domingo, 8 de novembro de 2020

Ovelhas tosquiadas....


Tosquiar a farta camada de lã das ovelhas era prenúncio de que o final do ano se aproximava. No mês de novembro chegavam os esquiladores na fazenda, os especialistas em montar um salão de beleza para as ovelhas, realizando a esquila anual do rebanho. Era época de retirar toda aquela lã das coitadas e assim aliviar as humildes ovelhas do seu revestimento abundante e quente, deixá-las livres para o verão que logo chegaria trazendo muito calor. Com a pele tosquiada, elas podiam passar os dias quentes mais refrescadas, sem toda aquela lã que lhes cobria o corpo para protegê-las durante o inverno. 

Quando tosquiadas, as ovelhas saltavam alegres para dentro da mangueira. Depois, seguiam ordeiras as suas trilhas marcadas pelas estradinhas no campo, trilhas que elas mesmas desenhavam por causa das inúmeras vezes que faziam o mesmo caminho. Andavam enfileiradas de cabela baixa, às vezes, parando no caminho para uma pastada onde houvesse uma vasta vegetação, pois são as roçadeiras naturais dos campos. Lili se debruçava sobre as tábuas da mangueira, bem na altura da qual podia espiar as ovelhas esquiladas, gostava de ver como a retirada da lã as deixavam mais alvas, mais estranhas mas nem sempre mais bonitas. Lili se solidarizava com aquele momento de alívio das inúmeras ovelhas tosquiadas, que pareciam cobrir a mangueira como um enorme manto esbranquiçado. Também, pela fresta da cerca da mangueira, Lili avistava a passividade do rebanho reunido.

Meu pai e o tio Ruco gostavam de criar ovelhas. Eles tinham um ritual semanal para cuidá-las, revisavam uma a uma, verificando se elas tinham algum ferida, a tal da bicheira, chamada assim porque as feridas eram lugares muito apreciados por larvas. Para tratá-las, colocavam-nas no chão, apoiando-as entre as pernas para segurá-las e, deste modo, podiam revisar cada ferida e cada casco trincado ou machucado da ovelha. Esta dedicação e amor às ovelhas levaram os dois a construírem uma mangueira adequada para elas, com uma altura que pudessem manejar com elas e retirá-las do brete mais comodamente na hora de curar. Para os curativos usavam uma creolina e também algo mais moderno, um spray violenta. As ovelhas com machucados ficavam marcadas por manchas violetas pelo corpo, de longe podia-se identificar as mais fragilizadas pela cor arroxada nos seus corpos. Naquela mangueira, anexada à mangueira das vacas mansas, e construída sobre o terreno onde por muito tempo minha vó Cinda teve sua horta, eles passavam os finais de tarde dedicados aos cuidados do rebanho. Tudo parecia estar em harmonia, pois, ao entardecer, as mangueiras eram cobertas pelas sombras dos velhos eucaliptos, sob a luz dourada do sol do final de tarde. 

As ovelhas forneciam três produtos na fazenda: a lã, que era vendida, o pelego para uso na montaria e a carne. Comia-se muita carne de ovelha, era de fácil abate e se podia conservar na única geladeira da casa. Meu pai e meu tio Ruco eram habilidosos em carnear ovelhas e, desde muito pequena, eu acompanhava o ritual de carneação das ovelhas. Pendurada no galho forte de um pé de uva do japão, a ovelha era suspensa e meu pai começava então a retirar delicadamente o pelego, evitando que a lã encostasse na carne, por causa da sua gordura, a lanolina impregnava na carne se não cuidássemos da higiene das mãos. Nesses momentos, eu corria para buscar a bacia que ficava em um suporte de ferro apoiado em um dos esteios da parreira, logo abaixo de um vaso com um cactus que dava uma flor cor de rosa, e que minha vó chamava de rabo de gato. Eu levava água limpa para que meu pai lavasse as mãos. Repetia a troca da água o quanto fosse necessário, pois a higiene das mãos na retirada do pelego garantia o melhor sabor da carne. O pelego era limpo e depois colocado em uma moldura de madeira, no qual ficava bem esticado, colocado no vento e sob o sol, ele ia secando até ficar em condições de ser removido e então ser usado. No final do ano muita gente aparecia para comprar ovelha, para ter carne nas festas de fim de ano. Meu pai separava algumas para a venda, muitas das que eram vendidas eram das minhas tias. Lembro de uma caixa de madeira em uma das prateleiras do guarda-roupa do quarto dos meus pais, nela, meu pai guardava um maço de dinheiro amarrado com uma borracha. Lembrava-me de não mexer nesse maço cada vez que me autoriza pegar dinheiro para algum pagamento ou para alguma compra na cidadde. Era a renda das ovelhas que ele guardava para entregar às minhas tias quando elas vinham no final do ano.   

Minhas memórias sobre esta lida do campo se acumulam pelas observações de Lili. As ovelhas eram tosquiadas já pelo excesso de lã no corpo naquela época do ano. Seguia-se um ciclo, no inverno já estariam com lã suficente para cobrí-las e aquecê-las a fim de enfrentarem os dias de frio, de chuvas e geadas. A lã retirada era toda reunida em velos, grandes novelos de lã esquilada, colocados em sacos de juta bem compridos. Quando um saco daqueles estava cheio, os homens da casa, entre eles, sempre o Vergilino por sua força, carregavam os sacos apoiados sobre varas grossas de eucalipto, para facilitar o transporte do pesado saco de juta até a garagem da charrete amarela. Lá, eram empilhados contra a parede próxima à porta lateral de saída para o pátio dos cavalos. Lili e a gurizada da casa se divertiam rolando sobre os sacos fofos de lã, deitar sobre aqueles grandes colchões macios. Sobre a pilha conversávamos, pulávamos e também nos escondíamos na hora das brincadeiras, vigiados pelo Vergilino, zelava por nós nos observando, apoiado em alguma das tantas portas da grande garagem da charrete amarela. Na garagem também havia um tronco de cortar carne e, na principal viga do galpão da garagem, em ganchos de ferro, eram penduradas as peças da carne de ovelha, contrastando com dois imensos porongos também pendurados na viga e que eram raridades que chamavam atenção das visitas que chegavam na fazenda. 


Um comentário:

  1. Quando é tempo de tosquia já clareia o dia com outro sabor,as tesouras cortam,num só compasso, enrijecendo o braço do esquilador.muita lã soquei dentro daqueles sacos grandes, abração colega e obgd pela lembrança

    ResponderExcluir

Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...