sexta-feira, 28 de agosto de 2020

As águas em que nos banhávamos

Uma das melhores diversões, e privilégio da infância no campo, é tomar um bom banho em um açude ou em um rio. As águas em que nos banhávamos não só nos refrescavam no verão como ajudavam a transformar nossa energia uma calmaria, sobretudo, no final da tarde. A ida ao rio Jaguari ou um banho no grande açude do campo de cima era um prêmio pelo nosso bom comportamento e também uma recompensa pelo cumprimento das tarefas que as tias nos delegavam: varrer o pátio, ajudar colocar o lixo no carro de mão, auxiliar na faxina do galpão, colaborar com a limpeza do jardim. Na casa da vó Cinda a ida ao açude dependia da disposição da tia Nira, que se aventurava a levar uma turma de pirralhos para se banhar. A partir do meio da tarde, a cada meia hora, lá estávamos nós em volta dela que, pacientemente, nos ouvia e seguia pedalando na máquina de costura. Quando ela dava o sinal de que estava na hora, era uma corrida para colocar a roupa de banho, providenciar toalha e sabonete, roupa para trocar, pois já saíamos do açude com o banho do dia cumprido.

Lili sempre teve medo das águas barrentas do açude, principalmente, na temporada das sanguessugas. Muitas vezes saíamos do açude com as sanguessugas grudadas nas pernas e só conseguíamos tirar em casa, onde então alguém colocava algo quente para que elas se soltassem dos nossos pés e pernas. Lili se enojava com elas, não se aventurava muito para dentro do açude. Momento pior que esse só o das brincadeiras dos guris mais crescidinhos que me puxavam pelas pernas por baixo da água, para terem o prazer de assistir o meu desespero. O famoso caldinho era uma brincadeira típica dos guris, desafiando-se entre si. Para gerenciar a gurizada, a tia Nira colocava limites de horário para o retorno para casa e estipulava a distância até onde podíamos avançar na água, na maioria das vezes ela nem entrava no açude, sentava para fumar e nos cuidar. Na parte mais alta, antes da chegada à beirada do açude, havia um velho eucalipto onde deixávamos as roupas, e sempre tinha um cusco para vigiar as vacas e as roupas. Antes de voltar para casa, caminhávamos sobre a larga e alta taipa do açude, de lá podíamos apreciar um belo pôr do sol. 

Este grande açude, que muitos chamavam de barragem por causa do tamanho e da profundidade, servia para irrigar as lavouras e para matar a sede do gado. Porém, no início dos anos setenta, a finalidade mais importante que ele ganhou foi fornecer a água, que movida por uma roda vermelha de metal, era bombeada para os canos que chegavam até à casa da fazenda,  abastecendo, assim, uma caixa que possibilitava termos água nas torneiras e no chuveiro. A instalação deste sistema com uma roda mobilizou o pessoal da casa, dos grandes aos pequenos, uma engenharia pensada pelo tio Cláudio, sempre atento e disposto a ter alguma solução que melhorasse as condições da casa da fazenda. Minha vó Cinda não cabia em si de tão faceira, pois era um conforto do qual finalmente poderia usufruir.  

Lá na vó Xiruca este conforto ela nem desfrutou. O açude fornecia a água para quase tudo, ele se estendia ao longo da entrada da chácara, pela taipa se acessava à casa. Era bonita aquela estradinha da entrada contornando o açude, imprimia um ar bucólico que só a vida no campo nos permite vislumbrar. Era um açude que tinha formato de lago, com seus patos e marrecos nadando tranquilamente. Ali a família se banhava no verão e minha vó Xiruca lavava trouxas de roupas. Nunca tomei banho no açude dos patos, porque os medos de Lili não me deixavam arriscar.

