sábado, 29 de outubro de 2022

Otacílio

Há muitas vantagens em se viver em uma cidade pequena. As distâncias são apenas pontos de vistas do que é longe e do que é perto, facilmente se atravessa a cidade com uma boa caminhada. As lonjuras, neste caso, são entre a cidade e as moradas localizadas no interior, no campo. Nestes pequenos municípios a vida tem outro ritmo, os vizinhos te socorrem, te auxiliam e te cuidam. Todo acontecimento inusitado se espalha logo como grande notícia. Metade das pessoas se encontram em festas familiares, porque casamentos acontecem ao longo de gerações entre famílias conhecidas, às vezes, primas casam com primos. E há, claro, as fofoqueiras de plantão, como de costume, espiando nas frestas das janelas ou disfarçadas por trás das cortinas das suas casas, quando não fofocam ali mesmo, no meio da praça em encontros furtivos. Espiam do alto das janelas os jovens retornando dos bailes do Clube Vicentino durante a madrugada.

Lili cruzava a cidade para provar as roupas na costureira. Gostava de olhar os modelos das revistas Manequim e Figurino, inspirava-se para desenhar seus próprios modelos. Desenhar era uma distração a que me dedicava durante à tarde, além de ler e estudar. Meus cadernos eram repletos de desenhos, minha preferência recaia sobre o desenho de pessoas. Minha mãe dizia que eu tinha mania de fazer desenhos de rostos, em especial, de mulheres. Não sei bem o que ela queria dizer nem o que exatamente pensava sobre minha obsessão.

De tempos em tempos, Lili rumava para lado oeste da cidade, para bem depois do cemitério. Levava tecidos, linhas e botões para dona Ursulina confeccionar as roupas planejadas nos esboços feitos em folhas arrancadas do caderno de desenho. A casa ficava para os lados da cooperativa,  junto ao bolicho do seu marido, seu Athos. Eu a conhecia por ser sogra de uma das minhas tantas tias, a Lena. A sala da casa tinha móveis escuros, paredes rosadas e uma porção de pássaros azuis de porcelana presos na parede e que me encantavam. Em um quarto junto ao espaço onde ela costurava, havia o dormitório de uma senhora muito idosa, quase centenária, tia do seu marido. Dona Ursulina dava corda para minhas invenções de estilista, fazia sugestões e ajustava a costura na prova. Na volta para casa, eu levava alguma costura pronta da minha mãe.

No bolicho, eu sempre pegava uma rapadura. Meu pai nos acostumou com as rapaduras de caldo de cana que comprava em Jaguari, pegamos muito gosto por elas. O balcão para atender os clientes era alto e atravessava toda a peça, dividindo as prateleiras das mercadorias de quem chegava para comprar, sobre ele uma balança com pesos de metal.  Comercializavam grãos à granel, depositados em tulhas e descascavam arroz para vender por quilo, além de enlatados, temperos, refrigerantes e cachaça. Encostados nas portas ou sentados em cadeiras de palha, os borrachos de sempre. Eu conhecia de longe o tio Vito, irmão do meu avô, com seus olhos azuis profundos, era  freguês habitual do bolicho. Mas havia outra figura que rondava o estabelecimento, para beber um trago oferecido pelos borrachos habituais. Ele também recolhia sobras e ganhava algo para comer. Andava pela cidade, atravessava distâncias com seu jeito de desnorteado: o Otacílio

O Otacílio vestia-se de roupas velhas, sempre desbotadas e gastas. Em volta da cabeça uma faixa clara já amarelada de sujeira e gordura. Amarrava as calças na cintura com um cordão. Lili o conhecia porque passava por ele na volta da escola. O almoço, ele tinha garantido pela dona Amélia, que morava na esquina, no lado oposto da farmácia da tia Ivoly. Ali ele esperava junto ao portão lateral pelo seu prato de comida, todo santo dia. Falava pouco, parecia constantemente perturbado, não gostava de provocações. Cada vez que alguém dizia algo a ele ou ria, saia esbravejando. Otacílio era meu relógio, eu calculava a hora que estava chegando em casa pela presença dele sentado na calçada na sombra das ameixeiras da casa à espera de um prato de comida. Dona Amélia não falhava no seu cuidado e ele parecia demonstrar um grande respeito por aquela senhora miúda, de cabelos brancos e um coque no altura do pescoço, que lhe oferecia o almoço diariamente.

Na cidade pequena as pessoas vão se encontrando nas poucas ruas que existem. Se cruzam no cemitério, na única agência bancária, na frente dos correios ou em algum mercadinho mais afastado, onde tem a farinha de milho mais saborosa ou onde tem o feijão que cozinha muito bem, como o do seu Augusto. A gente sabia que ele comprava feijão na Mata para revender e encomendava uns quilos. No meio do caminho, invariavelmente, dona Bibiana me parava na calçada e me segurava pelo braço, queria notícias da família. Ela me chamava carinhosamente de parentinha. De fato, eles tinham algum parentesco com minha mãe. Há uma corrente de afetos, de conversas, de encontros cotidianos que tornava a cidade de Lili um lugar de pequenas grandes histórias de vida. 



2 comentários:

  1. Lindo texto. Mostra a singeleza das cidadezinhas do interior. Qual a criança que não teve um Otacílio na sua infância? Lembro do "velho do saco" com o qual minha mãe me assustava. Ah, Memories...

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  2. Eu me vi, ao ler esse texto, na minha cidade Nnatal. Parabéns, Eliana, pela sensibilidade na escrita!

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