sexta-feira, 20 de novembro de 2020

A estufa


Quando a Vó Cinda girava a chave grande de ferro na porta da estufa e lentamente ela se abria, sentia-se primeiro um frescor que vinha lá de dentro da peça, e logo em seguida, uma profusão de aromas misturados com a umidade do ar presente naquele ambiente. Tudo se intensificava pela pouca luz vinda das pequenas janelas, pela sensação de frio no rostro e pelos cheiros quase inusitados que nos abatia já quando pisávamos no degrau abaixo da linha da porta. A estufa era este lugar que na imaginação da Lili ficava entre o mistério, pelo domínio das sombras, do acesso controlado pela vó Cinda, e a fragância exalada pelos alimentos ali fabricados, mantidos e conservados.  

Na extensão da área do fogo de chão, no sentido horizontal, onde a construção servia para separar os limites entre o terreno do arvoredo e o do pátio dos cavalos, havia uma longa peça de depósito, separada por meias paredes de tábua. Era um lugar onde se guardavam desde cestos, caixas, latas, cordas até a colheita de batata doce. Lá onde terminavam essas sucessivas separações da grande área dos galpões, havia a única peça de tijolinho à vista da fazenda. O acesso, ou era pelo lado de dentro desse galpão, que facilitava a ida à estufa em dias de chuva e frio, ou por outra entrada, na porta da frente da estufa que dava para o pátio dos cavalos. Essa porta externa parecia desproporcional em relação à altura interna da peça, pois assim que adentrávamos nela, o degrau imediatamente abaixo, indicava o piso de tijolos e fazia parecer que ela era um lugar com paredes muito mais altas. Não tinha forro, olhando para alto se viam a estrutura do telhado e as telhas, além de muitas teias de aranha. Um luz difusa entrava discretamente, especialmente à tarde, quando o sol jogava um feixe de luz no ambiente. Ao fundo, para os lados do arvoredo, essa luz entrava por uma janela vertical e também por uma outra que se localizava à direita, para os lados da ladeira, estas aberturas deixavam o feixe de luz iluminar toda a estufa sem aquecê-la em demasia, ambas janelas tinham telas para evitar a entrada de insetos. As prateleiras eram suspensas, com garrafas presas  na parte superior por onde desciam os arames, a mesma técnica usada no galpão dos arreios, com objetivo de dificultar a subida dos ratos. Sobre essas prateleiras ficavam dispostas as mantas de charque, linguiças e nas localizadas contra a parede se colocavam as latas de banha, de torresmo e as de mel.

No meio da peça da estufa havia um armário de guardar os queijos, com uma tela para a ventilação, o que permitia que eles fossem maturando ao longo dos dias, até o momento de serem consumidos ou vendidos. Volta e meia vó Cinda os virava, fazia uma vistoria para ver o ponto em que se encontravam, às vezes, colocava um pouco mais de sal, que ficava dentro de uma caixa de pedra sobre uma mesa bem rústica de madeira nas proximidades do armário. Ela limpava o soro que escorria dos queijos expostos nas prateleiras, separava os que já estavam prontos e os guardava no armário. Retirava de lá os que poderiam ir à mesa no café da tarde ou da manhã, reservava os das encomendas e, assim, ia repetindo a sua rotina na fabricação de queijos.

A estufa era uma espécie de lugar sagrado. Lugar de mantimentos preciosos, sobretudo em tempos de inexistência de luz elétrica na fazenda e tampouco de geladeira. Minha vó Cinda era dona absoluta daquele santuário, ali ela fez muitos queijos com as filhas. O dinheiro das vendas ajudava nas despesas do Colégio das irmãs em Jaguari, onde todas as filhas estudaram e ficavam vivendo no regime de internato. Meu avô contribuía generosamente com as despesas do colégio fornecendo mantimentos com o que era produzido na fazenda. Quando duas das suas filhas fizeram quinze anos, minha vó comprou pares de anéis e brincos para presentear as filhas. eram jóias simples, mas carregadas de afeto e simbologia,  um gesto para também recompensar as filhas pela parceria na fabricação dos queijos.

