domingo, 5 de julho de 2020

Vergilino, o guardião da infância

Quando somos pequenos os mais velhos costumam dizer que existem anjos que nos acompanham e os protegem. Nosso guardião na casa da Vó Cinda era o Vergilino. A história da chegada dele na fazenda sempre foi contada como consequência de uma fuga. Nos dias de vida no campo, Lili arregalava os olhos e ficava na escuta cada vez que contavam a versão trágica sobre a vida do Vergilino, muito antes dele viver nos aposentos modestos do quarto dos arreios.
O laço familiar que se conhecia dele era um tal de cabo Chico, um tio que o havia criado desde muito pequeno. Um dia Cabo Chico apareceu com o menino a tira colo na fazenda, um negrinho com cerca dez anos, muito assustado, de olhos arregalados e de poucas falas, pois na chegada já se notava seus traços de gagueira e um pouco de sua dificuldade mental. Nas conversas da família davam conta de explicar que essas limitações foram causadas por um incidente entre pai e filho. O pai do Vergilino teria ameaçado e golpeado com um facão aquele frágil corpo de menino, ferindo-lhe a alma mortalmente. Daí em diante, Vergilino carregaria as marcas de um grande trauma. Era uma estória que camuflava o fato de que talvez ele tivesse um tipo de afasia, certamente, com um significativa conexão com sua lentidão mental.
O encontro da Lili com as debilidades da mente não era novidade. Tia Terezinha, irmã mais velha do meu pai, era uma moça alta, bonita, embora muita branca e frágil. Seu corpo mal suportava ficar em pé, precisava de apoio para andar. Dizem que seu estado era sequela de uma meningite que lhe havia enfraquecido o corpo e perturbado a cabeça. Lembro-me de suas feições delicadas, da pele alva e de seus cabelos lisos e finos, aparados na altura do ombro. Durante o dia, minha vó Xiruca a colocava sentada na cozinha, ao lado do fogão à lenha. Sentava em um cadeira grande de madeira, com assento e espaldar de palha, com umas almofadas para deixá-la mais confortável e, sobre as pernas, uma manta para aquecê-la. Naquele canto minha vó a mantinha aquecida, porque ela parecia sempre estar com frio. Durante a noite, quando tinha dificuldade de dormir, costumava balbuciar sons, repetindo os que os demais da casa usavam para chamar galinhas, pintos e os cachorros. Era só o que tia Terezinha conseguia pronunciar.     
Acolhido pelo meu avô Alberto, o menino Vergilino foi crescendo e tornou-se um empregado da casa, principalmente para os serviços mais domésticos, dadas às suas dificuldades cognitivas. Ocupou-se a vida toda dos afazeres do pátio, das imediações da casa: tirar água de balde, várias vezes ao dia, do poço que ficava debaixo da parreira, e assim manter abastecida a tália de barro; cortar lenha para o fogão da cozinha da casa; preparar toda sexta-feira o forno para assar os pães e adivinhar qual era resmungo da vez que afligia minha vó, comum nos dias de fazer pão; cuidar e limpar a horta; dar comida para os bichos domésticos; capinar as carquejas, guanxumas e urtigas do pátio; varrer os galpões e o pátio dos cavalos, entre tantas tarefas de manutenção e limpeza do entorno da casa.
Mas a tarefa mais importante e imprescindível era a de manter o fogo do chão aceso. E na peça onde o fogo mantinha-se vivo, Vergilino passava suas horas de folga, tomando seu mate, de quando em quando aquecendo água na chaleira preta sobre uma trempe de ferro, ou aquecendo-a em uma cambona de lata de azeite, com uma alça de arame, feita por ele. O fogo do chão era mais do que o círculo de ferro que circundava o local exato onde se colocavam as lenhas para o fogo, era uma peça grande com espaço para bancos mochos, para hora do chimarrão dos empregados, e para uma cadeira escura e lustrosa, feita de um tronco de árvore que era a poltrona do Vergilino. Em um dos cantos da peça, contra a parede do galinheiro havia um pequeno depósito, uma meia parede atravessada de modo diagonal, onde se guardava toda a lenha que abastecia o fogo do chão. Na parede que dava para o pátio interno coberto pela parreira, na parte superior, havia uma longa janela com vidros opacos e amarelados pela mistura de fuligem e gordura do ambiente, causada pelos assados que também se fazia no fogo do chão para alimentar os peões nas madrugadas que antecediam a saída para o campo, em dia de longa jornada campeira. 
