sexta-feira, 24 de julho de 2020

A tapera e a ladeira

Cada vez que aos domingos cruzávamos o arroio da Divisa de carreta, rumo à casa do vô Joãozinho, passando pelo trecho úmido e alagado da várzea, de longe já se avistava uma coxilha. Lá no alto havia uma tapera, onde ele, minha vó e alguns dos filhos mais velhos viveram nos primeiros tempos, quando vieram morar em uma chácara abandonada perto do meu bisavô Antônio. Depois da morte da vó Carolina, ele se sentia muito sozinho e chamou então o filho João para morar nas redondezas. Todos os dias minha vó Xiruca enviava os filhos mais velhos meu tio Nito, tia Carolina, que ganhou nome em homenagem a sua vó, e meu pai para levar comida para o vô Antônio. Na antiga morada, hoje uma tapera, meus avós permaneceram vivendo em uma casa simples de telhado de capim, ali nasceram outros filhos e foram plantando e criando bichos domésticos para subsistência. Alguns anos depois, meu bisavô Antonio faleceu, seu corpo não aguentou as consequências dos tantos tragos que tomava e sua mente ia piorando com as intempéries do seu mau humor e do seu gênio difícil. A construção da tapera foi desmanchada e a família do vô Joãozinho se mudou para um local mais abaixo da coxilha, na casa onde meus bisavós haviam morado.
Na tapera não sobraram vestígios da existência daquela moradia precária e sem conforto, apenas o taquaral e o pomar resistiram ao tempo. Quando passávamos com a carreta na altura da coxilha era uma festa, apanhávamos bergamotas de cima da carreta, no alto das árvores. Sem dúvida eram as melhores e mais saborosas bergamotas que Lili havia provado na sua infância. Também naquele lugar abandonado se encontravam figueiras, macieiras, pereiras, laranjeiras. Dizem por aí que frutas de uma tapera são sempre as mais doces. 
Na família do meu pai, onde se erguia uma morada, plantava-se muitas árvores frutíferas no entorno da casa. A casa que morei, quando muito pequena, além de já ter um grande arvoredo, com muitas bergamoteiras, laranjeiras, limoeiros e pereiras, meu pai foi variando as árvores frutíferas do arvoredo, tínhamos maçãs, pêssegos, ameixas, figos, cáqui. Em todas as casas que Lili conheceu tinha sempre um parreiral. A tapera marcava um lugar deixado para trás, esvaziado pela saída dos filhos e a morte dos moradores, a tapera das bergamotas, no entanto, ficou para Lili como uma referência da chácara onde nasceu o pai.
Meus bisavós se instalaram naquelas terras assim como outros imigrantes, depois de atravessarem fronteira, vindos do Uruguai, junto com vô Francisco e vó Cristina, os primeiros do núcleo familiar do meu pai. Finalmente foram definindo um lugar para erguer sua morada, fechando o ciclo da sua jornada de migração, desde saída da região abrangida pelo antigo território do império austro-húngaro, antes da primeira guerra mundial, até aquele rincão atravessado pelo arroio do Salso e da Divisa, no interior do Rio Grande do Sul.
Lili ouvia as conversas da tias contando sobre dona Maria Augusta e o senhor Adolfo, irmãos austríacos dessa leva de imigrantes que viviam na vizinhança, conhecidos por suas produções de doces de frutas, passas e aguardente. Adolfo era um senhor curioso, instruído, algo raro para aquela época, produzia mudas de árvores, especialmente de frutíferas, fazia fermentos caseiros, vinagre e vinho. Era um homem inventivo e de muitas práticas agroindustriais. Já dona Maria Augusta se vestia no capricho, colocava roupa boa e sapato de salto e lá ia de charrete comercializar na cidade os quitutes e os produtos fabricados pelos irmãos.
A tapera permaneceu como um lugar cheio de lembranças dos tempos difíceis da família do meu pai, de lugar de nascimento dos tantos filhos do meus avós paternos e das frutas saborosas. Lá ainda se colhiam frutas entre as árvores que restaram e se brincava no taquaral que suportou os ventos e os tempos. Passar pela tapera era o primeiro anúncio de que lá, logo depois de um pequeno açude, represando um riacho, na descida da coxilha, estava a morada que eu conhecia muito bem, a da memória dos meus avós.

