Se não íamos à cidade fazer compras, só conseguíamos os itens de armarinho nas visitas de Seu Piber. Ele chegava no meio de uma tarde luminosa de Outono na sua velha camionete rural willys branca com aquela barra azul nas laterais. A camionete vinha repleta de mercadorias. Ele a estacionava debaixo da sombra dos cinamomos da frente da casa, abria a porta traseira e ia apresentando as novidades: utensílios de casa, tecidos, linhas, agulhas, rendas, fitas, elásticos e algumas roupas íntimas. E logo chegava minha vó, cruzava apressada a antiga estrada que separava nossa casa da casa da fazenda, do jeito que podia pois as pernas um pouco arqueadas para dentro não a ajudavam ser muito ligeira. Ela vinha ávida para verificar o que havia de novo em tecidos e enfeites e vasculhar alguma peça de "baratilho" nas mercadorias trazidas pelo Seu Piber.
Nas suas andanças de mascate motorizado, Seu Piber saía pelo interior de Jaguari e São Vicente passando pelas pequenas chácaras, sítios, fazendas, abastecendo as famílias e oportunizando às mulheres encontrar o que necessitavam para casa e para uso pessoal. Entre essas moradas que ele parava, estava a da minha vó Xiruca. Como minha mãe e a Vó Cinda, ela se abastecia de tecidos, alguns utensílios de casa e material de costura. Na casa dela, a máquina de costura ficava no quarto do casal, em frente à janela que dava para o jardim, de onde ela podia, sentada junto à máquina, apreciar o pé de brinco de princesa sob a luz morna e amarelada das tardes frescas do outono. Lili não lembra de vê-la trabalhando na máquina de costura, mas se fascinava com a luz outonal atravessando o amplo quarto do casal, na forma de um feixe de luz que repousava justo sobre a máquina de costura. Ela consertava, costurava e remendava as roupas da família naquela máquina, pois necessitava dar conta de vestir os seus muitos filhos com roupas mais quentes no inverno, que logo chegaria. Costurar estava entre os tantos afazeres que ela dava conta, e um dia que as vinte quatro horas sempre eram sinônimo de pouco tempo.
Remendar era tarefa semanal da minha mãe. Recortava sobra de tecidos para cobrir os rasgados das bombachas do meu pai, dando-lhes sobrevida, nem que fosse só para ele usar no serviço de curar os animais no campo ou para quando ia recorrer as taipas na lavoura de arroz. O ato de remendar não era só economizar, era muito mais. Era como remendar as dificuldades da vida. Das sobras de tecidos, minha vó Cinda e minha mãe faziam algumas peças para uso da família: uma barra de lençol, um enfeite em um guardanapo, um pegador de panelas mais grosso para retirar as formas do forno quente ou um avental para uso diário. Os pequenos pedaços de rendas e fitas e algumas nesgas de tecido floridos eu guardava. Cada vez que voavam da máquina para chão, eu os catava para fazer roupas para minhas bonecas. Todo retalho tinha um aproveitamento, elas, sabiamente, diziam: "quem junta o que não presta, tem o que precisa".
Na fabricação das colchas de retalhos, Lili ajudava selecionar e combinar os pedaços recortados em quadros que a Vó Cinda emendava caprichosamente por meio de um gracioso crochê. Ajoelhada ao lado da cama, eu ia alternando os quadrados de tecidos já com os acabamentos em crochê, para montar uma colcha quentinha, que poderia ainda ser usada como coberta no inverno. As linhas que sobravam de uma costura assim como pedaços de elásticos eram guardados nas gavetas da máquina se acaso necessitassem para algo. Até mesmo os restos de linha de costura ficavam esperando nas gavetas a hora de auxiliarem no colocar a linha nova na lançadeira da máquina. Nada se perdia, tudo se reciclava, se reutilizava.
O aproveitamento era uma prática: uma lata grande de óleo, era cortada e nela feito dobras para virar uma forma na qual se assavam as carnes e os pães. Já uma lata pequena, com uma alça de arame, virava um copo para beber água no poço. Do tijolo quebrado, fazia-se um pó para lustrar as panelas de ferro. As tiras de tecidos e elásticos velhos serviam para amarrar os pés de palma no jardim. Nada parecia ser descartado pelas mulheres da família, porque tudo em algum momento poderia ter uma utilidade. Era assim que elas ainda reaproveitavam as panelas velhas, os bules furados, as bacias lascadas ou trincadas como vasos ou suportes para as flores. E tudo se enchia de beleza, mesmo uma chaleira furada tinha seu encanto ao ficarem cobertas de flores de maio, petúnias, cravos ou gerânios.
Entre trapos e rendas tudo se resolvia,aproveitamento de tudo,sdds e lembranças
ResponderExcluirBelos exemplos de reaproveitamento! Adorei!
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ResponderExcluirDos retalhos da memória, fizeste uma colcha de lembranças. Lindo texto!
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