Uma tarde de inverno auxiliei a vó Cinda e minha mãe na fabricação de velas. Enquanto a mistura de sebo com cera de abelha fumegava no fogo de chão me cabia a tarefa mais segura e simples, pelo pouco tamanho que eu deveria ter, a de enfileirar as formas feitas de canos de taquara para receber o líquido quente, cuidando para que o pavio feito de barbante se mantivesse centralizado nos canos e a vela não ficasse torta depois de esfriar a mistura. O fogo do chão era usado para muitas outras lidas da casa. Ali naquela peça lúgubre, de paredes tingidas pela fuligem acumulada de anos, de pouca luz e ventilação, durante as tardes de verão saiam tachadas de doce e, à tardinha, lotes de espigas de milho assado em espetos de ferro improvisados pelo Vergilino.
Mas o que eu mais gostava de fazer era de descobrir os esconderijos secretos do Vergilino para os pinhões, que ele juntava debaixo dos galhos. Os pinheiros ficavam entre o chiqueiro dos porcos e o poço do Arvoredo, um poço de água barrenta e fedida, coberta por um limo verde onde, claro, os porcos se banhavam. Os pinhões se espalhavam pelo chão, caídos das pinhas que estouravam lá do alto dos pinheiros. Um achado ter pinhões já guardados pelo Vergilino, porque evidente ele sabia que as crianças da casa conheciam seus dois lugares secretos: uma caixa de madeira com um furo no meio na parte superior, onde ele apoiava a cuia, e com uma única abertura, na qual ele enfiava um punhado de pinhões. Outro esconderijo ficava em um longo vão, uma canaleta localizada na divisão entre a parte de tijolo e a de madeira da parede que separava a área do fogo do chão do corredor do banco de carpinteiro. No vão, bem ao lado do radinho de pilha, sempre havia pinhões. Colocávamos os pinhões no meio das brasas para assar e o cheiro de pinho invadia o lugar, confundindo-se com a fumaça que se podia ver melhor, quando uma fresta de sol atravessava um vão do telhado e trazia um facho de luz para dentro da peça. Lili gostava de procurar de onde vinha aquele facho de luz que cruzava sobre o fogo e batia nas latas de banha, acomodadas sobre uma bancada de madeira logo abaixo daquelas janelas de vidro, sujas e ensebadas.  
Vergilino sempre tinha um guaipeca de estimação, que andava no encalço dele por todos lugares onde ia fazer suas pequenas lidas da rotina. E o carro de mão era usado pra tudo, facilitava carregar, além da lenha, sacos de mandioca, batata, alguma comida para os porcos e também os montes de ciscos das suas varridas de pátio. O mais prazeroso e divertido carregamento do Vergilino era levar os pequenos para dar uma volta no carro de mão. E os cuidava com zelo e um sorriso inocente de quem também se sentia um pouco criança.
Logo que nasci fiquei morando com meus pais na casa da fazenda. Dois anos depois, com a chegada do meu irmão, meus pais se mudaram para casa do outro lado da estrada. Foram morar lá assim que meu tio Alfredo, irmão mais velho da minha mãe, mudou-se com a família para a cidade. Mas eu não me acostumava com o afastamento da minha vó, então alguns finais de tarde minha mãe me banhava, me ajeitava e o Vergilino me buscava para dormir com a Vó Cinda e vinha com seu carro de mão. Lili era a princesa que ele carregava no seu carro de trabalho, transformado em uma carruagem campeira, eu era tão pequena que nem conseguia pronunciar todo seu nome, chamava-o de Lino. 
À noite ele sentava na cabeceira da mesa da cozinha, perto da entrada da porta, aguardando a hora da janta. Quando a cozinha estava cheia, sentava na caixa de lenha em frente, no lado de fora. Ali ficava ouvindo as conversas, ouvindo minhas tagarelices enquanto a vó Cinda fazia algum crochê e aguardávamos a comida ficar pronta. Antes de comer, tomava sua dose de biotônico, guardado na primeira prateleira externa do armário aéreo azul turquesa da cozinha. Jantava um prato fundo alto de comida, o que nos deixou uma referência familiar de comer muito: um prato muito cheio era comer como o Vergilino. E ele ria meigamente do que se passava naquelas noites na cozinha, talvez não entendesse muito bem, mas era a presença dele que dava calor e aconchego àqueles momentos.  
Pouco adiante do Jardim, do lado direito da casa, havia uma grande lenheira, junto à cerca que separava o largo gramado da frente da casa e o campo das vacas mansas. Este nome do campo supunha-se por ser aquele campo onde pastavam as vacas de leite. A lenheira se organizava em armações com moirões para cercas, tábuas velhas e troncos já aparados para o uso. Essas armações tinham um formato como aqueles das casas suíças, como telhados que descem até o chão. Ali o Vergilino passava algumas tardes cortando lenha para abastecer a casa do forno e o depósito do fogo do chão. As lenhas ajeitadas verticalmente permitiam formar um espaço interno, onde nasciam pés de hortelã que cheiravam forte por causa das nossas pisadas, cada vez que nas brincadeiras nos escondíamos dentro daquelas armações. 