A fachada da casa da fazenda do vô Alberto e vó Cinda emoldurava, ao fundo, um dos lados do grande gramado em frente à morada. O gramado era nosso espaço livre de brincar, de correr, jogar futebol e caçador, rolar na grama quando chovia no verão e, à noite, caçar vaga-lumes. Imaginávamos lanternas com os vaga-lumes presos em saquinhos de papel transparente que retirávamos da parte externa das carteiras de cigarro do meu pai e das minhas tias. E as lanternas de vaga-lumes iluminavam nossas brincadeiras naquele vasto gramado, confundindo-se com a luz das estrelas, milhares delas surgiam no escuro da noite.
Quando se chegava na porteira de acesso às imediações da casa, via-se a lenheira à esquerda e, do outro lado, à direita, as mangueiras. A mangueira grande, com seu solitário coqueiro servia para  encerrar as vacas de leite para no outro dia bem cedinho se fazer a ordenha. Nela também se reunia o rebanho de ovelhas para, em uma mangueira menor, separá-las para cuidar dos machucados e dar remédios. Quando a mangueira grande estava vazia, dávamos um jeito de pular a cerca alta de tábuas ou abríamos a pesada porteira de madeira com ajuda de um dos maiores. Com uma longa taquara cutucávamos os coquinhos para que caíssem lá do alto do coqueiro solitário. Eram um cocos diferentes, meio ovalados, com uma fibra por fora, para abri-los, pegávamos uma martelo para golpear o coco e comer suas deliciosas amêndoas. Na família contavam que o coqueiro era proveniente de uma muda trazida por um mineiro que se casou com a tia Santinha, irmã do meu avô Alberto. Havia duas grandes porteiras na mangueira do coqueiro solitário, a do fundo dava para a ladeira. Na mesma linha da cerca da mangueira seguia uma cerca de arame, dividindo o espaço das redondezas da casa e o campo de baixo. Ali havia um conjunto de pés de uva do japão, que os animais adoravam comer, e uma porteira pequena por onde também se cruzava para o lado da ladeira.
A ladeira descia alguns metros em direção ao mato da Divisa, passando por um banhado coberto de caraguatá, ali ninguém entrava a pé, só a cavalo para rebanhar alguma vaca ou ovelha perdidas. Caraguatá é um tipo de bromélia do mato, cheia de espinhos nas folhas, lá a gente não se atrevia a chegar para não encher o corpo de arranhões por causa dos espinhos. A ladeira era um campo onde ficavam os animais que precisavam ser alimentados, como as ovelhas com cria e as vacas de leite. Era o campo do Tarugo, da Ruana e do Petiço, cavalos mansos da lida diária. Porém, a magia da ladeira era aproveitar o declive do terreno e descer escorregando o gramado roçado pelas ovelhas. Lili, os irmãos e os primos desciam a ladeira cuidando de não ultrapassar o limite do mato de maricás, para não se arriscarem e se meterem no meio dos caraguatás. Meu irmão ganhou um carro de madeira feito pelo meu tio Nito, um carrinho de quatro rodas, fechado nas laterais, que parecia mais a carroceria de um caminhão. Colocávamos os mais pequenos dentro e lá do alto empurrávamos e íamos correndo, gritando e dando risadas junto ao carrinho para testemunhar a cambota que ele dava no final, derrubando quem estava dentro. Posicionávamos o carro logo abaixo do grande cocho de alimentar as ovelhas, na parte mais alta do campo, onde o terreno era mais limpo e livre para dar impulso no carro e ver ele descer ladeira abaixo. Neste lugar, se avistava a estrada intermunicipal pela direita, seguida, até uma em certa altura, por uma linha de velhos eucaliptos, que davam para dentro do campo. Bem depois da longa curva da estrada, chegava-se a uma ponte de madeira sobre arroio da Divisa. Quando o ônibus apontava na saída da ponte, era preciso correr para chegar a tempo até a parada em frente à timbaúva, na porteira da fazenda.
Do outro lado do matinho de maricá, que floria sempre no mês de março, prenunciando a chegada do outono, podia-se sentir o perfume das flores e o zumbido das abelhas, dando-nos certeza de que o mel daquele ano seria com aroma da flor de maricá. Neste outro lado, o terreno era um tapete mantido pela ovelhas que pastavam e, ao mesmo tempo, roçavam o campinho. Ali a ladeira tinha uma descida mais abrupta e, na parte mais baixa, um pequeno poço de água. Por muito tempo existiu a sobra de uma armação coberta de santa fé nas imediações do poço e, bem à direita, na curva do poço, uma cacimba de água cristalina. Uma água limpa e fresca que podíamos beber sem restrição e que minha vó Cinda mandava buscar para lavar os cabelos, tal era sua pureza e efeitos na saúde dos cabelos. O medo maior era o de cair nas águas fundas da cacimba, medo que sempre me rondava. Por muito tempo minha mãe lavou roupa naquele poço da ladeira. Trouxas de roupa eram esfregadas e lavadas ali desde da época da Dida, que lavava toda a roupa da casa da vó Cinda naquele poço. Levava-se manhãs lavando roupa, estendia-se sobre uma parte plana as roupas que precisavam ser alvejadas, para o que o sol fizesse o trabalho de desencardi-las. Nosso cachorro Titinho acompanhava minha mãe e ficava na vigília das vacas e ovelhas que se aproximavam para que não pisoteassem nas roupas, quarando no sol quente do meio da manhã.
Outra diversão na ladeira incluía pescar lambari no poço. Sobre a tábua de lavar roupas um dos maiores se apoiava na espreita de que os lambaris viessem beliscar as minhocas que usávamos como isca, assim ocupávamos algumas tardes na pescaria. Desde a parte mais baixa da ladeira, entre o poço e a várzea tomada de caraguatá, eu olhava para linha de pinheiros araucárias que meu pai havia plantado na divisa do arvoredo novo com campo da ladeira, mudas feitas pela vó Cinda. Intercalados entre as araucárias, pés de goiabeira e, mais adiante, seguindo a cerca, na mesma linha divisória um mato com muitas pitangueiras. Naquele alto da ladeira, no entardecer vislumbra-se o pôr do sol entre os pinheiros e também se avistava, lá muito distante, o imponente cerro do Loreto.
A tapera e a ladeira são lugares de memória, de sabores frutados, adocicados e frescos. Lugares nos quais Lili aprendeu o significado dos espaços, enquanto comia bergamotas da tapera e deslizava pela maciez do gramado no declive da ladeira. 

