quarta-feira, 24 de março de 2021

A despensa







A peça em frente à cozinha, cruzando pela área coberta, era o lugar onde cabia tudo que era utensílios, mantimentos e alimentos da casa da fazenda. A porta da cozinha ficava exatamente no lado oposto da porta da despensa, elas ficavam frente a frente. Qualquer coisa que a Maria precisasse para fazer o almoço ou a janta, com seu corpo ágil e magro, dava uma corridinha até a despensa e voltada rapidamente para cozinha. A comunicação entre as duas peças era possibilitada por uma área calçada ampla onde se podia tomar chimarrão nos dias mais frios, ou pelas manhãs antes do almoço. Ali se reuniam minha vó, às vezes uma das tias ou meu tio Ruco e meu pai, especialmente nos sábados. 

À esquerda dessa área coberta havia um portãozinho de ferro que dava acesso ao arvoredo, com suas laranjeiras velhas, de onde do alto das copas desciam  emaranhados de erva de passarinho. Também, havia uma parreira antiga, com suas videiras contornadas por pés de hortênsias com flores abundantes, lembrando uma paleta de variados tons de rosa. Lili usava as flores para enfeitar os cabelos e também seus bolos e tortas feitos de barro, moldados em uma forma que ela havia inventado a partir de uma colher de metal que vinha dentro da lata de leite ninho. Entre o portão e a parreira haviam dois pés de butiá, um amarelo muito doce e um outro vermelho, com esses vermelhos as tias preparavam uma infusão na cachaça e depois faziam um licor alaranjado e perfumado. No mês de setembro os troncos do butiá ficavam coroados pelas flores vermelhas de um cactus, que descia em cascata da parte mais alta. Eles foram pacientemente plantados pela Vó Cinda, ela os enfiava em cada vão daquele tronco cheio de pontas, uma casca dura e pontuda dando ao tronco um aspecto de abacaxi gigante. Ali naquela parte do terreno, na mesma linha dos butiazeiros, havia mais dois limoeiros e a famosa bergamoteira de frutas pequeninas e docinhas. Na mureta, ao lado do portão, ficava o tanque de cimento, à sua esquerda uma pia e a velha talha de cerâmica abastecida com água fresca do poço. Na entrada da porta da despensa, do lado de fora, a caixa de guardar lenha, o banco preferido do Vergilino. 

A despensa era o lugar sagrado da comida. Não era uma peça muito grande, mas mantinha o frescor de um ambiente onde se guardavam os alimentos secos e as comidas que podiam ser mantidas sem refrigeração como carnes assadas, polenta, mandioca cozida, arroz. Essas comidas eram guardadas na prateleira superior de um balcão, um armário baixo de cor cinza, e nele se colocavam as panelas com as sobras. A tela na metade de cima da porta do armário permitia a ventilação e evitava a entrada de insetos como moscas, baratas e formigas. Na parte debaixo se guardavam as panelas grandes de ferro. 

No meio da peça havia uma mesa onde se deixava a gamela do pão coberta por uma toalha feita com o saco de algodão da embalagem da farinha, e também um panelão com o leite da ordenha da manhã para ser coado. Quando o leite azedava, deixava-se a coalhada que se formava para ser misturada com açúcar e ser consumida, mas o melhor uso da coalhada era nos famosos bolinhos feitos pela Vó Cinda. Em duas das paredes da peça havia prateleiras  onde se colocavam, de um lado, utensílios como conchas, máquina de moer carne, funil, facas para corte de carnes, colheres de pau, peneiras, bacias e formas. Na prateleira, do outro lado, ficavam as famosas latas quadradas de guardar o pão de trigo, o de milho e os biscoitos. Eu apoiava os cotovelos na ponta da mesa e me deslumbrava com a figura de uma coroa imponente de rainha estampada nas latas, abaixo da imagem da coroa uma palavra escrita em letras vermelhas como se fosse uma assinatura: soberana. Eram latas das balas soberanas, reutilizadas pela Vó Cinda para guardar os pães, que deveriam durar até a próxima fornada.

