A despensa era o lugar sagrado da comida. Não era uma peça muito grande, mas mantinha o frescor de um ambiente onde se guardavam os alimentos secos e as comidas que podiam ser mantidas sem refrigeração como carnes assadas, polenta, mandioca cozida, arroz. Essas comidas eram guardadas na prateleira superior de um balcão, um armário baixo de cor cinza, e nele se colocavam as panelas com as sobras. A tela na metade de cima da porta do armário permitia a ventilação e evitava a entrada de insetos como moscas, baratas e formigas. Na parte debaixo se guardavam as panelas grandes de ferro.
No meio da peça havia uma mesa onde se deixava a gamela do pão coberta por uma toalha feita com o saco de algodão da embalagem da farinha, e também um panelão com o leite da ordenha da manhã para ser coado. Quando o leite azedava, deixava-se a coalhada que se formava para ser misturada com açúcar e ser consumida, mas o melhor uso da coalhada era nos famosos bolinhos feitos pela Vó Cinda. Em duas das paredes da peça havia prateleiras onde se colocavam, de um lado, utensílios como conchas, máquina de moer carne, funil, facas para corte de carnes, colheres de pau, peneiras, bacias e formas. Na prateleira, do outro lado, ficavam as famosas latas quadradas de guardar o pão de trigo, o de milho e os biscoitos. Eu apoiava os cotovelos na ponta da mesa e me deslumbrava com a figura de uma coroa imponente de rainha estampada nas latas, abaixo da imagem da coroa uma palavra escrita em letras vermelhas como se fosse uma assinatura: soberana. Eram latas das balas soberanas, reutilizadas pela Vó Cinda para guardar os pães, que deveriam durar até a próxima fornada.
A basculante no fundo da peça, era a única janela, de onde se avistava quem vinha do poço do arvoredo, para lado dos pinheiros. Dali também se podia ver o Vergilino colhendo cachos de banana no bananal, que se localizava logo atrás de um frondoso abacateiro plantado pelo meu avô. Abaixo da basculante ficava a tulha de madeira, em cada uma das suas separações guardava-se feijão, arroz, fardos de farinha de trigo, entre outros mantimentos, fardos, sacos, pacotes. A despensa ganhou importância com a reforma da casa, depois que a antiga estufa, onde se faziam os queijos e se depositava o mel, o sal, as linguiças, foi desativada. As latas de bala nas prateleiras e a tulha abastecida de grãos davam um ar de armazém para a despensa.
A despensa era mais que o lugar de guardar, era o de preparar o pão, as bolachas, os bolos, de temperar e ajeitar os assados nas formas. Lugar de conversas longas entre minha vó e minha mãe, especialmente no dia de fazer pão, em que vestidas com avental e de lenços amarrados na cabeça decidiam sobre quais pães fazer , enquanto eu corria para auxiliá-las batendo claras, untando as formas e alcançava o caderno de receitas, retirava-o com todo cuidado da gaveta da penteadeira do quarto da Vó Cinda. Ali onde se amassava o pão, elas amassavam suas reclamações e pediam aos gritos que o Vergilino varresse o forno para logo assarem as massas e depois as carnes. Lili enrolava a massa com dedos para fazer as roscas de polvilho e de nata, moldando-as tal como fazia com seus bolinhos de barro, só faltavam as flores cor de rosa das hortênsias da parreira para enfeitar aquelas roscas de nata e de polvilho distribuídas nas formas. Disfarçadamente, eu sempre levantava a toalha e enfiava o dedo na bacia para saborear a massa crua do pão.
A despensa era uma peça separada do resto da casa, ao mesmo tempo contígua e a ela unida pela área coberta. Dela vinham aromas misturados, um ar mais úmido e uma luz difusa . Todo dia a gente entrava e saia buscando algo que só ali se guardava ou se fabricava para toda família. Lá de dentro brotavam sabores e cheiros que passaram a alimentar continuamente as memórias da Lili.
"...bolo de barro...lata de bala...roubar massa crua..." Quem não? - pedacinhos da infância que resgatam lembranças carregadas de saborES!
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