Os dias de passeio no rio Jaguari, na altura do Passo dos Vidais, despertava nossa tagarelice e nossa alegria se espalhava pela casa. Lá íamos nós na kombi bicolor cinza-escuro e branca do tio Cláudio, cheia de crianças ansiosas por um mergulho no rio. Corríamos para preparar o passeio, roupas, toalhas, chinelos, um pão ou um bolo, bolachas, afinal a água nos deixava cansados e famintos, ou então levávamos umas melancias, que pegávamos no tabuleiro na beira da estrada onde meu pai as vendia. 

A estrada do Passo dos Vidais até rio Jaguari era de chão batido e com muita areia, ao longo do caminho se avistavam as moradas de alguns parentes, a escolinha, chácaras e lavouras até a entrada no mato. Já dentro do mato uma clareira onde haviam umas duas casas de veraneio e uns banheiros que a prefeitura construiu. Claro, na temporada de férias de verão, o balneário se enchia de acampamentos, acomodados debaixo de árvores frondosas. Para chegar até à água era preciso descer uma rampa, pois o barranco era muito alto pelo lado que acessávamos o rio. A melhor parte de ficar no rio era uma ilha de areia com uns poucos maricás, quase na margem oposta, por isso era preciso cruzá-lo, cuidando de tomar o caminho menos fundo do rio. Os pequenos atravessavam enganchados nos braços dos grandes ou no colo. Nas areias mornas brincávamos, jogávamos bola e podíamos entrar e sair da água na parte mais rasa. Dizem que quando Lili era muito pequena mergulhou toda cabeça em um buraco de água nas margens do rio e foi resgatada rapidamente pelo tio Cláudio, que não desviava o olho na vigilância sobre os pequenos. Meu pai e minha só nos autorizam a ir ao rio se ele fosse o responsável, tal era a confiança nos seus cuidados. 

 O banho no rio Jaguari era uma grande aventura, melhor que a ida nas tardes de domingo, era passar o dia todo no rio, com um churrasco, um carreteiro, milho assado e refrigerante para o almoço. No intervalo, entre os banhos da manhã e da tarde, aproveitávamos para explorar as imediações da mata e brincar com as crianças das famílias dos veranistas acampados no Passo dos Vidais. Depois de já estarmos com os dedos murchos de tanto tempo de molho nas águas do rio, nos reuníamos debaixo de uma árvore e partíamos as melancias. Ao entardecer, quando os mosquitos começavam a nos atacar, regressávamos felizes e exaustos do banho de rio.



sábado, 15 de agosto de 2020

Visitas na vida rural

As visitas no meio rural realizadas na vizinhança são carregadas de cordialidade e solidariedade. A distância dos centros urbanos torna a vizinhança uma comunidade de afetos, de trocas de gentilezas, de favores, de serviços e de participação nas celebrações familiares. A primeira lembrança de Lili de uma visita é a sensação difusa de uma viagem curta, sobre a qual tem como memória imagens entrecortadas, de que acompanhava o pai e um tio ao interior de Jaguari. Uma viagem na Kombi bicolor do Tio Cláudio, na busca de localizar um familiar da Dida, pois estava agoniada por notícias de um familiar. Ela vivia há muito tempo na Fazenda, auxiliava na lida da casa e na criação dos filhos da minha vó. Foi ela quem deu apelidos carinhosos a todos eles. 

As visitas nas redondezas eram rotineiras desde meu avô Alberto. Nas manhãs de domingo ele encilhava o cavalo, saia muito cedo, dependendo da distância, e retornava para o almoço. Visitava os compadres, os irmãos, os tios e os amigos que moravam nas redondezas. Não tardava muito nas suas visitas, mantinha o ritual domingueiro como uma prática fundamental da vida social no meio rural. Minha vó Cinda já deixava as visitas para os momentos mais necessários, sobretudo, para exercer sua solidariedade. Acudia uma vizinha recém parida, levando uma galinha para fazer um bom caldo, externalizava sua consternação com alguém enfermo, como na vez que visitamos o Tio Penin, trocava mudas e receitas com as comadres e também contribuía com as festas religiosas, doando um frango para assar ou fazer um risoto, ou um saco de batata doce, ou uma abóbora para preparar os doces que seriam vendidos nas festas.

