domingo, 25 de outubro de 2020

Dia de flores, saudades e vento

A primavera anunciava sua chegada antes mesmo da data fixada no calendário. Os primeiros ventos enlouquecidos no mês agosto traziam calor, abafamento, uivos insistentes e aviso de tempestade nos dias vindouros. Mas também sinalizavam que era chegada a hora de limpar o jardim, remover as folhas secas, podar os galhos mortos e inúteis das roseiras, das azaleias, da alamanda, plantar os gladíolos. Minhas avós seguiam o ritual do calendário regido pelos sinais da natureza, cada ciclo que se fechava era hora de plantar e replantar as flores da época. Nesses primeiros anúncios de que findava o inverno, e logo ali a primavera se aproximava, elas planejavam o plantio das flores com as quais, no dia de finados, demonstrariam suas saudades e seus afetos eternos.

Ter um belo jardim era sinal de capricho e sensibilidade das mulheres da casa, pelo menos era o que sentia Lili cada vez que percorria os arbustos no jardim da casa da Vó Xiruca. Havia poucas flores no chão, porque entre os canteiros que circundavam os arbustos do jasmim, do brinco de princesa, das dálias enormes, era só chão batido de terra arenosa, mas impecavelmente varrido. Não havia grama nem calçadas, somente um caminho limpo e desenhado por entre os canteiros fartos de pés de flores. Lili gostava especialmente do adorno que a lágrima de Cristo fazia sobre os marcos de uma das portas da casa e, da alamanda coberta de flores amarelas, que dava à porta da sala um ar de portal. Sim, um portal de acesso ao frescor de uma sala antiga, de janelas sempre abertas para a entrada da brisa da manhã. Lili se enfeitava com as flores, nos cabelos uma camélia rosa e nas orelhas uns brincos de princesa rosa e violeta, porque entre aqueles canteiros, o mundo de Lili, no alto de seus cinco anos, já era o de se imaginar uma pequena princesa. 

No jardim da fazenda, vó Cinda cultivava muitas roseiras. Rosas de todas as cores, eram robustas e perfumadas. De tempos em tempos, ela colocava o Vergilino para arrancar as ervas daninhas invasoras, retirar as flores velhas e as folhas secas debaixo do pé de camélia. À noite, ela mesma cuidava de percorrer com uma lanterna os caminhos que levava ao formigueiro de onde saiam as formigas cortadeiras que devoraram suas roseiras. Uma manhã ou uma tarde da semana ela se dedicava à arrumação do jardim.

Na altura do quarto onde dormíamos ficava a cerca lateral do jardim, para os lados do arvoredo. Ali Vó Cinda preparava um canteiro para enterrar as batatas de palma, nome que ela dava para os gladíolos. Buscava sempre variar as cores, algumas com duas cores, centro claro ou vermelho e as bordas de tons coloridos variados: vermelho, branca, rosa, lilás, amarela, coral. Trocava as batatas com as comadres, para colorir ainda mais os buquês que faria para o dia de Finados. Também as plantava na outra extremidade do jardim, contra a cerca de tela, entre as cravinas e as gérberas. Os canteiros tanto o do entorno dos arbustos da palma santa, aquela que levavam para ser benzida no domingo de ramos e o do pé de jasmim eram cobertos por flores coloridas e delicadas: cravinas, chitinhas e boca de leão. Minhas tias traziam sementes da cidade ou de outros lugares por onde andavam. Ao terminar a temporada daquelas flores, ela cuidava de retirar as sementes e as batatas dos canteiros, para que na próxima entrada de primavera, ela as tivesse já garantidas para novas plantações e prepararia assim sua colheita de flores para mais uma data de Finados.