sábado, 18 de julho de 2020

Lili e os verbos do trabalho feminino


Uma noite Lili acordou assustada debaixo da mesa da sala de jantar. Não sabia porque estava estirada naquele piso frio. Estava com nariz colado na cerâmica de cor vermelho escuro, decoradas com delicadas linhas brancas. O desenho de cada lajota resultava em formas que lembravam favos de mel, como os construídos pelas abelhas, perfeitamente encaixados. Eu havia caído do banco de madeira que se usava junto à mesa da cozinha e, às vezes, na grande mesa da sala de jantar. Acima, na viga que separava a sala de estar da do jantar, descia o liquinho pendurado por um gancho, que o suspendia e ajudava a dar ao lampião à gás um ar de lustre, iluminando os dois ambientes. Quando havia poucas pessoas na casa, ficávamos na cabeceira da longa mesa de madeira natural aguardando a hora da janta. Todos os dias, ao anoitecer, meu pai vinha acender o liquinho para minha vó. Quando nos mudamos para cidade, meu pai continuava vivendo no campo, então, quando a noite chegava, ele vinha da nossa casa, do outro lado da estrada, acender o lampião à gás e jantar com minha avó. Trazia com ele uma lanterna para iluminar o caminho na volta, já na noite escura.
Sentada na ponta da mesa, vó Cinda fazia crochê com a luz que nos dava o lampião à gás, muito mais potente que a do Aladin, o lampião à querosene que ficava na mesa da cozinha. A luz elétrica chegou naquela região no final dos anos setenta, assim como a estrada asfaltada que cruzava o campo da fazenda, dividindo-o em duas grandes partes. O progresso custou a chegar na fazenda, embora já tivesse existido, no grande galpão da charrete, um quarto, uma separação em madeira onde havia um gerador e um velho motor a óleo desativados, dos tempos em que existia na fazenda um sistema de iluminação alimentado por uma pequena de usina a óleo.
Nos meus dias de Lili, esses dois lampiões, além das velas, eram as fontes de luz que tínhamos para as noites e os seu serões. Lili adorava esta palavra pronunciada por aqueles que iam até mais tarde terminando algum afazer inacabado, os serões ocorriam nas noites de jantas de aniversário ou de trabalho. Eram noites mais prolongadas, para finalizar uma costura ou mais uma carreira de crochê, escolher o feijão catando as sujeiras, colocando-o de molho para o almoço do outro dia ou aguardar o bolo terminar de assar para café da manhã seguinte.
Eu gostava de fazer de cama o velho banco de pintura descascada, já desgastada pelo anos de uso, o que lhe dava um ar de arte decoupage, parecia ter sido pintado com sobra da mesma tinta amarela da cor da charrete. Eu cabia exatamente no comprimento do banco, mas a toalha de plástico, de fundo branco, decorada com figuras de peras, figos e bananas encostava na altura do banco. Coberta pela toalha, fiquei um bom tempo ali enquanto a vó Cinda dava cabo de mais uma longa carreira do seu crochê. Pela grande volta, a tal carreira deveria ser a da pontilha de mais uma colcha, ou mais um crochê no acabamento dos quadrados da colcha de retalhos que há dias ela vinha trabalhando e combinando, ajustando os quadrados com cores e estampas. Uma colcha de retalhos nascia do  aproveitamento de sobras de tecido e serviam para cobrir as camas ou ainda de cobertas leves.
Minha vó Lucinda era uma mulher de muitos afazeres e de muitas habilidades, como era natural no papel assumido pelas mulheres que viviam no campo ao se encarregarem de suprir as necessidades e  o conforto da família. As suas rotinas se dividiam no criar e cuidar, desde os filhos até os animais domésticos. Minha mãe tinha sempre na sua lista de cuidados cordeiros e terneiros órfãos. Ela os alimentava, dava-lhes nomes e mimos, uma ocupação herdada da minha vó. Lili observava e aprendia a respeito da vida das mulheres nessas rotinas domésticas, que também incluíam atender ao protocolo de acolher e receber bem os membros da família e os parentes que traziam suas queixas e suas mazelas. Para esses dias de visitas, a despensa precisava estar abastecida com bolachas, doces de frutas como  peradas, goiabadas, figadas e pessegadas, algum licor de fruta, passas de pera, pêssego e figo em calda, doces de abóbora e batata doce. E uma galinha ou um pernil assados, de véspera, no grande forno localizado na área contígua à despensa, para o almoço do domingo. Semanas de trabalho e de preparo para ter sempre algo a oferecer às visitas. A etiqueta do bem receber na vida do campo abundava de produtos da fazenda, um orgulho pela fartura de comida a oferecer.
Eu havia dormido e caído do banco. Naquele estado de sonolência a vó Cinda deu um jeito de me erguer do chão frio e tomamos o rumo do quarto. Compartilhávamos o quarto que dava para o jardim, localizado bem no canto esquerdo da construção. Havia no quarto três camas de ferro pintadas de um amarelo claro contrastando com a pintura azul celeste das paredes. Entre elas havia uma mesinha de ferro onde colocávamos os castiçais com as velas, o livro de reza da vó e um rosário, no outro espaço entre as camas, a cadeira de madeira com uma almofada bordada que se usava para sentar junto à máquina de costura. Nessa cadeira eu sentava para a longa tarefa de fazer intermináveis tiras de correntinhas de crochê, por dias as fazia até aperfeiçoá-las. Era o modo que a Vó Cinda havia encontrado de me ocupar para que eu não fugisse para a área do galpão, território masculino pouco permitido a meninas inquietas como Lili. A cama do meio era dela e ficava em uma posição privilegiada, já que em certas noites, deitada na cama, podia-se apreciar a lua cheia bem em frente à janela e acompanhá-la subindo no céu. E também localizar, no céu estrelado, as três marias que no verão se erguiam no alto do jardim. As outras duas camas eram usadas por duas das tias solteiras que ainda moravam na casa. As duas tias trabalhavam na cidade e durante os fins de semana voltavam à fazenda, por isso que nos intervalos entre os fins de semana eu me adonava de uma das camas, dormia sempre ao lado da minha vó e a observava antes de dormir, rezando e contemplando um quadro com uma ilustração da via crucis, acima da cama que eu dormia. O quarto tinha um guarda-roupa com um espelho na porta do meio, onde eu gostava de me olhar cada vez que experimentava uma roupa feita pela vó. Lembro que na porta da direita, na última prateleira, entre algumas caixas, tinha um livro de ervas medicinais. Minha vó era precavida como toda mãe e avó que cuida, consultava o livro para tratar de algumas dores comuns que uma vez e outra atacava alguém da casa. Logo à direita, passando a porta cinza de duas folhas, na entrada do quarto, estava uma penteadeira. Na parte superior três espelhos, um central grande e dois laterais que permitiam as tias verificarem como os cabelos estavam penteados atrás da nuca. Os espelhos laterais se moviam e facilitavam para ver os rabos de cavalo, os coques e ajeitar as vestimentas na parte detrás. Na parte inferior do armário, duas portas e duas prateleiras onde eu guardava minhas roupas. A parte mais bonita do móvel era a dos desenhos de flores nos azulejos, que pareciam trombetas de anjos, localizados entre o conjunto de espelhos e o tampo de mármore. Aquela barra decorada com azulejos dava requinte à penteadeira, por coincidência, as flores se pareciam com as de um arbusto que ficava logo abaixo da janela lateral do quarto, que minha vó Cinda chamava de cartucho. Na altura dessa janela, atrás da cama, encostada na parede, havia uma máquina de costura, sob o olhar do retrato da minha trisavó Amélia, um quadro oval com uma fotografia com apresentava retoques de pintura. Me sentia incomodada com o seu ar severo e carrancudo, tinha cabelo muito curto, feições duras, vestida com roupa preta de luto e uma corrente com um medalhão. Dali ela podia ver sua neta Lucinda costurando durante algumas tardes. Ora fazendo suas roupas íntimas como camisolas, calcinhas, pijamas, ora fazendo remendos e pequenos consertos.
A hora mais divertida neste quarto era o momento de costurar as roupas para as minhas bonecas. Os dias de costura da vó Cinda eram meus dias de criação. Naquela oficina de remendos e também de confecção de lençóis, toalhas, guardanapos, minha mãe batia o pedal da máquina fazendo remendos nas bombachas do meu pai ou improvisando joelheiras para calças dos meus irmãos. Em frente ao guarda-roupa eu brincava sobre o tapete de couro de vaca já gasto pelo tempo, e recolhia retalhos dos tecidos, juntava os botões perdidos no chão e as sobras de fitas, galões e vieses coloridos para criar as roupas das bonecas. Confeccionava as vestimentas da Luci, dei-lhe o nome da tia que me presenteou, Karen, minha sorridente boneca negra e Nina, a boneca de plástico simples, a maior das minhas bonecas, que ganhou um vestido de festa da Vó Cinda: uma saia de organza azul claro com uma blusa de um tecido azul bordado com fios dourados. Minha boneca de plástico simples era glamuorosa por causa da minha vó.
Enquanto estavam na máquina de costura, minha vó e minha mãe deixavam espalhadas sobre a cama caixas com sobras de tecidos e acabamentos e vidros com botões variados. Em uma tarde de costura, Lili se encantou por uma argola verde limão com bordas onduladas, provavelmente detalhe usado em alguma roupa das tias. Lili viu nela um lindo anel, colocou-o no dedo anular, porém ao querer retirá-lo ele não saia do dedo. Lili então buscou socorro com Marlene, uma jovem que desde menina foi trabalhar na casa da Fazenda e ajudava a cuidar os pequenos. Ela providenciou água e sabão e fez massagens no meu dedo anular para facilitar que a argola se soltasse. Uma das tias zombava de que a argola iria ficar pra sempre no meu dedo e vendo meu choro compulsivo, minha mãe resolveu então apelar para meu pai para resolver o problema. Em seguida, vi meu pai aparecer na porta da cozinha com um alicate na mão. Desesperada, com medo e já imaginando que fosse necessário cortar o dedo, para se ver livre da argola verde limão, Lili se desesperou e escapou. Corri umas duas voltas no enorme gramado em frente à casa até meu pai me alcançar e quebrar o meu anel verde com o alicante. A argola verde limão se foi e o meu dedo saiu ileso.
Em umas férias de verão fui passar uns dias na casa da minha vó Xiruca. Lá minhas tardes se dividiam em comer queijo com mel ou frutas do arvoredo, tão bem cuidado do meu avô Joãozinho, e correr os patos para dentro do açude, para ver como colocavam a cabeça para debaixo da água bicando os lambaris para se alimentarem. Pelas manhãs, via minha avó e tias mais velhas lavando uma grande quantidade de roupas da casa no açude, lavavam sobre tábuas improvisadas. Na beira do açude esfregavam, batiam e torciam as roupas de toda família. Com muitos filhos minha vó se desdobrava entre os afazeres do dia a dia, assava pão em um forno pequeno na forma de iglu, localizado logo na saída da grande cozinha da casa. E fabricava bolachas, bolos e doces. A família do meu pai, descendentes de imigrantes, não tinha empregados, desde muito pequenos os filhos se ocupavam de auxiliar na lavoura e na criação dos animais. De madrugada, meu pai e meu tio mais velho, desde guris se encarregavam da entrega do leite fresquinho para os fregueses da cidade e, no retorno pra casa, traziam as encomendas do meu avô como rolo de tabaco e erva.
A entrada na chácara era por cima da taipa do açude, logo na chegada à taipa havia um pontilhão por onde corria um canal de água para abastecer os animais, fazendo a volta no entorno do terreno próximo à casa. Um taquaral contornava o açude do outro lado, fazendo um quebra vento que protegia o arvoredo. Entre as raízes daquele imenso taquaral, uma quantidade inacreditável de patos se reproduziam e se criavam livremente. Os patos e marrecos nadavam nas águas do açude e davam beleza àquela entrada nas imediações da casa. E alimentavam a grande família do meu pai assim como a variedade de plantas na horta, as frutas no pomar e as plantações das pequenas lavouras, caprichosamente cultivadas pelo meu avô.
Igual que minha vó Cinda, minha vó Xiruca precisava dar conta das tarefas domésticas e ainda ter tempo para bordar, costurar e remendar. Era uma rotina intensa de trabalho para suprir as necessidades de todos e ainda sobreviver às dificuldades da vida no campo. Era a ultima a se recolher, depois de arrumar a cozinha, fechava a porta e carregava o lampião à querosene para chegar até o quarto. Deitava tarde e exausta, logo cedo era a primeira a levantar. Ela madrugava para tirar leite e bem cedinho enviar os filhos mais velhos para cidade entregar as garrafas e os tarros de leite. A venda de leite era uma das fontes de renda da família e a primeira obrigação do dia para minha avó, mesmo nas madrugadas frias de inverno, normalmente com a barriga crescida de mais uma gravidez.
Os verbos do feminino assim se apresentavam para Lili como sinônimos de trabalho e cuidado. A dedicação resignada das mulheres mais maduras apontava um esforço para viver no campo, meu primeiro mundo. Mas havia ali um modo de resistir. Resistir pelo amor, pelo zelo, pelos remendos e consertos, pelo alimento que se produzia a cada dia. Enquanto observava o movimento das mulheres, Lili criava as roupas para as bonecas e desenhava futuros.