Lili se esmerava em cuidar do vestido de organza na cor rosa antigo, bordado com bolinhas da mesma cor, exposto sobre a cama, já separado para o casamento da filha de um vizinho. Era o vestido mais bonito que já tinha usado. Minha mãe aconselhou que eu deixasse o vestido sobre a mesa onde estava o cobertor sobre qual ela passava as roupas com o ferro à brasa, enquanto rumava para o banho. A ansiedade tomava conta de mim, e lá fui eu me atrever a passar o vestido, eu mal alcançava na altura da mesa, larguei-o o ferro quente sobre o vestido, mas não consegui passar. O ferro quente grudou no tecido, sobrando apenas uma marca do ferro desenhada bem no meio do vestido, o delicado tecido havia derretido com o calor excessivo das brasas. Claro, minha mãe se desesperou porque precisou providenciar outro vestido para mim, depois de dar uns bons gritos comigo. Lá fomos rumo à casa do seu Nica na charrete amarela para o casamento da sua filha. Era uma festa ao ar livre, debaixo das árvores, onde estavam as mesas feitas com tábuas longas, dispostas sobre cavaletes, já preparadas para o churrasco do almoço: pratos e talheres, o famoso limão com palitos cravados e copos para as bebidas. Era uma casamento matinal, uma cerimônia simples e depois um festejo com muita música e comida. Já passando a metade da tarde, serviram a famosa torta de casamento. Eu corria pelo jardim e pelo pátio, entrando e saindo da casa, espiava o quarto dos pais da noiva onde sobre a cama estavam expostos os presentes dos convidados para os noivos. E claro não comi da famosa torta, ocupada em brincar com as outras crianças da festa. E me sentia feliz com vestido substituto, era lindo igual ao que havia sido queimado.

Outra visita que fiz com a Vó Cinda e minha mãe foi na casa dos vizinhos que moravam mais perto da fazenda, foi uma visita para desejar melhoras na saúde da dona Ilsa. Era uma chácara localizada logo depois que passava a ponte sobre o arroio da Divisa, à direita da antiga estrada intermunicipal, e fomos na charrete amarela como sempre fazíamos nas visitas. A casa por dentro se mostrava muito limpa e cuidada, muitos guardanapos de crochê sobre as mesas e armários. À esquerda da entrada da chácara um açude, com patos e creio que marrecos. Dona Ilsa parecia realmente adoentada, estava muito pálida e parecia muito fraca, tinha o cabelo liso e reto, na altura do queixo, usava um óculos de lentes grossas. Sentei-me de frente para uma das suas filhas, que deveria ser poucos anos mais velha do que eu. Sentada em uma cadeira de palha ela fazia crochê com muita destreza, fiquei observando e pensando que eu ainda não tinha toda aquela habilidade. Inquieta na cadeira só via a hora de sair pelo jardim, cheio de flores coloridas e chegar até o açude, queria fazer como na chácara da Vó Xiruca, correr aqueles patos em cima da taipa do açude pra dentro da água. Mas fui surpreendida por uma pergunta inusitada da dona Ilsa para minha mãe, olhou pra minha mãe questionando se ela já estava fazendo o meu enxoval. Aquela pergunta me torturou toda o caminho de volta pra casa. Mas fui salva pela minha mãe que respondeu à dona Ilsa que antes de pensar em casar eu precisa era estudar. Depois também entendi, que por força de uma saúde debilitada, dona Ilsa via no casamento um futuro para as filhas, pelo menos esta era a explicação da minha mãe cada vez que eu voltava no assunto. Afinal, fazer crochê com tanta destreza eu tinha tempo para aprender , mas naquele o que eu mais deslumbrava era a escola, meu sonho de Lili.        