Nas primeiras horas da manhã as flores já estavam colhidas, acomodadas numa cesta, numa bacia e num balde. E a charrete preparada, com o Tarugo pacientemente esperando por nós: vó Cinda, minha mãe e eu. Elas faziam questão de muito cedo já estarem colocando flores nos túmulos, por causa do calor e para evitar a aglomeração que se fazia no largo corredor que dividia o cemitério em dias grandes alas. na calçada externa da frente do cemitério velhos pés de plátanos devam o ar sóbrio e melancólico daquele lugar. Embora eu fosse muito pequena, tinha uma tarefa muito importante, a de carregar água com o jarro de alumínio que, especialmente neste dia, saia do banheiro da casa onde ficava guardado, para servir de apoio no ritual de organizar as flores em cada vaso ou floreira sobre os túmulos. Usávamos o jarro para colocar bastante água nos vasos, com água abundante tinha-se a sensação de que as flores perdurariam por mais tempo. Eu ia e voltava várias vezes até a torneira que se localizava logo à direita do portão, contra o muro do cemitério. Nunca o enchia totalmente por causa do peso do jarro, sorte também que o jazigo da família ficava bem à esquerda, próximo da entrada do cemitério. Além dos vasos sobre os túmulos, colocávamos flores nos vasos fixados no chão, sempre aos pés do ente querido. 

Alguns dias antes do dia de finados, vó Cinda e minha mãe, às vezes com ajuda da tia Maria, iam ao cemitério para fazer uma limpeza, afinal encher os vasos de flores sem uma boa limpeza era como se ter um descuido inaceitável com os mortos, e todo ano elas cumpriam com esta tarefa. Distribuíam flores por outros jazigos: todos ganhavam flores, os parentes e amigos próximos recebiam pequenos buquês como uma lembrança de que não eram esquecidos, pelo menos naquele dia dedicado a eles. Voltávamos antes do meio-dia para evitar o sol a pico. Invariavelmente o dia era pesado e piorava muito com o maldito vento quente vindo do lado norte, que transformava aquele dia, ainda que colorido pela quantidade de flores, um dia triste de saudades daqueles que já haviam partido.

  

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Tia Jane, para sempre a professora


No quarto da Vó Cinda, Lili sempre escolhia dormir na cama do lado esquerdo, abaixo do quadro de um Jesus melancólico que povoava as suas indagações sobre a vida e sobre o mundo. Encostada na parede azul ficava uma cama cor amarelo claro de ferro, com uma cabeceira vazada com barras arredondadas, parecendo uma grade. A cama tinha lastro de molas e pular sobre ela era a primeira diversão do dia, era meu brinquedo de pula-pula particular. Então, eu me apossava da cama da tia Jane durante os dias da semana, quando ela não estava na fazenda ou quando ela viajava. Nossa divisão da cama respeitava os limites da gentileza familiar, misto de respeito pelos mais velhos e da hospitalidade para a qual éramos educadas. Nestas ocasiões, eu saltava para a cama da direita ou dormia em uma cama improvisada no chão, sobre o tapete de couro em frente ao guarda-roupa da vó Cinda.

Tia Jane nas primeiras lembranças da Lili era uma mulher não muito alta, de cabelos fartos, muito longos, pesados e de uma linda cor castanho escuro. Nela tudo parecia charmoso e de bom gosto. Usava umas tiaras no cabelo, faixas ou lenços com os quais os amarrava em dias de calor. Ela fazia gestos amorosos na mesma intensidade com que usava sua franqueza em apontar o que não gostava e na firmeza em nos corrigir, sobretudo, o nosso modo de falara língua portuguesa. Era a professora que se sobressaia, muitas vezes, mais que a tia. Educava-nos na mesa, no comportamento com os outros e na higiene pessoal.

Todo ano, durante as férias vinham os primos mais velhos passar as férias na casa da fazenda. As tias cuidavam nessa época do ano de fazer grandes mudanças e faxinas. E para nos manter ocupados, sobretudo os menores, nos convocavam para tarefas rotineiras: ajudar com retirada de uma montanha de lixo, um amontoado de muitas folhas dos cinamomos, depois de varrido, o pátio fica impecável. Lavar copos e arrumar a mesa, tarefa solitária da Lili, por ser a única menina na casa grande parte do ano, pois as atribuições do chamado mundo feminino eram todas pra mim. Com a Tia Jane arrumávamos o jardim, seguindo o capricho com as formas e alinhamentos que ela determinava, tudo tinha uma simetria, como a distribuição das mudas de amor-perfeito e cravinas nos canteiros, circundando o pé de roseira ou do jasmim, que ficavam centralizados e adornados por outras flores. Ela primava pela ordem caprichosa das coisas do mesmo modo que vigiava a concordância nominal e verbal da nossa fala.

