sábado, 3 de outubro de 2020

Doces de tacho e linguiças campeiras


Na primeira luz penetrando nas frestas da janela do quarto, anunciando o amanhecer, vó Cinda já estava em pé e vestida para o dia de carneação, de lenço na cabeça e, sobre a roupa, um avental feito por ela. Muito cedo da manhã já estava sentada numa cadeira, posicionada na altura de uma mesa improvisada, para que pudesse picar toda a carne para as linguiças. Apoiava uma tábua retangular sobre uma grande gamela e começava sua tarefa, sempre com muita destreza e rapidez, cortava uns bons quilos de carne de gado e de porco que, mais tarde, minha mãe daria forma para as linguiças. Neste dia, Lili realizava pequenos auxílios junto às mulheres da casa no trabalho do dia: cozinhar carnes, separar as misturas, preencher as tripas para fazer vários embutidos, pois se aproveitava tudo que fosse possível das carnes e entranhas do porco.

Meu meu pai controlava o fogo de chão com as lenhas trazidas pelo Vergilino para derreter a gordura das carnes em um grande caldeirão, que ele cedo da manhã já havia separado das carnes do porco, para transformá-las na banha que usaríamos para cozinhar. Em um panela de ferro menor, ele cozinhava as carnes para minha mãe fazer patê, morcilha, queijo de porco, também preparava um espeto para assar a primeira linguiça, um aperitivo para todos os envolvidos naquele trabalho. Quando minha mãe iniciava o preenchimento das tripas para fazer as linguiças, eu corria em direção ao arvoredo velho, passava pelo portão da área do tanque e arrancava alguns espinhos do limoeiro, que se localizava logo atrás de dois pés de butiá na lateral da casa. Os espinhos serviam para fazer pequenos furos nas linguiças, tirando o ar que ficava dentro delas. 

Nesse dia, almoçávamos todos em volta daquela mesa cheia de pedaços de carne, tiras com pele e banha, linguiças, gamelas, bacias, máquina de moer carne, muitas facas, que vez e outra meu pai vinha afiar para minha avó e minha mãe. Banha distribuída nas latas, queijo de porco na prensa, torresmo também guardado em uma lata, tripas cheias de patê pronto para o consumo, acomodados numa fôrma, morcilha quente numa panela, era então a vez de pendurar as linguiças numa longa vara de taquara, suspensa e amarrada com arames que a seguravam desde o teto do grande galpão, o da garagem da charrete amarela. Ali as linguiças arejavam, secavam e era retiradas para o consumo, prontas para fazer com arroz, o famoso prato chamado de "arroz de china pobre".     

Outro dia de trabalho conjunto e com ar de festa, era o dia de fazer doce de tacho. No inverno fazíamos as linguiças por conta da temperatura, o frio era mais adequado para mexer com carnes, ainda mais em tempos de falta de luz elétrica. E no verão, por conta da estação das frutas, se fazia muito doce de tacho, inclusive para guardar para o inverno. Um dia se fazia uma tachada de pessegada e perada, outra de figada ou de goiabada. Na parte do fundo do pátio dos cavalos, debaixo da sombra das árvores, Vergilino providenciava um fogo, uma trempe de ferro, uma tábua de proteção para quem mexia o tacho, para evitar o excesso de calor. 

Enquanto minha mãe e minha vó Cinda terminavam de descascar as frutas, picá-las e passá-las na máquina de moer para fazer uma massa, debaixo da parreira, Vergilino apoiava o tacho grande de cobre sobre a borda do poço e passava limão e sal para limpá-lo. Também se usava um tacho menor de cobre para doces de calda como os de abóbora e figo ou para, com as sobras dos caroços e das cascas das frutas, fazer um caldo que depois se usava para fazer deliciosas geleias.

Minha mãe trazia uma bacia grande com a massa das frutas, media o açúcar e colocava a massa no tacho. Depois de cozinhar a massa da fruta, o doce iniciava a apurar e aí era preciso muita agilidade com a longa pá de madeira para não queimar e cuidar muito de proteger as pernas do doce quente borbulhando e saltando para fora do tacho. No inverno ou nos dias de chuva, meu pai auxiliava mexer o doce no tacho, pois a grande quantidade de massa ficava pesada e ele então socorria as mulheres da casa.

Lili limpava as caixas retangulares de madeira, depois recortava um papel celofone e o colocava no fundo e nas laterais e as deixava sobre uma mesa para colocarem o doce pronto. Quando se retirava a massa do tacho para encher as caixas, sempre sobrava no fundo do grande tacho uma rapa de doce assim como sobrava pedaços da massa na parte mais larga da pá. A melhor porção do doce sempre estava ali, naquela rapa do tacho e na bordas da pá, muito disputada por toda criançada da casa. Em março, quando iniciava a escola, colocávamos fatias de pessegada, perada, figada no meio do pão e já tínhamos nossa merenda. Sabores doces da vida da Lili no campo. 



2 comentários:

  1. Ler está crônica deixa a boca cheia d' água e a cabeça lotada de imagens , de nostalgia e saudades. Bj grande na Lili

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    1. Linda crónica! Lili en la fronter Rivera Livramento
      haciamos Dulce de membrillos de la misma manera en tachos no abundan goiabeiras como en Brasil.

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