Na vizinhança do vô Joãozinho e da vó Xiruca também se ia muito frequentemente à casa dos vizinhos, levar uma encomenda, um mimo para as comadres, pedir uma ferramenta emprestada. Naquelas redondezas, as chácaras eram mais perto uma das outras, porque a maioria dos que viviam naquelas terras eram famílias de imigrantes. A proximidade facilitava as trocas e as ajudas entre os moradores. Numa tarde, fomos visitar a Dona Cristina, vizinha e amiga da vó Xiruca. Minhas tias menores e eu atravessamos o campo em direção ao sul, era um campo coberto de carqueja, as pernas iam ficando arranhadas, cruzávamos a cerca da divisa do campo e depois a estradinha de chão e lá estava a casa no alto do terreno. Essa visita estão naquelas memórias difusas, são objetos e cores que me trazem as sensações do campo. Dona Cristina era uma senhora idosa como o cabelo bem grisalho preso na nuca, ela estava sentada em uma cadeira de balanço. Nas paredes, pintadas em tom verde claro, haviam fotos antigas dos familiares, a peça onde ela estava era uma sala longa, na parte dos fundos da casa, como se fosse uma varanda coberta cheia de folhagens. Minhas tias se orgulhavam de me apresentar como sobrinha, embora não tivessem grandes diferenças de idade comigo.

Outra vizinha da Vó Xiruca que visitávamos era dona Amélia, era a vizinha mais próxima. Para chegar mais rápido na casa dela, encurtávamos a distância passando pela cerca do lado oeste do arvoredo, ali tinham dois tocos de troncos de árvore para facilitar a gente cruzar sobre a cerca. Buscávamos alguma coisa, talvez um queijo, que Dona Amélia fazia para vender. Sempre víamos as filhas fazendo serviço da casa. Era uma mulher com um aspecto duro e parecia ser muito amarga. Gritava muito com as filhas e  me dava medo. 

Quando chegava o verão, apareciam muitas vistas na casa da Vó Cinda, primeiro eram netos e sobrinhos da minha bisavó Lídia. A casa ficava repleta de gente. As melhores camas eram destinadas aos vistantes e os da casa se acomodavam como podiam, hospitalidade da educação familiar. Mas o que mais incomodava as minhas tias era a quantidade de louça para lavar, especialmente a do jantar. Lavar louça e panelas de ferro em bacias grandes, com água quente e sabão e à luz de velas, era um serviço cansativo. As visitas na fazenda dobravam as tarefas domésticas das mulheres da casa. Contam que minha tia Jane chegou a apelidar as panelas de ferro de "vacas", por serem grandes e pesadas de limpar, enquanto chorava pelo excesso de louça que se amontoava para lavar. Minha vó Cinda sempre tinha de reserva muitas latas de bolachas, vidros de compotas, garrafas de licor e caixas de doces para dar conta de receber bem os visitantes na fazenda. Mesmo depois da morte da bisavô sempre a casa tinha muitas visitas, ou no fim de semana ou nas férias.

Para Lili as visitas mais esperadas eram das tias e dos primos e primas, que chegavam para as festas de fim de ano e as férias. Era o momento de ter mais meninas para brincar, mais gente para dividir as brincadeiras debaixo dos cinamomos em frente da casa, de caçar vaga-lumes de noite e, quem sabe, dar um passeio na kombi bicolor do Tio Cláudio até o rio Jaguari, no Passo dos Vidais, para um banho fresco em um dia de muito calor.  

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Sabedorias de um pai

O melhor colo do mundo é de uma mãe ou de um pai. Quando somos bebês o colo da mãe é nossa segurança, conforto e ninho de afeto, fortalecendo os laços incondicionais do amor maternal. Entretanto, para Lili, o colo que era seu ninho de aconchego sempre foi o do seu pai, pois já bem crescida seguia buscando um lugar de acolhida e mimo no colo paternal. Escrever sobre o meu pai é escrever sobre um modo de olhar o mundo e de compreendê-lo. 
Um dia eu estava no gramado em frente à casa da fazenda conversando sozinha. Eu criava muitas histórias e as verbalizava, assumia a palavra de cada personagem e ia desenvolvendo as minhas narrativas. Eram conversas imaginárias, uma forma de Lili inventar seu mundo na infância. Ele passou por mim e me disse: sonhando acordada? Esta sensibilidade traduz quem era meu pai. Na sua simplicidade captava a profundidade dos gestos e observava como tudo se passava ao seu redor. Para ele minhas histórias eram sonhos enquanto perspectivas.