Nestes dias de férias, tia Jane não deixava escapar os erros de português da gurizada, alguns alunos dela no Colégio Estadual. O gosto pelas combinações se sobressaia no modo com que seguidamente rearranjava os quadrados de tecido com crochê para montar uma colcha que minha vó confeccionava. Nestes momentos, durante as conversas,  ela aproveitava para também fazer adequações linguísticas na fala da vó Cinda. Explicava a ela que agora com a circulação de ônibus intermunicipais, passando na estrada em frente à fazenda, não se poderia dizer que a pessoa apeava do ônibus, e com  seu ar professoral, insistia: mãe se diz "desembarca". Minha vó seguindo à risca a aula dada pela tia Jane, um dia quando um compadre apareceu à cavalo para fazer uma breve visita à fazenda, minha vó correu imediatamente para recebê-lo, e no apuro de ser gentil, dizia: "desembarque, desembarque".

O cuidado com as formas era repetido na hora de picar as frutas para famosa salada de frutas, tradicional sobremesa do dia primeiro ano. Ela cortava as frutas e revisava o corte dos pedaços, buscando a delicadeza harmoniosa dos tamanhos. Por esta razão, os mais velhos lembravam como ela tinha manias da tia Dina, tia da minha vó Cinda, dado o hábito dessa tia de picar batatas ou mandiocas em quadrados similares. Deste zelo com a harmonia das coisas, tia Jane também instituiu na Torta de Nescau como uma nova sobremesa de fim de ano e, ainda, para essa e outras ocasiões de reunião familiar, o creme de camadinhas: uma camada de gelatina, uma de creme inglês e, por último, a camada de merengada. Na culinária fazia poucas coisas, mas se esmerava pela apresentação do prato, por isso o creme de camadinhas era colocado em cremeiras individuais transparentes, decoradas com círculos coloridos, que se confundiam com as camadas do creme. 

Lili via nela um jeito de ser elegante e charmoso, era o estilo de uma professora de francês, já que ministrava também língua francesa na escola, reproduzido no modo de vestir: vestidos retos e discretos, conjuntos de casacos e calças combinando, de cores variadas e muito bem ajustados ao corpo pequeno. Usava batom de cores alaranjadas e rosadas, que passava até para ir na farmácia do meu tio, poucos metros de distância da casa onde morava na cidade. No seu guarda-roupa havia uma prateleira cheia de sapatos mocassim com salto médio de madeira, ela usava uma cartela de cores desses sapatos: preto, azul-marino, marrom, vermelho, verde escuro, bege, amarelo... cores que ainda vivem nas memórias de Lili. 

Era uma mulher de beleza diferente, com um nariz adunco que não combinava com a doçura do seu sorriso, porém combinava perfeitamente com a franqueza habitual como expressava suas opiniões. Tinha lá suas implicâncias, e um desejo permanente de ver tudo bonito. Era uma personalidade que de fato gostava de ser quem era, nesta certeza, solicitou mudança do nome que constava na certidão de nascimento. O cartório havia registrado como seu nome: Janiz, mas ela se reconhecia como Jane. O jeito didático como ordenava o seu mundo, suas aulas, seu trabalho docente, era um estilo de ser. Inspiração que Lili carregou consigo e que certamente transformou a escola em um sonho ainda maior para sua vida de menina do campo.

 




sábado, 3 de outubro de 2020

Doces de tacho e linguiças campeiras


Na primeira luz penetrando nas frestas da janela do quarto, anunciando o amanhecer, vó Cinda já estava em pé e vestida para o dia de carneação, de lenço na cabeça e, sobre a roupa, um avental feito por ela. Muito cedo da manhã já estava sentada numa cadeira, posicionada na altura de uma mesa improvisada, para que pudesse picar toda a carne para as linguiças. Apoiava uma tábua retangular sobre uma grande gamela e começava sua tarefa, sempre com muita destreza e rapidez, cortava uns bons quilos de carne de gado e de porco que, mais tarde, minha mãe daria forma para as linguiças. Neste dia, Lili realizava pequenos auxílios junto às mulheres da casa no trabalho do dia: cozinhar carnes, separar as misturas, preencher as tripas para fazer vários embutidos, pois se aproveitava tudo que fosse possível das carnes e entranhas do porco.