Além dos alimentos, se guardavam na estufa os materiais para a produção dos queijos, como vasilhas para o leite, umas fôrmas de metal em que se apertavam os queijos, chamada cincha, fabricadas de lata, com uns furos para escorrer o excesso de soro. Quanto mais se apertava a tal cincha mais o queijo ia secando e ia adquirindo o seu formato e o ponto ideal para o consumo. Havia também uma máquina de espremer mel, uma centrífuga, que era levada para o pátio no dia de melar. Retirava-se os favos das caixas de abelha com muito cuidado, usando um chapéu com uma tela e roupas que cobriam todo corpo para evitar o ataque das abelhas. Colocava-se todos os favos naquela máquina para espremer o mel, separando-o da cera. Eu me deliciava comendo mel em pequenos pedaços de favos que meu pai ia me dando, gostava do mel mais escuro que tinha um sabor mais intenso, ou aquele em que se podia identificar até o perfume da flor de laranjeira,  ambos inigualáveis no paladar.

Depois chegou a geladeira movida à querosene, minha vó Cinda já não fazia queijos. A caixa do sal foi trazida para cima de uma mesa localizada logo atrás da porta da peça do fogo de chão. A máquina de espremer mel foi ficando empoeirada por falta de uso. O armário dos queijos foi trazido para despensa para colocar as panelas de ferro. Entrou para dentro da peça um debulhador e triturador de milho para fazer a alimentação de cavalos e galinhas  Queijo e mel eram produzidos para o consumo da família e a fazenda foi ficando com pouca gente, foi-se então esvaziando o propósito da existência de uma estufa. Lili ainda teve muitos sonhos com a estufa construída com tijolinhos à vista, talvez porque continuava sentindo o gosto do queijo e do mel e do sal grosso no milho assado no fogo de chão. Os aromas e os sabores do que havia dentro daquela estufa não saíram da minha alma.

domingo, 8 de novembro de 2020

Ovelhas tosquiadas....


Tosquiar a farta camada de lã das ovelhas era prenúncio de que o final do ano se aproximava. No mês de novembro chegavam os esquiladores na fazenda, os especialistas em montar um salão de beleza para as ovelhas, realizando a esquila anual do rebanho. Era época de retirar toda aquela lã das coitadas e assim aliviar as humildes ovelhas do seu revestimento abundante e quente, deixá-las livres para o verão que logo chegaria trazendo muito calor. Com a pele tosquiada, elas podiam passar os dias quentes mais refrescadas, sem toda aquela lã que lhes cobria o corpo para protegê-las durante o inverno. 

Quando tosquiadas, as ovelhas saltavam alegres para dentro da mangueira. Depois, seguiam ordeiras as suas trilhas marcadas pelas estradinhas no campo, trilhas que elas mesmas desenhavam por causa das inúmeras vezes que faziam o mesmo caminho. Andavam enfileiradas de cabela baixa, às vezes, parando no caminho para uma pastada onde houvesse uma vasta vegetação, pois são as roçadeiras naturais dos campos. Lili se debruçava sobre as tábuas da mangueira, bem na altura da qual podia espiar as ovelhas esquiladas, gostava de ver como a retirada da lã as deixavam mais alvas, mais estranhas mas nem sempre mais bonitas. Lili se solidarizava com aquele momento de alívio das inúmeras ovelhas tosquiadas, que pareciam cobrir a mangueira como um enorme manto esbranquiçado. Também, pela fresta da cerca da mangueira, Lili avistava a passividade do rebanho reunido.