Seus olhos azuis intensos, herdados do seu avô Antônio, às vezes se acinzentavam, outras vezes chegavam a um verde oliva meio desbotado. Dele Lili herdou esse tom na cor dos olhos e desconfia que uma certa resiliência diante do que a vida nos entrega para ser enfrentado.

Bilo, como todos conheciam meu pai, nasceu em uma família de vida simples e dura. Era o quarto filho de uma família numerosa e sendo um dos filhos mais velhos, logo meu avô o colocou para ajudar na lida dos afazeres domésticos da chácara e no serviço da lavoura. Durante o inverno, com apenas sete anos de idade, saia de madrugada para lavoura de arroz. O frio encarangava os dedos dos seus pequenos pés, pois usava um chinelo velho de borracha, era o que tinha para calçar. Nas famílias como a dele, os pequenos trabalhavam desde muito cedo, fizesse sol, chuva, frio ou calor, cedo da manhã já estavam se ocupando do serviço com os animais domésticos ou já se aprontavam para ir auxiliar na lavoura. Os pais contavam com os filhos para o trabalho no campo.
Estudou pouco, cursou só os anos iniciais, até o quarto ano. Primeiro frequentou a escola junto da Fazenda do vô Alberto, iam a cavalo ele e mais dois irmãos. Atravessavam o banhado da várzea e cruzavam o arroio da Divisa para chegar à escola, lá iniciaram a vida escolar. Tempos depois abriu uma escola mais perto da chácara do vô Joãozinho, e eles passaram a frequentar a escola que, na verdade, era uma sala na casa da dona Mariquinha, a professora. A escola recebia as crianças que viviam nas proximidades, misturavam-se alunos de todas as idades e de diferentes níveis de escolaridade. Meu pai ria ao relatar que ele refazia as contas da Dona Marquinha, que não era lá muito boa na matemática. 

De fato, meu pai tinha a matemática da vivência, da prática. Calculava as distâncias com o número de passos dados entre um ponto e outro. Cada canteiro da horta era milimetricamente alinhado e demarcado com uma linha de pesca. Corria os olhos pelo céu e se orientava com a hora do sol, seu relógio era a sensação da passagem do dia assim como analisava os sinais da natureza para fazer o prognóstico do tempo. Os saberes eram acumulados a partir do que havia aprendido ao longo da vida, mostrava uma inteligência intuitiva. Muito do que sabia fazer era artesanal, trançava caprichosamente réstias de cebola e alho, e trabalhava com as cordas com o mesmo cuidado de quem zelava pelos arreios como instrumento de trabalho e também de uso nos momentos de lazer, porque se orgulhava de ser bom laçador e disso fez seu gosto pelos rodeios. 

Aos doze anos já estava trabalhando na vizinhança. Ele contava que sua especialidade era fazer parvas na lavoura de arroz durante o período da colheita. As parvas eram os montes de palha de arroz na forma de cone. Esta tarefa rendia-lhe uns bons trocados. Nesta idade, diariamente ele e seu irmão mais velho tinham também a tarefa de entregar o leite para os clientes na cidade e no retorno trazer as compras encomendadas pela minha vó ou pelo meu avô.