Meu meu pai controlava o fogo de chão com as lenhas trazidas pelo Vergilino para derreter a gordura das carnes em um grande caldeirão, que ele cedo da manhã já havia separado das carnes do porco, para transformá-las na banha que usaríamos para cozinhar. Em um panela de ferro menor, ele cozinhava as carnes para minha mãe fazer patê, morcilha, queijo de porco, também preparava um espeto para assar a primeira linguiça, um aperitivo para todos os envolvidos naquele trabalho. Quando minha mãe iniciava o preenchimento das tripas para fazer as linguiças, eu corria em direção ao arvoredo velho, passava pelo portão da área do tanque e arrancava alguns espinhos do limoeiro, que se localizava logo atrás de dois pés de butiá na lateral da casa. Os espinhos serviam para fazer pequenos furos nas linguiças, tirando o ar que ficava dentro delas. 

Nesse dia, almoçávamos todos em volta daquela mesa cheia de pedaços de carne, tiras com pele e banha, linguiças, gamelas, bacias, máquina de moer carne, muitas facas, que vez e outra meu pai vinha afiar para minha avó e minha mãe. Banha distribuída nas latas, queijo de porco na prensa, torresmo também guardado em uma lata, tripas cheias de patê pronto para o consumo, acomodados numa fôrma, morcilha quente numa panela, era então a vez de pendurar as linguiças numa longa vara de taquara, suspensa e amarrada com arames que a seguravam desde o teto do grande galpão, o da garagem da charrete amarela. Ali as linguiças arejavam, secavam e era retiradas para o consumo, prontas para fazer com arroz, o famoso prato chamado de "arroz de china pobre".     

Outro dia de trabalho conjunto e com ar de festa, era o dia de fazer doce de tacho. No inverno fazíamos as linguiças por conta da temperatura, o frio era mais adequado para mexer com carnes, ainda mais em tempos de falta de luz elétrica. E no verão, por conta da estação das frutas, se fazia muito doce de tacho, inclusive para guardar para o inverno. Um dia se fazia uma tachada de pessegada e perada, outra de figada ou de goiabada. Na parte do fundo do pátio dos cavalos, debaixo da sombra das árvores, Vergilino providenciava um fogo, uma trempe de ferro, uma tábua de proteção para quem mexia o tacho, para evitar o excesso de calor. 

Enquanto minha mãe e minha vó Cinda terminavam de descascar as frutas, picá-las e passá-las na máquina de moer para fazer uma massa, debaixo da parreira, Vergilino apoiava o tacho grande de cobre sobre a borda do poço e passava limão e sal para limpá-lo. Também se usava um tacho menor de cobre para doces de calda como os de abóbora e figo ou para, com as sobras dos caroços e das cascas das frutas, fazer um caldo que depois se usava para fazer deliciosas geleias.

Minha mãe trazia uma bacia grande com a massa das frutas, media o açúcar e colocava a massa no tacho. Depois de cozinhar a massa da fruta, o doce iniciava a apurar e aí era preciso muita agilidade com a longa pá de madeira para não queimar e cuidar muito de proteger as pernas do doce quente borbulhando e saltando para fora do tacho. No inverno ou nos dias de chuva, meu pai auxiliava mexer o doce no tacho, pois a grande quantidade de massa ficava pesada e ele então socorria as mulheres da casa.

Lili limpava as caixas retangulares de madeira, depois recortava um papel celofone e o colocava no fundo e nas laterais e as deixava sobre uma mesa para colocarem o doce pronto. Quando se retirava a massa do tacho para encher as caixas, sempre sobrava no fundo do grande tacho uma rapa de doce assim como sobrava pedaços da massa na parte mais larga da pá. A melhor porção do doce sempre estava ali, naquela rapa do tacho e na bordas da pá, muito disputada por toda criançada da casa. Em março, quando iniciava a escola, colocávamos fatias de pessegada, perada, figada no meio do pão e já tínhamos nossa merenda. Sabores doces da vida da Lili no campo. 



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