domingo, 5 de julho de 2020

Vergilino, o guardião da infância

Quando somos pequenos os mais velhos costumam dizer que existem anjos que nos acompanham e os protegem. Nosso guardião na casa da Vó Cinda era o Vergilino. A história da chegada dele na fazenda sempre foi contada como consequência de uma fuga. Nos dias de vida no campo, Lili arregalava os olhos e ficava na escuta cada vez que contavam a versão trágica sobre a vida do Vergilino, muito antes dele viver nos aposentos modestos do quarto dos arreios.
O laço familiar que se conhecia dele era um tal de cabo Chico, um tio que o havia criado desde muito pequeno. Um dia Cabo Chico apareceu com o menino a tira colo na fazenda, um negrinho com cerca dez anos, muito assustado, de olhos arregalados e de poucas falas, pois na chegada já se notava seus traços de gagueira e um pouco de sua dificuldade mental. Nas conversas da família davam conta de explicar que essas limitações foram causadas por um incidente entre pai e filho. O pai do Vergilino teria ameaçado e golpeado com um facão aquele frágil corpo de menino, ferindo-lhe a alma mortalmente. Daí em diante, Vergilino carregaria as marcas de um grande trauma. Era uma estória que camuflava o fato de que talvez ele tivesse um tipo de afasia, certamente, com um significativa conexão com sua lentidão mental.
O encontro da Lili com as debilidades da mente não era novidade. Tia Terezinha, irmã mais velha do meu pai, era uma moça alta, bonita, embora muita branca e frágil. Seu corpo mal suportava ficar em pé, precisava de apoio para andar. Dizem que seu estado era sequela de uma meningite que lhe havia enfraquecido o corpo e perturbado a cabeça. Lembro-me de suas feições delicadas, da pele alva e de seus cabelos lisos e finos, aparados na altura do ombro. Durante o dia, minha vó Xiruca a colocava sentada na cozinha, ao lado do fogão à lenha. Sentava em um cadeira grande de madeira, com assento e espaldar de palha, com umas almofadas para deixá-la mais confortável e, sobre as pernas, uma manta para aquecê-la. Naquele canto minha vó a mantinha aquecida, porque ela parecia sempre estar com frio. Durante a noite, quando tinha dificuldade de dormir, costumava balbuciar sons, repetindo os que os demais da casa usavam para chamar galinhas, pintos e os cachorros. Era só o que tia Terezinha conseguia pronunciar.     
Acolhido pelo meu avô Alberto, o menino Vergilino foi crescendo e tornou-se um empregado da casa, principalmente para os serviços mais domésticos, dadas às suas dificuldades cognitivas. Ocupou-se a vida toda dos afazeres do pátio, das imediações da casa: tirar água de balde, várias vezes ao dia, do poço que ficava debaixo da parreira, e assim manter abastecida a tália de barro; cortar lenha para o fogão da cozinha da casa; preparar toda sexta-feira o forno para assar os pães e adivinhar qual era resmungo da vez que afligia minha vó, comum nos dias de fazer pão; cuidar e limpar a horta; dar comida para os bichos domésticos; capinar as carquejas, guanxumas e urtigas do pátio; varrer os galpões e o pátio dos cavalos, entre tantas tarefas de manutenção e limpeza do entorno da casa.
Mas a tarefa mais importante e imprescindível era a de manter o fogo do chão aceso. E na peça onde o fogo mantinha-se vivo, Vergilino passava suas horas de folga, tomando seu mate, de quando em quando aquecendo água na chaleira preta sobre uma trempe de ferro, ou aquecendo-a em uma cambona de lata de azeite, com uma alça de arame, feita por ele. O fogo do chão era mais do que o círculo de ferro que circundava o local exato onde se colocavam as lenhas para o fogo, era uma peça grande com espaço para bancos mochos, para hora do chimarrão dos empregados, e para uma cadeira escura e lustrosa, feita de um tronco de árvore que era a poltrona do Vergilino. Em um dos cantos da peça, contra a parede do galinheiro havia um pequeno depósito, uma meia parede atravessada de modo diagonal, onde se guardava toda a lenha que abastecia o fogo do chão. Na parede que dava para o pátio interno coberto pela parreira, na parte superior, havia uma longa janela com vidros opacos e amarelados pela mistura de fuligem e gordura do ambiente, causada pelos assados que também se fazia no fogo do chão para alimentar os peões nas madrugadas que antecediam a saída para o campo, em dia de longa jornada campeira. 
Uma tarde de inverno auxiliei a vó Cinda e minha mãe na fabricação de velas. Enquanto a mistura de sebo com cera de abelha fumegava no fogo de chão me cabia a tarefa mais segura e simples, pelo pouco tamanho que eu deveria ter, a de enfileirar as formas feitas de canos de taquara para receber o líquido quente, cuidando para que o pavio feito de barbante se mantivesse centralizado nos canos e a vela não ficasse torta depois de esfriar a mistura. O fogo do chão era usado para muitas outras lidas da casa. Ali naquela peça lúgubre, de paredes tingidas pela fuligem acumulada de anos, de pouca luz e ventilação, durante as tardes de verão saiam tachadas de doce e, à tardinha, lotes de espigas de milho assado em espetos de ferro improvisados pelo Vergilino.
Mas o que eu mais gostava de fazer era de descobrir os esconderijos secretos do Vergilino para os pinhões, que ele juntava debaixo dos galhos. Os pinheiros ficavam entre o chiqueiro dos porcos e o poço do Arvoredo, um poço de água barrenta e fedida, coberta por um limo verde onde, claro, os porcos se banhavam. Os pinhões se espalhavam pelo chão, caídos das pinhas que estouravam lá do alto dos pinheiros. Um achado ter pinhões já guardados pelo Vergilino, porque evidente ele sabia que as crianças da casa conheciam seus dois lugares secretos: uma caixa de madeira com um furo no meio na parte superior, onde ele apoiava a cuia, e com uma única abertura, na qual ele enfiava um punhado de pinhões. Outro esconderijo ficava em um longo vão, uma canaleta localizada na divisão entre a parte de tijolo e a de madeira da parede que separava a área do fogo do chão do corredor do banco de carpinteiro. No vão, bem ao lado do radinho de pilha, sempre havia pinhões. Colocávamos os pinhões no meio das brasas para assar e o cheiro de pinho invadia o lugar, confundindo-se com a fumaça que se podia ver melhor, quando uma fresta de sol atravessava um vão do telhado e trazia um facho de luz para dentro da peça. Lili gostava de procurar de onde vinha aquele facho de luz que cruzava sobre o fogo e batia nas latas de banha, acomodadas sobre uma bancada de madeira logo abaixo daquelas janelas de vidro, sujas e ensebadas.  