Por volta dos 16 anos foi trabalhar na Fazenda do meu avô Alberto. Lá conheceu minha mãe, mas ele era o peão e ela filha do patrão. Dois anos mais tarde foi para exército,  permaneceu três anos. Retornou à fazenda para seguir trabalhando, meu vô Alberto, por quem ele tinha muito apreço, já havia falecido. Com o meu avô Alberto se transformou em um um homem campeiro e desenvolveu um olhar sobre o campo que deu-lhe uma imensa sabedoria. O retorno o reaproximou da minha mãe, queria cuidá-la, o romance com ela se concretizou e eu nasci pouco tempo depois. Dentro de quatro anos vieram mais dois filhos. Moramos em frente a casa da fazenda por muito tempo, assim ficamos perto da vó Cinda. Ele passou a se dedicar a criação de ovelhas, um pouco de gado e a plantar melancias. Aos domingos fazia um buraco na terra, enchia de lenha, armava um suporte com varas, espetava carne em espetos de galho de laranjeira, que ele mesmo falquejava, e fazia o seu melhor churrasco.
  
Lili sempre recorda dos gestos de agrado do pai, que vinham na forma de presentes singelos como balas de fruta ou de banana, rapadura ou uma caixa de isopor cheia de picolés, comprados na antiga lancheria do seu Nelson. Cada vez que meu pai ia à cidade fazer compras, era certo que trazia uma barra pequena de diamante negro nos bolsos da bombacha, meu chocolate predileto. Este hábito rendeu-lhe o apelido de tio bala, dado por seus sobrinhos. Um Natal eu tive sarampo, fiquei muito fraca e não conseguia comer, para me agradar ele trouxe da cidade uma garrafa de guaraná e biscoitinhos mignon. Com esse agrado especial, meus irmãos decidiram que ficar na cama comigo era uma boa forma de pegar sarampo e também ganhar guaraná e os famosos biscoitinhos mignon da padaria do seu Darci.

Na antiga casa que morávamos havia um pátio com muitos cinamomos. Meu pai escolhia a melhor sombra no verão para sentar e tomar chimarrão nas horas estabelecidas pelo seu ritual gauchesco. Junto à cerca das imediações da casa, havia um pé solitário de cinamomo onde ele deixava o cavalo encilhado, após retornar de uma campereada. Ali, naquele pé de cinamomo, nosso cachorro foguete deitava quase nas patas do cavalo para vigiá-lo. Mais para frente da casa, entre outros dois pés de cinamomos, ele colocou um balanço com uma tábua e um pelego, fez pra mim e depois todos usamos. Ocupava nossas noites de verão, depois da janta, com jogos de adivinhações. Ouvia as piadas e adivinhações no rádio em programas de humor e depois repetia as perguntas conosco. 

Era um homem pouco instruído, mas muito sociável. Preservava as amizades e as fortalecia com gestos de solidariedade, de auxílio a algum vizinho ou amigo na lida do campo. Cada vez que alguém vinha na nossa casa ajudar a carnear um porco, uma vaca, uma ovelha, levava consigo um pouco de carne, linguiça ou banha. Para as visitas sempre havia um chimarrão novo, uma prosa na sombra de um árvore e na saída uma porção de batata doce, um saco de laranja ou bergamota, uns pés alface ou um maço de couve ou uma dúzia de ovos.    

Ao longo da nossa infância tomou pra si a tarefa de ensinar a lida com gado a todos os guris da família. Leva-os para suas andanças na recolhida do gado, no serviço de curar, apartar ou banhar a gado. Primeiro dava voltas a cavalo com os pequenos, depois os ensinava a andarem a cavalo. Umas das minhas primeiras memórias que tenho é a da sensação de tocar as folhas dos pés de uva do Japão, quando numa volta a cavalo com ele percorremos o entorno da casa da fazenda. 

A vida não foi de todo boa com ele. Teve tristezas, desilusões e, sensível como era, tinha sempre votos de confiança nas pessoas. A palavra valia um contrato verbal mais que um de papel. As decepções as colocou no copo das bebidas que passou a tomar, se tornou um homem enfraquecido. No entanto, atento aos sinais do que era importante na vida, um dia decidiu se reerguer. Contou-me que vendo o neto mais velho, ainda muito pequeno, sentar-se em um banquinho bem junto dele, olhando fixamente nos seus olhos não soube o que responder quando foi indagado pelo neto sobre o que estava acontecendo com ele. Desde então compreendeu, sábio como era, que mudar era um gesto que dependia de não sentir mais vergonha. Sentiu-se muito menor que o neto. A sua grandeza o fez tomar outro caminho e esta sabedoria, como tantas outras que acumulou na vida, foi seu maior legado. 

