domingo, 2 de outubro de 2022

Dia de eleição

Lili seguia trajetos diferentes para ir à padaria. Em uma cidade pequena poucas são as alternativas para fazer caminhos novos. Passar pela praça era inevitável. O instigante para ela era ler e reler várias vezes, cada vez que cruzava pela praça, a carta do Getúlio Vargas, fixada sobre aquelas pedras, aberta para leitura de quaisquer transeuntes. Diziam, à época, que toda cidade tinha aquela carta monumento. Logo na entrada da praça, pela 7 de Setembro, esquina com a Carapé, ela se localizava atrás de um banco de cimento, entre os muitos bancos que se distribuíam no contorno da praça, ao longo das calçadas. A famosa carta ficava debaixo de umas espirradeiras, estava congelada no tempo e relatava a despedida da nação feita pelo presidente, antes do seu marcante suicídio.

Cada vez que eu lia a carta, quase a decorei, me vinha à lembrança meu registro de nascimento. Nasci em General Vargas, a cidade mudou de nome por razões políticas para homenagear o pai do Getúlio Vargas, o que durou pelo menos umas duas décadas, justo no período que nasci. Eu não me via cidadã de uma cidade inexistente, gostava da origem jesuítica do nome do meu lugar de pertencimento. Aquele presidente fazia parte do meu universo, era um velho conhecido por causa do retrato imponente disposto na parede da sala da nossa casa no campo. Coisas de minha mãe.

A fase de adolescente despertou em Lili novos interesses. Aguçou seu senso de observação para os acontecimentos da cidade: as festas, as comemorações, as rodas de conversas dos adultos, o comportamento das mulheres, os fatos importantes da cidade. Ampliou as leituras, dos livros da série Vagalume para o jornal que lia no escritório do tio Ruco. Havia tardes que eu ficava em volta dele, até que me davam alguma tarefa, como organizar por data as notas fiscais e faturas de algum estabelecimento comercial que ele fazia a contabilidade.

Naqueles meados dos anos 70, pela primeira vez acompanhei minhas tias até a sessão eleitoral, testemunhando aquele grande acontecimento que eram as eleições. Elas se aprontavam cedo, dia de usar roupa de domingo. As que moravam longe faziam questão de votar no município, embora há muito tempo tivessem saído da cidade. Minha mãe deixava todo serviço da casa, porque votar era sagrado. Polemizava com minhas tias e tios, bradava suas ideias e votava cheia de convicção no que acreditava. Tia Cisa desde aquela eleição não perdeu mais seu posto de apuradora de votos. Relatava o que os eleitores escreviam nas cédulas, escritos inusitados e se divertia contando o que encontrava na contagem das cédulas, pois gostava de política. Ela até mesmo reconhecia alguma letra da família, afinal o voto era escrito.

Lili ficava no corredor do Grupo Escolar aguardando elas votarem. Era dia movimentado, pequenas filas em frente às salas, fiscais dos dois únicos partidos na observação do processo. Muita conversa ao pé de ouvido nos grupos espalhados nas esquinas. Bandeiras e papéis dos santinhos voavam pelos pátios e se acumulavam nas sarjetas, fotos preto e branco de candidatos misturadas com algumas coloridas. Na praça, gente comentado seus votos, encontros com parentes e muita celebração. Via-se a correria de camionetes de cabo eleitorais e táxis trazendo e levando eleitores. Ao final da tarde muita gente se amontoava na porta do Clube Vicentino, onde se instalava a grande sala de apuração. As urnas de lona chegavam do interior assim como as que continham os votos das duas sessões eleitorais do centro, as do Grupo Escolar e as do Colégio São Vicente.  

Fui aos poucos entendendo a importância daquele dia em que brotava gente de todos lados, tinha-se a impressão de que população local era bem maior. As pessoas chegavam vestidas de uma maneira quase solene: os homens de calça e camisa, no modo alfaiataria, retiravam educadamente seus chapéus ao entrar na salas de votação; as mulheres reforçavam o batom nos tons mais fortes e usavam leques para aliviar o calor que se anunciava em meados de novembro.

Sentada no banco nas imediações da carta do Getúlio, Lili fotografava mentalmente a agitação do dia, as pessoas que passavam voltando para casa e as que aguardavam ansiosas o resultado da eleição, aglomeradas no entorno da banca de revistas na esquina da praça, de olho no anúncio que o juiz faria do resultado das eleições lá de dentro do Clube, do outro lado da rua. Algo de muito grande fazia aquele dia ter um ar de esperança. Lili não conseguia ainda compreender se tanto compromisso daquele povo que se avolumava na cidade, era sinal de mudança. Estávamos nos anos 70.   


 

 




  

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