quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

O povo e o interior

A primeira vez que Lili ouviu a palavra povo foi quando vô Joãozinho se referiu à cidade ao comentar sobre as compras de produtos que necessitavam em casa e a chácara não fornecia para a família, pois o auto sustento do qual viviam praticamente evitava idas seguidas à área urbana, tudo o que a família consumia era produzido nas terras no entorno da casa. O que ele mais aguardava das compras vindas da cidade eram a erva, para fazer o mate de todos os dias, e o fumo que ele desfiava com a ponta dos dedos até que virasse um punhado de fios muito finos. O passo seguinte era colocar o fumo desfiado sobre a palha já cortada e enrolar o seu palheiro. Ele fumava enquanto ficava absorto em pensamentos. Anos depois, pelos reveses da vida e do destino, ele se mudou para o povo. 

A cidade havia surgido de um pequeno aldeamento. Tal como Lili aprendeu na escola, na praça central iniciou-se um povoamento com gentios vindos das Reduções Jesuíticas dos Sete Povos das Missões. A velha estância de gado dos jesuítas espanhóis nada mais era do que um agrupamento de índios guaranis que ali cumpriam com o papel de cuidar do gado e dos cavalos. Depois da destruição das Reduções, e findadas as batalhas entre Espanha e Portugal, as antigas terras da estância começaram a receber gado de militares à serviço de autoridades portuguesas. Também vieram portugueses que requeriam suas sesmarias de terras recebidas pelos serviços ao império no controle da fronteira. Muitos outros chegaram nos anos seguintes, exploradores e criadores de gado que viam naquela terra oportunidades para montar seus negócios como o da retirada de madeira no chamado rincão de São Xavier e outros que se dedicaram à pecuária nos bons campos nativos contornados pelo rio Ibicuí e o Jaguari. 

Nosso povoado tem ainda sua origem guarani. quando foram os índios que primeiro se instalaram nas terras da antiga estância. Se realocaram nelas depois que definitivamente a estância de São Vicente saiu do domínio espanhol e foi dando origem, sob o império português, à Vila São José, liderados pelo valente chefe Carapé. Mais tarde, as famílias dos sesmeiros se apossaram de suas terras, alguns aventureiros chegaram para iniciar seus negócios. Aportou na vila, o padre espanhol Boaventura Garcia para assumir como pároco aa igreja matriz São Vicente Ferrer. Contam que antes dessa igreja, duas outras haviam sido erguidas durante o período da Estância Jesuítica em Cavajuretã e Timbaúva  

O povo, nasceu como vila São José e foi crescendo, ergueu-se a primeira igreja e se construíram as primeiras casas. Dizem que a população triplicou com a chegada dos imigrantes, como meus bisavós, pais do vô Joaozinho, para ocupar as terras antes vigiadas pela guarda nacional, as terras do rei. Minha mãe comentava sobre o campo reiuno, ela apontava o lugar onde o gado, sem marca e identificação, formava o rebanho do império, em seguida que passávamos de charrete pela velha estrada intermunicipal, depois da ponte do Salsinho. Tudo o que mais encantava Lili era ver aquele campo todo amarelo, coberto por uma grande colcha bordada com flores de maria mole. 

A vila, em 1876, se transformou em município, e seguia sendo o povo para quem vivia nos fundos de campo, em rincões perdidos e em moradias espalhadas pelo interior. Para qualquer um que vivia em propriedades rurais, em especial em pequenas chácaras, ir ao povo significava dificuldades em se deslocar. O povo, bem mais do que lugar para passear tinha as condições para se usufruir de certos serviços e se cumprir com certos deveres civis, como votar, fazer consultas, compras de roupas, móveis, objetos para casa, entre tantas coisas. No povo a vida era sentida como civilizada, uma ida para a cidade se definia por ocasiões de grande importância. O povo representada o lugar do progresso. 

Mas se deslocar do campo para o povo era tarefa difícil. Estradinhas precárias, muita pedra, muita areia ou muito barro depois das chuvaradas e das enchentes. O transporte era de charrete ou à cavalo. Em alguns locais tinha-se acesso pelos ônibus que realizavam suas rotas intermunicipais cruzando pela cidade, assim quem morava mais próximo das estradas conseguia usá-los como transporte: São Rafael, Loreto, Salso, Divisa, Palma, Cavajuretã, Vila Clara. 

Meu pai costuma vir ao povo pelo menos uma vez na semana na charrete amarela, trazia mantimentos produzidos em casa: laranja, bergamotas, ovos, mandioca, batata doce, leite.  Haviam muitas charretes, um transporte bem comum pelas ruas da cidade, os pobres cavalos precisavam usar ferraduras para aguentar o tranco das distâncias percorridas entre o interior e o povo,  sem contar que ainda andavam sobre as pedras irregulares do calçamento. 

 Cedo da manhã chegavam as pessoas do interior e se acomodavam na área externa do posto de saúde esperando a hora de abrir. A gente sabia da rotina ao avistar a Vanilda passar do outro lado da calçada, trabalhava todo dia no posto, chegava nas primeiras horas da manhã, organizava as filas e as consultas. Eu conhecia bem o cotidiano dela porque morávamos quase em frente ao posto de saúde. Uma vinda ao povo para quem percorria longas distâncias desde suas moradias no campo se pautava por motivos inadiáveis, raramente era por causa de visitas sociais, as pessoas se deslocavam mesmo por necessidades, por urgências como um velório ou uma consulta médica. 

Eu observava do portão de casa as charretes estacionadas na sombra do terreno da esquina. Se olhasse para outra direção via alguma charrete em frente à farmácia da tia Ivoloy. Quase sempre tinha alguém cuidando do veículo, aguardando quem ia comprar um remédio. Lá pela metade da manhã chegava a charrete do seu Ernesto, ele vinha oferecer as verduras de sua horta para minha tia, freguesa habitual do verdureiro mais conhecido da cidade. Ele vinha religiosamente no povo vender seus produtos, e tinha freguesas certas como ela, percorria muitas casas ao longo da manhã. Era um homem de ares germânicos, tez avermelhada, fosse por efeito dos dias de frio ou pelos de sol muito quente. De tanto pegar o gelo das madrugadas teve um espasmo que o deixou com o pescoço torto. Levou uma vida com o pescoço quase deitado sobre um dos seus ombros.

O povo a que meu avô mandava seus filhos entregar leite e comprar fumo de rolo e erva mate, era um outro mundo para quem vivia no campo. Dois modos de viver o tempo. Para quem vinha do interior, atravessando trilhas no campo, cortando caminho, abrindo uma quantidade de porteiras, o povo deslumbrava pelo seu progresso, pelas novidades no comércio, pelas notícias que corriam de boca em boca nas esquinas, pelas conversas rápidas com conhecidos nos bancos da praça. O ritmo de quem vinha do interior se alimentava do que o povo oferecia de novidades e de oportunidades. A escola era uma delas já as que existiam no interior ficam muito distantes uma das outras. Tivemos de nos deslocar do interior, do campo largo da liberdade, para ter aquilo que o povo tinha a nos oferecer. 

   


Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...