sábado, 1 de agosto de 2020

Noites de diversão

Lili descobria o mundo nas coisas simples. A vida no campo possibilitava imaginar o que estava por vir, sem grandes expectativas, tudo era na medida de viver um dia de cada vez. Cada novidade era um horizonte que se alargava. Foi assim com primeira caixa de giz de cera que eu ganhei da tia Betty, com suas maravilhosas doze cores. Gostava de desenhar as pessoas: meu pai a cavalo, minha família, minha vó Cinda.
Na sala de visitas da casa da fazenda eu vasculhava os objetos sobre a cristaleira. Uma concha enorme em que se podia ouvir o som do mar, sem conhecer o mar; uma escultura de um velho, moldada na cerâmica e uma fruteira com um prato de vidro fosco e pé de metal. Podia-se avistar na prateleira de cima uma jarra rosada, com um medalhão oval branco, e dentro dele a figura de uma menina. A jarra rosada era da minha bisavó Lídia, muito bem guardada na cristaleira e inalcançável para Lili. Na parte de baixo da cristaleira se guardavam as louças melhores e, entre elas, uma das tias costumava esconder caixas de bombons. A descoberta deste esconderijo rendeu alguns roubos inocentes depois do meio-dia, na hora em que a casa silenciava. Distribuíamos os bombons entre nós e guardávamos o segredo a sete chaves.
A sala era a peça da casa menos usada, pois apenas se abria a porta da frente em dias de festa ou de visitas. Era um lugar de silêncio, nas paredes os retratos dos bisavós, quadros grandes e pesados com molduradas largas e douradas. Um único quadro na sala que não era um retrato, na parede oposta à cristaleira, era um quadro do coração Jesus, como se ele estivesse justo naquele local com o propósito de proteger a casa e zelar pelos antepassados. Sobre um tapete de couro de vaca, bem no centro da sala, uma mesa escura com seis cadeiras. Abaixo da janela, um sofá de espaldar e braços torneados, com assento de um couro plastificado de uma cor que lembrava a de uma gemada bem batida. Predominavam na casa as cores amarelo claro em alguns objetos e móveis, como as camas de ferro, e nas paredes, um tom de azul celeste. Acompanhava este sofá, que chamavam de namoradeira, duas cadeiras de braço. O que destoava daquela sala sóbria e clássica era um sofá-cama cor de cenoura. O sofá das dormidas coletivas das crianças da casa, quando havia muita gente para pernoitar, a sala se transformava em nosso quarto, cheio de nossas risadas e conversas até tarde da noite. A sala ganhava vida nas noites das crianças. Nos dias de chuva, deitávamos no piso da sala para jogar varetas. Os jogos eram novidade trazida pelos primos ou nos davam de presente de aniversário e serviam para nos aquietar e nos ocupar nos dias de inverno. Nesta sala também Lili começou sua aventura pela arte do desenho, desenhando sua tia Jane e o namorado.  

Do mesmo modo que na casa da vó Cinda eu me encantava pela jarra rosada, na cristaleira da sala de estar da casa da vó Xiruca eu me deslumbrava por uma miniatura, um conjunto de café, branco e dourado, feito de porcelana. Naquela sala ampla de uma casa simples de madeira, os móveis eram bonitos e bem distribuídos no ambiente. Logo na entrada da sala, à esquerda uma grande cristaleira, um conjunto com um sofá e duas poltronas de braços vergados, forrado em um tom de marrom claro. Ao fundo, estava a sala de jantar com uma mesa de pernas torneadas, um conjunto de cadeiras e um armário com que tinha nas portas vidros verdes, na forma de losangos, contrastando com a cor castanho claro da madeira do móvel, que ganhava mais beleza com os lindos puxadores de metal escuro. Era tão larga a sala para os olhos de Lili que nela podia dançar e bailar livremente naquele espaço entre sala de jantar e o corredor onde, sobre uma prateleira, o rádio tocava as músicas gauchescas preferidas das tias, alegrando os domingos.