A basculante no fundo da peça, era a única janela, de onde se avistava quem vinha do poço do arvoredo, para lado dos pinheiros. Dali também se podia ver o Vergilino colhendo cachos de banana no bananal, que se localizava logo atrás de um frondoso abacateiro plantado pelo meu avô. Abaixo da basculante ficava a tulha de madeira, em cada uma das suas separações guardava-se feijão, arroz, fardos de farinha de trigo, entre outros mantimentos, fardos, sacos, pacotes. A despensa ganhou importância com a reforma da casa, depois que a antiga estufa, onde se faziam os queijos e se depositava o mel, o sal, as linguiças, foi desativada.  As latas de bala nas prateleiras e a tulha abastecida de grãos davam um ar de armazém para a despensa.

A despensa era mais que o lugar de guardar, era o de preparar o pão, as bolachas, os bolos, de temperar e ajeitar os assados nas formas. Lugar de conversas longas entre minha vó e minha mãe, especialmente no dia de fazer pão, em que vestidas com avental e de lenços amarrados na cabeça decidiam sobre quais pães fazer , enquanto eu corria para auxiliá-las batendo claras, untando as formas e alcançava o caderno de receitas, retirava-o com todo cuidado da gaveta da penteadeira do quarto da Vó Cinda. Ali onde se amassava o pão, elas amassavam suas reclamações e pediam aos gritos que o Vergilino varresse o forno para logo assarem as massas e depois as carnes. Lili enrolava a massa com dedos para fazer as roscas de polvilho e de nata, moldando-as tal como fazia com seus bolinhos de barro, só faltavam as flores cor de rosa das hortênsias da parreira para enfeitar aquelas roscas de nata e de polvilho distribuídas nas formas. Disfarçadamente, eu sempre levantava a toalha e enfiava o dedo na bacia para saborear a massa crua do pão.

 A despensa era uma peça separada do resto da casa, ao mesmo tempo contígua e a ela unida pela área coberta. Dela vinham aromas misturados, um ar mais úmido e uma luz difusa . Todo dia a gente entrava e saia buscando algo que só ali se guardava ou se fabricava para toda família. Lá de dentro brotavam sabores e cheiros que passaram a alimentar continuamente as memórias da Lili. 

sexta-feira, 12 de março de 2021

Retalhos e Remendos


Minha Vó Cinda guardava vidros com botões de vários tamanhos e cores. Ela colocava neles os botões que sobravam da compra feita para uso em uma roupa nova que ela estava costurando. Também iam dentro dos vidros, os botões antigos que ela retirava das roupas velhas e puídas. Os avulsos, em geral uma só unidade, eram colocados em um vidro separado, os demais em outros vidros por tamanho e cores. Reutilizava-os em outras peças, o que minha mãe repetia como um aprendizado, afinal vivendo no campo era necessário reutilizar o que se tinha disponível. Havia muito valor em tudo que se adquiria ainda que fossem apenas botões.

Se não íamos à cidade fazer compras, só conseguíamos os itens de armarinho nas visitas de Seu Piber. Ele chegava no meio de uma tarde luminosa de Outono na sua velha camionete rural willys branca com aquela barra azul nas laterais. A camionete vinha repleta de mercadorias. Ele a estacionava debaixo da sombra dos cinamomos da frente da casa, abria a porta traseira e ia apresentando as novidades: utensílios de casa, tecidos, linhas, agulhas, rendas, fitas, elásticos e algumas roupas íntimas. E logo chegava minha vó, cruzava apressada a antiga estrada que separava nossa casa da casa da fazenda, do jeito que podia pois as pernas um pouco arqueadas para dentro não a ajudavam ser muito ligeira. Ela vinha ávida para verificar o que havia de novo em tecidos e enfeites e vasculhar alguma peça de "baratilho" nas mercadorias trazidas pelo Seu Piber. 