Vergilino sempre tinha um guaipeca de estimação, que andava no encalço dele por todos lugares onde ia fazer suas pequenas lidas da rotina. E o carro de mão era usado pra tudo, facilitava carregar, além da lenha, sacos de mandioca, batata, alguma comida para os porcos e também os montes de ciscos das suas varridas de pátio. O mais prazeroso e divertido carregamento do Vergilino era levar os pequenos para dar uma volta no carro de mão. E os cuidava com zelo e um sorriso inocente de quem também se sentia um pouco criança.
Logo que nasci fiquei morando com meus pais na casa da fazenda. Dois anos depois, com a chegada do meu irmão, meus pais se mudaram para casa do outro lado da estrada. Foram morar lá assim que meu tio Alfredo, irmão mais velho da minha mãe, mudou-se com a família para a cidade. Mas eu não me acostumava com o afastamento da minha vó, então alguns finais de tarde minha mãe me banhava, me ajeitava e o Vergilino me buscava para dormir com a Vó Cinda e vinha com seu carro de mão. Lili era a princesa que ele carregava no seu carro de trabalho, transformado em uma carruagem campeira, eu era tão pequena que nem conseguia pronunciar todo seu nome, chamava-o de Lino. 
À noite ele sentava na cabeceira da mesa da cozinha, perto da entrada da porta, aguardando a hora da janta. Quando a cozinha estava cheia, sentava na caixa de lenha em frente, no lado de fora. Ali ficava ouvindo as conversas, ouvindo minhas tagarelices enquanto a vó Cinda fazia algum crochê e aguardávamos a comida ficar pronta. Antes de comer, tomava sua dose de biotônico, guardado na primeira prateleira externa do armário aéreo azul turquesa da cozinha. Jantava um prato fundo alto de comida, o que nos deixou uma referência familiar de comer muito: um prato muito cheio era comer como o Vergilino. E ele ria meigamente do que se passava naquelas noites na cozinha, talvez não entendesse muito bem, mas era a presença dele que dava calor e aconchego àqueles momentos.  
Pouco adiante do Jardim, do lado direito da casa, havia uma grande lenheira, junto à cerca que separava o largo gramado da frente da casa e o campo das vacas mansas. Este nome do campo supunha-se por ser aquele campo onde pastavam as vacas de leite. A lenheira se organizava em armações com moirões para cercas, tábuas velhas e troncos já aparados para o uso. Essas armações tinham um formato como aqueles das casas suíças, como telhados que descem até o chão. Ali o Vergilino passava algumas tardes cortando lenha para abastecer a casa do forno e o depósito do fogo do chão. As lenhas ajeitadas verticalmente permitiam formar um espaço interno, onde nasciam pés de hortelã que cheiravam forte por causa das nossas pisadas, cada vez que nas brincadeiras nos escondíamos dentro daquelas armações. 
Vergilino criou também seus lugares especiais, que ele cuidava e zelava. Ao lado das bananeiras preparou um terreno e fez sua horta, ali plantava tudo que traziam de mudas de ervas e frutas. Era o único lugar da casa que tinha amora, que a gente chamava de framboesa e um lindo pé de grinalda. Naquele terreno cercado ele cultivava os chás que muitas vezes nos socorria dos pequenos males. Vergilino foi assim organizando seu mundo na sua medida.    
Não me era permitido andar pelas acomodações do galpão, sobretudo as ocupadas pelos peões. Esperava a hora em que eles estavam nos seus afazeres para circular pela casa dos arreios, também chamado quarto dos arreios. Nem sempre aquela peça do galpão foi a casa dos arreios, que metade funcionava como uma selaria, outra metade como quarto do Vergilino. 
Esta parte das acomodações da fazenda era a mais antiga de todas, foi um bolicho de campanha. Meu avô Alberto nasceu na velha casa que ficava mais ao fundo, onde restava uma enorme figueira, uma bergamoteira, um cinamomo caído e uma parreira esparramada sobre as outras árvores . Mais a frente um pé de laranja azeda e, no chão, os restos do alicerce da antiga casa da família. Na aquela época, na parte mais da frente, só havia este bolicho, as portas de duas folhas da casa dos arreios eram vestígios de que aquele era um lugar aberto aos que chegavam. Pelo lado de dentro ainda existiam as velhas prateleiras de expor as mercadorias, construídas pelo meu bisavô Antônio, o carpinteiro que morava do outro lado do arroio da Divisa, mostrando como meu bisavô Alfredo se servia das habilidades de carpinteiro do meu bisavô Antônio, o germânico fortão de olhos azuis. Logo após a saída da porta,  dois cinamomos resistindo ao tempo. Em um deles havia ganchos de ferro para amarrar as cordas dos freios dos cavalos dos visitantes do bolicho. A herança desta época ficou simbolizada em um banco de ferro, com uns furos na forma de pequenos círculos, cravado no tronco da árvore. Quando criança a gente tentava puxar, mas ele não se movia, pois se encontrava fixado definitivamente no tronco do velho cinamomo, bem na altura onde conseguíamos sentar. Neste banco o Vergilino sentava para ouvir seu radinho de pilha e ficar à espreita das crianças. A vigilância dele sobre nós obedecia o princípio instituído por ele, de que os grandes não podiam bater nos pequenos.
Anos mais tarde, com fim do bolicho, a peça se destinou à casa dos arreios, com seus cavaletes com as selas e os pelegos. Cada cavalete continha um conjunto de arreios de alguém da casa, freios e cordas eram pendurados em ganchos de arame que desciam desde o teto, passando em certa altura por uma garrafa. Esta técnica da garrafa evitava a descida desenfreada dos ratos e evitava que cordas e freios não fossem devorados pelas ratazanas. E as prateleiras fabricadas pelo meu bisavô Antônio passaram a ser o lugar de colocar medicamentos para o gado.
Na outra metade ficava os aposentos do Vergilino. Havia um baú para suas roupas, uma prateleira na parede e uma cama de madeira. Tomava banho no açude, embora fosse hábito duro para ele, administrava mal a necessidade de tomar banho, muitos resmungos com minhas tias toda vez que elas sugeriam que era preciso tomar banho. Lá no poço da ladeira banhava-se e lavava suas roupas. Muitos anos dormiu ali, com pouca privacidade, sob a luz fraca de um lampião à querosene. No lado oposto da sua cama, perto da janela, havia outra cama, era uma maca de couro, usada para sesta de alguns empregados ou mesmo para dormirem à noite, sobretudo no verão, por causa da janela que dava para frente da casa, por onde entrava a brisa da noite e se ouvia o vento balançando as folhas dos velhos pés de cinamomos.
Em uma reforma realizada na área dos galpões, muitos anos depois que minha vó faleceu, Vergilino finalmente teve seu próprio quarto. Foi ficando sozinho, os cabelos grisalhos denunciavam a idade avançada e, cansado, foi deixando sua lidas mais pesadas. Nos domingos, depois do almoço ia buscar a sobremesa que minha mãe separava pra ele, sorria feliz com um prato de arroz de leite. Mas a saúde foi se debilitando, sozinho já não tinha condições de cuidar de si mesmo. Morreu em um asilo de idosos.
  