O rádio portátil com botões na parte superior, forrado de couro era sempre permitido aos mais velhos, principalmente aos guris. Lili fica desapontada, era a única menina, a desvantagem de ser mulher vinha na hora da disputa pelo rádio. Da janela do quarto eu podia ouvir as risadas dos guris e som alto do rádio, me restava deitar ao lado da vó Cinda e esperar chegar o meio da tarde para, então, ter uma nova oportunidade de conseguir o rádio. Mas nada superou as expectativas de ter o rádio em mãos do que a chegada da televisão.
A primeira televisão que chegou à fazenda era movida à bateria. Uma televisão de tela pequena, a parte de trás na cor turquesa, imagem preto e branco que, para ficar mais nítida, dependia do vento batendo na antena externa, instalada logo na saída para o pátio, muitas vezes a imagem ficava com  chuviscos atravessados na tela. Vó Cinda gostava de futebol e a televisão chegou para que ela pudesse acompanhar a copa de 70. Sentávamos nas cadeiras da sala de jantar para olhar os jogos. Dali olhávamos a pequena televisão localizada na parede estreita entre as duas basculantes da sala de jantar. Acima da televisão havia um quadro oval de madeira, com uma pintura a óleo de uma pastora com suas ovelhas ao entardecer. Esse quadro minha vó Cinda ganhou de presente de uma vizinha que era dada às artes como a pintura de telas. 
Lili lembra pouco dos jogos da Copa, mas foi invadida de imaginação com as novelas. Acalantou o sonho de ser atriz, algo que nunca havia cogitado naquele seu mundo do campo. Eu acompanhava a vó Cinda no horário das novelas, para ver Mulheres de Areia e alimentar meu sonho de ser artista. Vergilino se aproximava pela porta lateral e se acomodava num canto, se encantava não sei se com as novelas ou com o aparelho de televisão. Era um mundo novo, trazido pela tela da televisão, as noites já não eram tão monótonas e nem estávamos tão distantes nem tão isolados na Fazenda.
Além da televisão, depois da janta, quando casa tinha mais netos, jogávamos víspora, um jogo de bingo. Para marcar os números no tabuleiro, que meu pai cantava a cada rodada, usávamos grão de milho ou feijão. Minha vó na cabeceira da mesa, meu pai em um dos lados e os netos que tomavam seus lugares na grande mesa de jantar, às vezes alguma tia se somava ao grupo. O jogo era uma aventura de risadas, choros, gritos e alegrias. Outros dias jogávamos memória com a Vó Cinda, que se divertia espiando os cartões para memorizar a localização ou para encontrar o par da peça que tinha nas mãos. Cada espiada dela em um cartão era um coro de netos gritando: "não vale, não vale". Mas era justamente essas risadas e gritarias que a divertia e criava laços de afetos inesquecíveis dela com seus netos. Lili estava sempre junto, encantada com as novidades, colorindo seus desenhos, aprendendo a vez de jogar e não desistir tão fácil de seus sonhos.
No verão, a diversão à noite ficava por conta de estender alguma colcha ou pelegos no gramado da frente da casa para olhar as estrelas, localizar o cruzeiro do sul entre a lenheira e o famoso pé de ipê rosa da Vó Cinda. Procurávamos estrelas cadentes e os sputniks, como chamávamos naquela época os satélites se movimentando no céu. Uma vez que outra inventávamos máscaras iluminadas com casca de melancia para dar sustos na Maria, a senhora que trabalhava na casa e era muito espantada, sempre se assustava com nossas traquinagens. Caçávamos vaga-lumes para fazer lanternas e assim seguíamos brincando, rindo e gritando no largo gramado além do portão do jardim da casa.    

Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...