nos açudes da vizinhança: na chácara do Dr. Ayres ou na do Seu Noé. DE véspera lançavam as redes e as linhas nas águas, as deixavam na espera para fisgar, nas linhas, ou enredar na rede, alguns peixes durante a calmaria da noite. Meu pai e meus tios herdaram o gosto pela pescaria do seus tios Luís e Adolfo, com quem costumavam pescar na infância nos arroios do Salso e da Divisa e com eles aprenderam os rituais da pesca e também a contar estórias de pescador. 

Minha mãe e minha vó Cinda, pelo menos dois meses antes da Páscoa, já tinham preparado as passas de pêssego que elas chamavam de origone. Secavam as lascas da polpa do pêssego e as colocavam numa forma no sol durante dias, para desidratar e secar, depois guardavam-nas em potes bem fechados até a sexta-feira santa. Cedo da manhã elas preparavam o doce para servir no meio da tarde, com canela polvilhada, dando um toque especial ao famoso arroz com pêssego, a sobremesa tradicional da sexta da paixão.

Nas primeiras horas da sexta-feira, no sereno da madrugada, antes do sol sair, meu pai já tinha percorrido o campo e feito a colheita da marcela. Teríamos chá para boa parte do ano. Em seguida, ele começava a providenciar a fritada de peixe para o almoço. Com uma boa porção de peixes: jundiás, traíras, piavas e grumatã estava garantido o almoço do dia. Se armava uma trempe no fogo do chão, sobre ela uma caçarola com banha quente e se fritavam as postas temperadas e empanadas com farinha de trigo e de mandioca. Com as postas do jundiá meu pai fazia um ensopado bem temperado. Para as crianças sempre separava-se a parte da cabeça dos peixes, para evitar que alguns de nós se engasgasse com a espinha. Lili aguardava ansiosa o pai retirar a espinha das postas, para que pudesse comer com tranquilidade. Confiava no cuidado dele.

No sábado, pós sexta da paixão, acordávamos já com um mantra religioso repetido pelas tias, era o "hoje é dia de tirar aleluia". Nunca entendi bem porque nos sentenciavam tanto, era dia de aplicar o castigo pelas teimosias e traquinagens acumulado durante todo um ano. Mas tudo ficava no plano da possibilidade, o temor ficava no ar, porém ninguém se atrevia a tanto. Nos mantinham na linha só fazendo as promessas de castigo. O dia passava devagar pela ansiedade na espera pelo domingo de Páscoa, dia de ganhar doces. Só parávamos para apreciar a lua cheia que despontava alaranjada e imensa por trás da frondosa timbaúva, à direita da porteira de entrada da fazenda. 

No domingo de Páscoa já acordávamos mais cedo que o normal, na expectativa de procurar os ninhos com os ovos de Páscoa. As cestas dos ninhos eram preparadas por nós, cada um fazia a sua, usando caixas de papel. Nelas colávamos papel crepom colorido, deixávamos o papel picotado nas pontas para fazer um efeito de franja e, por fim, fazíamos uma alça e estavam prontas nossas cestas feitas de caixas de embalagens, em geral, de sapato. Dias antes da Páscoa, Lili separava as cascas de ovo que eram usadas para fazer os pães, bolachas e bolos, limpava-as e guardava-as para encher com doce de amendoim. Como não tínhamos tinta em casa, as cascas dos ovos não eram pintadas, às vezes, eu colava as sobras do papel crepom para dar um cor nos ovos de Páscoa.

Na semana Santa o clima já era outonal, pela manhã uma bruma tomava conta da paisagem, a gente se agasalhava por causa do friozinho da manhã e saia pelo pátio e galpões procurando os ninhos. Meu tio Cláudio era especialista em esconder os ninhos em lugares inusitados, chegávamos ficar toda uma manhã correndo e verificando os cantos e os possíveis esconderijos para conseguir encontrar o ninho. Quanto mais afoito se era por doces, bem mais difícil era para achá-lo. Um ano encontrei meu ninho dentro da caixa de colocar bagagem da charrete amarela, ela ficava na parte de baixo do banco. Outra vez, depois de uma manhã de desespero e de uma busca sem fim, achei meu ninho cuidadosamente encaixado em uma trama de galhos da parreira do pátio. Era só olhar pra cima, mas eu só procurava olhando pelo cantos e pra baixo. A procura pelos ninhos era uma diversão e uma disputa controlada pelo: "tá quente", "tá morno", "tá frio" à medida que nos aproximávamos ou nos afastávamos do esconderijo.

A Páscoa para Lili tinha o gosto do ovo de glacê, muito doce, colorido e delicadamente decorado. As decorações eram detalhes de açúcar, umas rendas e laços açucarados, com flores e passarinhos. Eu os guardava por dias, tinha pena de comer aquela beleza de decoração. Me contentava, de início, com os coelhos grandes de pão de mel e alguns chocolates e bombons. Mas nada superou em alegria, o dia em que ganhei uma caixa de bombons "noite de gala" do meu padrinho, o moço dos lindos olhos azuis. Pois caixas de bombons eram presentes para adultos, me senti diferenciada das outras crianças. O Domingo de Páscoa também era dia de contar os doces, protegê-los das lambidas da Susana, que astutamente havia encontrado uma maneira de arrecadar mais doce para o ninho dela. A gente ficava com nojo quando ela lambia algum doce dos nossos ninhos e dávamos a ela o doce lambido. Para Lili tudo era muito precioso, comê-los um a cada dia prolongava o sabor e os dias alegres da Páscoa, uma tentativa de aprisionar o tempo, aquele exato momento de muita doçura e de família reunida. 

2 comentários:

  1. Quanta beleza e densidade neste texto! Nas minhas lembranças de infância rural, o "arroz com passas" também tem um lugar especial. Feliz Páscoa, Lili.Teu blog é lindo. Bjs

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  2. Palavras singelas e doces, Lili. Lembrei de minhas páscoas na infância e na dos meus filhos. Lugares E lembranças diversas nesse teu texto. Não havia o arroz com pêssego mas rapadurinhas de chocolate com leite feitas no fogão à lenha da minha mãe. E o cheiro da macela perfumando meu ninho.

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