    

sexta-feira, 3 de julho de 2020

As carroças, as carretas e a charrete amarela

A especialidade do meu bisavô paterno Antônio era fazer trabalhos de carpintaria. As encomendas da vizinhança incluíam fabricar carroças, carretas, carro de mão e instrumentos para lida no campo, em especial, aqueles que auxiliavam no cuidado diário com os animais ou para o uso nas lavouras. As carretas eram especiais, porque exigiam uma feitura complexa e requeriam uma inteligência de engenheiro. Feitas de madeiras rústicas e resistentes, demandavam um trabalho bastante artesanal na sua montagem, praticamente toda a engrenagem era trabalhada em madeira bruta e de pouco polimento, embora mostrassem o esforço do artesão e sofisticação de uma mente inquieta que criava e fabricava um veículo. Depois de prontas, serviam para carregar as colheitas e também como meio de transporte de muita gente que vivia naquelas bandas. Não faz muitos anos meu pai recuperou uma carreta fabricada pelo meu bisavô Antônio. Corroída pelos seus mais de sessenta anos, sobraram as rodas, perfeitamente conservadas, com seus raios simétricos envolvidas por madeira vergada, amarrada por uma cinta de ferro que as fixam e que certamente as protegeu do desgaste desses longos anos de vida e das tantas cargas transportadas. Carroças, charretes e carretas fizeram parte do meu meio de transporte na infância. 