Nas suas andanças de mascate motorizado, Seu Piber saía pelo interior de Jaguari e São Vicente passando pelas pequenas chácaras, sítios, fazendas, abastecendo as famílias e oportunizando às mulheres encontrar o que necessitavam para casa e para uso pessoal. Entre essas moradas que ele parava, estava a da minha vó Xiruca. Como minha mãe e a Vó Cinda, ela se abastecia de tecidos, alguns utensílios de casa e material de costura. Na casa dela, a máquina de costura ficava no quarto do casal, em frente à janela que dava para o jardim, de onde ela podia, sentada junto à máquina, apreciar o pé de brinco de princesa sob a luz morna e amarelada das tardes frescas do outono. Lili não lembra de vê-la trabalhando na máquina de costura, mas se fascinava com a luz outonal atravessando o amplo quarto do casal, na forma de um feixe de luz que repousava justo sobre a máquina de costura. Ela consertava, costurava e remendava as roupas da família naquela máquina, pois necessitava dar conta de vestir os seus muitos filhos com roupas mais quentes no inverno, que logo chegaria. Costurar estava entre os tantos afazeres que ela dava conta, e um dia que as vinte quatro horas sempre eram sinônimo de pouco tempo.

Remendar era tarefa semanal da minha mãe. Recortava sobra de tecidos para cobrir os rasgados das bombachas do meu pai, dando-lhes sobrevida, nem que fosse só para ele usar no serviço de curar os animais no campo ou para quando ia recorrer as taipas na lavoura de arroz. O ato de remendar não era só economizar, era muito mais. Era como remendar as dificuldades da vida. Das sobras de tecidos, minha vó Cinda e minha mãe faziam algumas peças para uso da família: uma barra de lençol, um enfeite em um guardanapo, um pegador de panelas mais grosso para retirar as formas do forno quente ou um avental para uso diário. Os pequenos pedaços de rendas e fitas e algumas nesgas de tecido floridos eu guardava. Cada vez que voavam da máquina para chão, eu os catava para fazer roupas para minhas bonecas. Todo retalho tinha um aproveitamento, elas, sabiamente, diziam: "quem junta o que não presta, tem o que precisa".

 Na fabricação das colchas de retalhos, Lili ajudava selecionar e combinar os pedaços recortados em quadros que a Vó Cinda emendava caprichosamente por meio de um gracioso crochê. Ajoelhada ao lado da cama, eu ia alternando os quadrados de tecidos já com os acabamentos em crochê, para montar uma colcha quentinha, que poderia ainda ser usada como coberta no inverno. As linhas que sobravam de uma costura assim como pedaços de elásticos eram guardados nas gavetas da máquina se acaso necessitassem para algo. Até mesmo os restos de linha de costura ficavam esperando nas gavetas a hora de auxiliarem no colocar a linha nova na lançadeira da máquina. Nada se perdia, tudo se reciclava, se reutilizava.

O aproveitamento era uma prática: uma lata grande de óleo, era cortada e nela feito dobras para virar uma forma na qual se assavam as carnes e os pães. Já uma lata pequena, com uma alça de arame, virava um copo para beber água no poço. Do tijolo quebrado, fazia-se um pó para lustrar as panelas de ferro. As tiras de tecidos e elásticos velhos serviam para amarrar os pés de palma no jardim. Nada parecia ser descartado pelas mulheres da família, porque tudo em algum momento poderia ter uma utilidade. Era assim que elas ainda reaproveitavam as panelas velhas, os bules furados, as bacias lascadas ou trincadas como vasos ou suportes para as flores. E tudo se enchia de beleza, mesmo uma chaleira furada tinha seu encanto ao ficarem cobertas de flores de maio, petúnias, cravos ou gerânios.





 

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