Vergilino criou também seus lugares especiais, que ele cuidava e zelava. Ao lado das bananeiras preparou um terreno e fez sua horta, ali plantava tudo que traziam de mudas de ervas e frutas. Era o único lugar da casa que tinha amora, que a gente chamava de framboesa e um lindo pé de grinalda. Naquele terreno cercado ele cultivava os chás que muitas vezes nos socorria dos pequenos males. Vergilino foi assim organizando seu mundo na sua medida.    
Não me era permitido andar pelas acomodações do galpão, sobretudo as ocupadas pelos peões. Esperava a hora em que eles estavam nos seus afazeres para circular pela casa dos arreios, também chamado quarto dos arreios. Nem sempre aquela peça do galpão foi a casa dos arreios, que metade funcionava como uma selaria, outra metade como quarto do Vergilino. 
Esta parte das acomodações da fazenda era a mais antiga de todas, foi um bolicho de campanha. Meu avô Alberto nasceu na velha casa que ficava mais ao fundo, onde restava uma enorme figueira, uma bergamoteira, um cinamomo caído e uma parreira esparramada sobre as outras árvores . Mais a frente um pé de laranja azeda e, no chão, os restos do alicerce da antiga casa da família. Na aquela época, na parte mais da frente, só havia este bolicho, as portas de duas folhas da casa dos arreios eram vestígios de que aquele era um lugar aberto aos que chegavam. Pelo lado de dentro ainda existiam as velhas prateleiras de expor as mercadorias, construídas pelo meu bisavô Antônio, o carpinteiro que morava do outro lado do arroio da Divisa, mostrando como meu bisavô Alfredo se servia das habilidades de carpinteiro do meu bisavô Antônio, o germânico fortão de olhos azuis. Logo após a saída da porta,  dois cinamomos resistindo ao tempo. Em um deles havia ganchos de ferro para amarrar as cordas dos freios dos cavalos dos visitantes do bolicho. A herança desta época ficou simbolizada em um banco de ferro, com uns furos na forma de pequenos círculos, cravado no tronco da árvore. Quando criança a gente tentava puxar, mas ele não se movia, pois se encontrava fixado definitivamente no tronco do velho cinamomo, bem na altura onde conseguíamos sentar. Neste banco o Vergilino sentava para ouvir seu radinho de pilha e ficar à espreita das crianças. A vigilância dele sobre nós obedecia o princípio instituído por ele, de que os grandes não podiam bater nos pequenos.
Anos mais tarde, com fim do bolicho, a peça se destinou à casa dos arreios, com seus cavaletes com as selas e os pelegos. Cada cavalete continha um conjunto de arreios de alguém da casa, freios e cordas eram pendurados em ganchos de arame que desciam desde o teto, passando em certa altura por uma garrafa. Esta técnica da garrafa evitava a descida desenfreada dos ratos e evitava que cordas e freios não fossem devorados pelas ratazanas. E as prateleiras fabricadas pelo meu bisavô Antônio passaram a ser o lugar de colocar medicamentos para o gado.
Na outra metade ficava os aposentos do Vergilino. Havia um baú para suas roupas, uma prateleira na parede e uma cama de madeira. Tomava banho no açude, embora fosse hábito duro para ele, administrava mal a necessidade de tomar banho, muitos resmungos com minhas tias toda vez que elas sugeriam que era preciso tomar banho. Lá no poço da ladeira banhava-se e lavava suas roupas. Muitos anos dormiu ali, com pouca privacidade, sob a luz fraca de um lampião à querosene. No lado oposto da sua cama, perto da janela, havia outra cama, era uma maca de couro, usada para sesta de alguns empregados ou mesmo para dormirem à noite, sobretudo no verão, por causa da janela que dava para frente da casa, por onde entrava a brisa da noite e se ouvia o vento balançando as folhas dos velhos pés de cinamomos.
Em uma reforma realizada na área dos galpões, muitos anos depois que minha vó faleceu, Vergilino finalmente teve seu próprio quarto. Foi ficando sozinho, os cabelos grisalhos denunciavam a idade avançada e, cansado, foi deixando sua lidas mais pesadas. Nos domingos, depois do almoço ia buscar a sobremesa que minha mãe separava pra ele, sorria feliz com um prato de arroz de leite. Mas a saúde foi se debilitando, sozinho já não tinha condições de cuidar de si mesmo. Morreu em um asilo de idosos.
  

    

2 comentários:

  1. Mais um pedaço da história da tua vida,e com certeza de muitos vergilinos espalhados pelo mundo

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  2. Que riqueza, Lili!
    Revivi cada detalhe da tua narrativa, aquela luz que entrava na casa do figo de chão era algo muito fascinante. Reavivaste algumas memórias já esquecidas.
    Parabéns!!!

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