Meu avô João começou seu trabalho carregando sacos de arroz em uma grande carroça durante a época da colheita, e nela se empilhavam as sacas de arroz para transportar até algum engenho das redondezas. Um dia, muito anos depois dele ter falecido, minha avó me apresentou sua carteira de condutor de veículo de tração animal. Sim, motorista de carroça. Era preciso uma habilitação para trafegar de carroça nas estradas municipais e intermunicipais. Era, portanto, uma profissão importante naquele tempo, contribuía no escoamento da produção, além de ser o meio de sustento para a família, que havia iniciado sua vida para os lados do Umbu. A mudança para perto do meu bisavô Antônio fez meu avô João iniciar sua vida de plantador de arroz e abandonar sua vida de condutor de veículo de tração animal.

Meu avó João era um homem calado, de jeito carrancudo. Ou estava calado ou pronunciando palavras em alemão, língua dos seus pais. Essa talvez seja a mais remota lembrança que eu tenho do que era uma outra língua que não o português. Apesar de pouco dado aos afetos, ele sempre dava as honras para a Lili, permitia que eu sentasse na cabeceira da longa mesa de jantar. Naquela família de muitos filhos, a neta sentava no lado oposto da cabeceira destinada a ele, pois era uma autorização que permitia que ficássemos na mesma importância naquele momento da refeição. O afeto estava no gesto.
Na morada da vó Cinda, a grande peça contígua à casa, era um misto de garagem e galpão. Separava a casa da família das acomodações do galpão: a casa do arreios, os aposentos do Vergilino e a antiga peça da escola (outro dia tratarei dela), que há muito já não existia. Os nomes das peças diziam muito sobre a função da cada uma: casa do forno, casa dos arreios, estufa, fogo do chão, paiol, o banco de carpinteiro. Entre o fogo de chão e a estufa havia uma grande área, com cantos separados e organizados de modo improvisado, ali guardavam-se algumas cordas, pás, enxadas e sacos de sementes. A única parede de madeira que fazia divisão da grande peça era onde se colocavam as batatas doces depois da colheita. Logo que se passava pela porta interna do fogo de chão para dar acesso a esta peça, à esquerda, havia uma mesa velha e capenga sobre a qual se encontrava uma caixa maciça de pedra que, inapropriadamente, se chamava cocho do sal. Mais à frente, antes da porta interna que dava acesso à estufa, na parte superior, havia um jirau, uma espécie de mezanino, onde se guardavam sacos de estopa, caixas de abelha, cestas de vime. Nesta grande área vi a agonia do Moleque, que foi atropelado e ficou todo capenga. Era o cachorro do Vergilino, que ele cuidava e protegia com muito zelo. Eram inseparáveis, para encontrar o Vergilino bastava encontrar o Moleque.
 
No corredor se localizava o banco de carpinteiro, um grande maciço de madeira que servia para  a confecção de objetos de uso na lida doméstica e para uso das ferramentas de trabalho com madeira.  Era a principal ligação entre as peças da frente e dos fundos do enorme conglomerado da sede da fazenda. E dava nome a esta passagem.

Todas as áreas eram interligadas por portas internas. A maior peça da zona de serviço era bem mais uma garagem por causa do lugar central que ocupava a elegante charrete amarela, pintada de um amarelo que lembrava a cor de uma gemada bem batida. Não havia carro na casa, a charrete era o transporte das pessoas e de pequenas bagagens e carregamentos. Na charrete, minha vó acudia as vizinhas recém paridas, visitava os parentes doentes ou fazia os passeios de cortesia. Em alguns destes passeios eu acompanhava à ela e à minha mãe, como na vez que fomos visitar o tio Penin. Ele era um homem alto e muito magro e dele lembro o modo como se acocava diante do fogo cuidando de esquentar, até o ponto de brasa, barras de ferro com um desenho moldado nas extremidades. As marcas aquecidas batizavam os terneiros no lombo e o dia desta lida era um tradicional momento de reunião familiar, o dia da marcação do gado. O ferro quente deixava no ar o cheiro de couro queimado, misturado com cheiro das folhas de eucalipto e de angico ardendo no fogo. Aquela sessão de batismo dos terneiros adolescentes era um ritual da vida campeira, mas não deixava de me produzir, talvez por minha pouca idade, uma repulsa pela crueldade daquele ferro quente sobre o lombo dos terneiros. Um sentimento de compaixão com os pequenos me invadia. Essa tarefa era atribuída a esse tio avô, como algo especial, pois fazia parte do compromisso tácito do convite para comparecer à celebração do dia das marcações. A outra lembrança que tenho dele foi uma visita de domingo, e não foi um passeio qualquer. Lá fomos as três mulheres na charrete amarela. O veículo se alinhava na estrada de chão e ganhava velocidade conforme o ritmo dado pelo Tarugo, cavalo gateado e  muito garboso que servia mansamente à sua função de puxar a charrete. O destino de Tarugo era servir, com exclusividade, como motor da charrete amarela, e por anos cumpriu este papel.

Tio Penin estava acamado, era o que eu conseguia ver de onde me indicaram para sentar. Não entrei no quarto, esperei sentada em uma cadeira de madeira colonial, daquelas usadas com mesas de cozinha na campanha. Meus pés mal tocavam o chão, um sinal de que eu era muito pequena. Minha mãe e minha vó conversavam com o Tio Penin dentro do quarto e, entre um e outro acesso de tosse, ele respondia a elas com uma voz baixa e fraca, já mostrando a debilidade dos seus pulmões. Da cozinha surgiu sua esposa, tia Laidinha, segundo matrimonio do meu tio avô. Uma mulher baixinha, morena, de cabelo curto, com uns delicados brincos dourados adornando as orelhas. Era afetuosa e gentil, carregava em uma bandeja pequenas taças servidas com alguma bebida. Atravessou a sala, posou a bandeja sobre a mesa e veio em minha direção oferecendo-me uma taça de licor. Trago na memória o primeiro sabor de uma bebida doce e perfumada: licor de pêssego. Hesitei com a oferta, talvez por não ter autorização das duas que seguiam na conversa com Tio Penin. Mas Tia Laidinha insistiu e com uma piscada me sinalizou não haver problema em sorver aquele néctar adocicado. Naquela altura eu já estava seduzida pelo aroma que o licor havia exalado pela sala.