Meu pai e o tio Ruco gostavam de criar ovelhas. Eles tinham um ritual semanal para cuidá-las, revisavam uma a uma, verificando se elas tinham algum ferida, a tal da bicheira, chamada assim porque as feridas eram lugares muito apreciados por larvas. Para tratá-las, colocavam-nas no chão, apoiando-as entre as pernas para segurá-las e, deste modo, podiam revisar cada ferida e cada casco trincado ou machucado da ovelha. Esta dedicação e amor às ovelhas levaram os dois a construírem uma mangueira adequada para elas, com uma altura que pudessem manejar com elas e retirá-las do brete mais comodamente na hora de curar. Para os curativos usavam uma creolina e também algo mais moderno, um spray violenta. As ovelhas com machucados ficavam marcadas por manchas violetas pelo corpo, de longe podia-se identificar as mais fragilizadas pela cor arroxada nos seus corpos. Naquela mangueira, anexada à mangueira das vacas mansas, e construída sobre o terreno onde por muito tempo minha vó Cinda teve sua horta, eles passavam os finais de tarde dedicados aos cuidados do rebanho. Tudo parecia estar em harmonia, pois, ao entardecer, as mangueiras eram cobertas pelas sombras dos velhos eucaliptos, sob a luz dourada do sol do final de tarde. 

As ovelhas forneciam três produtos na fazenda: a lã, que era vendida, o pelego para uso na montaria e a carne. Comia-se muita carne de ovelha, era de fácil abate e se podia conservar na única geladeira da casa. Meu pai e meu tio Ruco eram habilidosos em carnear ovelhas e, desde muito pequena, eu acompanhava o ritual de carneação das ovelhas. Pendurada no galho forte de um pé de uva do japão, a ovelha era suspensa e meu pai começava então a retirar delicadamente o pelego, evitando que a lã encostasse na carne, por causa da sua gordura, a lanolina impregnava na carne se não cuidássemos da higiene das mãos. Nesses momentos, eu corria para buscar a bacia que ficava em um suporte de ferro apoiado em um dos esteios da parreira, logo abaixo de um vaso com um cactus que dava uma flor cor de rosa, e que minha vó chamava de rabo de gato. Eu levava água limpa para que meu pai lavasse as mãos. Repetia a troca da água o quanto fosse necessário, pois a higiene das mãos na retirada do pelego garantia o melhor sabor da carne. O pelego era limpo e depois colocado em uma moldura de madeira, no qual ficava bem esticado, colocado no vento e sob o sol, ele ia secando até ficar em condições de ser removido e então ser usado. No final do ano muita gente aparecia para comprar ovelha, para ter carne nas festas de fim de ano. Meu pai separava algumas para a venda, muitas das que eram vendidas eram das minhas tias. Lembro de uma caixa de madeira em uma das prateleiras do guarda-roupa do quarto dos meus pais, nela, meu pai guardava um maço de dinheiro amarrado com uma borracha. Lembrava-me de não mexer nesse maço cada vez que me autoriza pegar dinheiro para algum pagamento ou para alguma compra na cidadde. Era a renda das ovelhas que ele guardava para entregar às minhas tias quando elas vinham no final do ano.   

Minhas memórias sobre esta lida do campo se acumulam pelas observações de Lili. As ovelhas eram tosquiadas já pelo excesso de lã no corpo naquela época do ano. Seguia-se um ciclo, no inverno já estariam com lã suficente para cobrí-las e aquecê-las a fim de enfrentarem os dias de frio, de chuvas e geadas. A lã retirada era toda reunida em velos, grandes novelos de lã esquilada, colocados em sacos de juta bem compridos. Quando um saco daqueles estava cheio, os homens da casa, entre eles, sempre o Vergilino por sua força, carregavam os sacos apoiados sobre varas grossas de eucalipto, para facilitar o transporte do pesado saco de juta até a garagem da charrete amarela. Lá, eram empilhados contra a parede próxima à porta lateral de saída para o pátio dos cavalos. Lili e a gurizada da casa se divertiam rolando sobre os sacos fofos de lã, deitar sobre aqueles grandes colchões macios. Sobre a pilha conversávamos, pulávamos e também nos escondíamos na hora das brincadeiras, vigiados pelo Vergilino, zelava por nós nos observando, apoiado em alguma das tantas portas da grande garagem da charrete amarela. Na garagem também havia um tronco de cortar carne e, na principal viga do galpão da garagem, em ganchos de ferro, eram penduradas as peças da carne de ovelha, contrastando com dois imensos porongos também pendurados na viga e que eram raridades que chamavam atenção das visitas que chegavam na fazenda. 


Carapé

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