domingo, 25 de junho de 2023

A banca de revistas

Buscar o pão para o café da tarde, momento sagrado de se alimentar para minha mãe, seguia sendo tarefa diária de Lili. Quatro quadras de caminhada interrompida pelas minhas paradas de observação e de conversa solta com os conhecidos. Eu era um grilo falante e um poço fundo de curiosidade pela vida, pelo mundo e pela história das pessoas. O fascínio pelas revistas me fazia perder a noção do tempo na banca na esquina da praça, agora sob comando do Candinho. 

Aquela pequena casa de madeira mudava de cor e de dono, mas mantinha sua importância para a movimentação da cidade. Chegavam os jornais, as revistas mensais e semanais, as novidades em álbuns para colecionadores e novas guloseimas do mercado. Aquela esquina da praça tinha seu lugar no coração de muitos moradores, ponto de referência para uma conversa, um negócio, ou apenas uma distração.  

Eu me deliciava com as novidades anunciadas nas capas da revistas, juntava as moedas do troco do pão por semanas até conseguir comprar uma Grande Hotel, famosa revista de fotonovelas. Elas povoavam a minha imaginação, muito mais pelo enredo do que pelo romantismo insinuado nas fotos e nos diálogos dos protagonistas.

A televisão preto e branca tornou-se um grande lazer para minha mãe, as novelas davam a ela a possibilidade de imaginar um mundo que não tinha. Deu um frescor à sua vida urbana, reavivou seu gosto pelas novelas, iniciado nos tempos das novelas de rádio, que ouvia antes de ter casa, filhos, bichos e um marido para cuidar. A televisão e as novelas eram uma trégua na vida dura que a esperava cada vez que voltava para nossa casa no campo. Já eu, havia adicionado ao hábito de ver as novelas com ela, o de ler fotonovelas.

Lili alimentava muitos sonhos através das novelas, desde quando acompanhava a vó Cinda assistindo Mulheres de Areia. Lili hipotetizava o que iria se desenrolar nos próximos capítulos, ansiava pelo horário em que se iniciava a sequência de novelas na televisão, das 18 horas às 23 horas. Aguardava tia Jane voltar da escola, tarde da noite, para ver os delírios dos personagens fantásticos de Saramandaia, tão diferentes, cheios de poderes que só a ficção possibilitava. O universo imaginado por Lili se nutria de histórias, ia ficando cada vez mais vasto, inalcansável. Nele, ela mergulhava absoluta e dava rumos para sua vida futura, decolava daquela pequena cidade para o mundo.  

Meus irmãos frequentavam a banca do Candinho para comprar figurinhas para os álbuns: de animais, de lugares desconhecidos e os de seleções e de times de futebol. E claro, semanalmente, meu pai comprava pacotes de cigarros. Quando sobrava uns trocados da compra da revista, eu me presenteava e me deliciava com um bombom beijo de moça. A banca oferecia um mundo de diversão: jornais, revistas, doces, figurinhas, cigarros. Estar no meio do meu caminho na ida à padaria, tornava aquela obrigação diária um luxo. Afinal, a banca era como uma porta de entrada para longe daquela vida pacata do interior. Lili desejava ir mais longe, seus sonhos não cabiam ali. 

Embalada pelas novelas, colava poster dos artistas na parte interna do guarda-roupa. Todos os dias eu dava uma espiada naquele painel de atores, atrizes, cantores e cantoras. Trocava um olhar e travava um papo imaginário com eles. A alma de artista de Lili se inspirava e se entusiasmava. Queria ser atriz, queria ser diretora de teatro, queria ser pintora e também poeta ou escritora. Os cadernos da escola tinham espaços reservados para extravazar minha inspiração artística: desenhos, poemas, listas de personagens, projeto de cenários. Um turbilhão de ideias me atormentavam. Comecei a dar formato aos meus ímpetos de criação, e em um caderno pequeno de capa vermelha escrevi histórias curtas, enredos inspirados nas inquietudes românticas das amigas, através delas eu escapava de uma vida monótona e de um destino que parecia sempre estar predestinado para meninas do interior.  


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