A charrete amarela me levou para lugares inesquecíveis. Era como se o Tarugo me compensassem me levando a passeios e visitas depois do acidente que obrigou minha mãe se atirar da charrete na altura de um ponte, protegendo-me em seus braços. A charrete tombou por causa do desatino e corcoveadas descontroladas do Tarugo, que havia se assustado de um carro vindo em direção contrária.

Meu pai usou muito a charrete amarela para levar e trazer mantimentos da cidade, para ele e para vizinhança, dependendo do trajeto que fazia, ora pela estrada da cancha ora pela estradinha municipal, passando pelas moradas dos seus parentes: tio Luis, tio Adolfo....
O mundo urbano da Lili iniciou quando fui afastada de casa para ir para escola, saí cortando laços. Dois anos depois, minha mãe estava determinada que a prioridade era nos colocar na escola e isso significou morar durante a semana na cidade e nos fins de semana no campo. Por muito tempo a charrete foi o transporte do meu pai, que nos abastecia durante a semana com sacos de laranja, mais batata doce, mandioca, alguma carne de ovelha ou frango e hortaliças. Na volta, ele levava seu carregamento de erva, pacotes de maço de cigarros e algumas encomendas da minha vó e da vizinhança. De vez em quando eu pegava uma carona na Charrete amarela com meu pai e saltava na altura da padaria, onde comprava pão sovado ou cabrito. Durante a semana meu pai fazia as refeições na casa da minha avó e todas as tardes cumpria religiosamente com a hora de tomar mate com ela. No verão, sentados na frente da casa, tomavam o mate sob a sombra dos cinamomos, que dava um frescor ao ambiente e amenizava os dias de muito calor. O ritual diminuía a nossa ausência semanal e fortalecia o respeito do meu pai por sua sogra.

Entre as coisas prazerosas que o verão no campo trazia era cuidar de abastecer a carreta de melancias. Tarefa que se realizava cedo da manhã, para apanhá-las ainda com o restinho do frescor proporcionado pelo sereno da noite. Ou era trabalho para o final da tarde, quando o calor se dissipava e a terra da lavoura já não queimava nossos pés, nem provocava um suor insano em quem selecionava, cortava e separava as frutas, para que depois elas fossem carregadas e amontoadas para fora da cerca e, finalmente, acomodadas em pequenos montes. Evitava-se entrar com a carreta na lavoura para não machucar os baraços das frutas ou esmagar os pés desalinhados. Meu pai tinha gentileza e delicadeza com as frutas, que eram seu fruto de trabalho e renda. Percorria os pés para ajeitar as folhas sobre as frutas ainda verdes, protegendo-as do sol escaldante do verão.
 
Abastecida, a carreta partia balançando, era um sacolejar de corpos e risos de crianças. Os pequenos tinham autorização para juntarem-se às melancias, pois a carreta se movia lentamente por causa do peso e do tranco do andar dos bois, que se arrastavam pelos sulcos daquela estradinha estreita de chão batido, já marcada por dois sulcos desenhados e afundados pelas rodas de carros, charretes e carroças que por ali passavam. Havia uma diversão inigualável em acompanhar o movimento e o ruído das rodas pesadas desde do alto de uma farta carga de melancias. Acompanhar meu pai na colheita de melancias para abastecer o tabuleiro à beira da estrada, onde eram expostas à venda era uma aventura  compartilhada entre eu, meus irmãos e meus primos. O prêmio pela ajuda vinha na forma de balas distribuídas pelo meu pai, vindas dos bolsos de suas bombachas.

Por muito tempo a carreta das melancias também foi o nosso transporte para as visitas familiares à casa do vô Joãozinho e da vó Xiruca nos domingos. Cortando o campo, a carreta chegava ao arroio da Divisa, cruzando na altura da água mais rasa. No momento da passagem, minha mãe jogava uma colcha velha sobre nós para nos proteger dos mosquitos do mato, enquanto nos ajeitávamos nos pelegos que cobriam os banquinhos mochos, arrumados pelo meu pai para nos acomodar na carreta. Na travessia nos segurávamos firmes, agarrados nas laterais da carreta para não cair com solavancos nos buracos na saída da barranca do arroio, rezando para que a junta de bois, Canarinho e Cardeal, não empacassem, pois afinal era dia de passeio.   

Mas Lili era a única menina e à ela não era permitido ser a vendedora de melancias, embora já tivesse na escola e ali entre os meninos fosse a de mais idade. Os cuidados do meu pai era pelo temor de que me roubassem, especialmente temia o assédio dos caminhoneiros, o que só entendi como zelo  muito anos depois. Eu costumava protestar pelo direito de apresentar e negociar as melhores e maiores frutas, o que só me era permitido sob os olhos atentos e vigilantes da minha mãe, quando todo o bando de homens, inclusive os pequenos, partiam de madrugada para as campeiradas nos dias de recorrer o gado nas lonjuras do campo.

Em certas épocas apareciam carroças diferentes por aquelas bandas. As carroças cor de rosa dos ciganos, que se alojavam debaixo da velha timbaúva. Era uma árvore frondosa, depois da florada surgiam as vagens pretas, que mais pareciam orelhas de macaco, e nos serviam para imaginar inúmeras brincadeiras. Ela era a referência das pessoas, pois ali onde ela se erguia, identificava-se o local da parada de ônibus da antiga estrada intermunicipal. Ela nunca perdeu sua majestade entre a fileira de velhos eucaliptos, costeando os dois lados da estrada diante da Fazenda. No inverno, já desfolhada, era como uma cortina feita de um delicado crochê, por onde se vislumbravam os primeiros raios de sol lá da janela da varanda da casa. 

Não sei quando a charrete amarela se foi. Sobraram as rodas da carreta fabricada pelo meu bisavô, resistindo no tempo e nas memórias da Lili lá do mundo do campo. 

Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...