sábado, 18 de julho de 2020

Lili e os verbos do trabalho feminino


Uma noite Lili acordou assustada debaixo da mesa da sala de jantar. Não sabia porque estava estirada naquele piso frio. Estava com nariz colado na cerâmica de cor vermelho escuro, decoradas com delicadas linhas brancas. O desenho de cada lajota resultava em formas que lembravam favos de mel, como os construídos pelas abelhas, perfeitamente encaixados. Eu havia caído do banco de madeira que se usava junto à mesa da cozinha e, às vezes, na grande mesa da sala de jantar. Acima, na viga que separava a sala de estar da do jantar, descia o liquinho pendurado por um gancho, que o suspendia e ajudava a dar ao lampião à gás um ar de lustre, iluminando os dois ambientes. Quando havia poucas pessoas na casa, ficávamos na cabeceira da longa mesa de madeira natural aguardando a hora da janta. Todos os dias, ao anoitecer, meu pai vinha acender o liquinho para minha vó. Quando nos mudamos para cidade, meu pai continuava vivendo no campo, então, quando a noite chegava, ele vinha da nossa casa, do outro lado da estrada, acender o lampião à gás e jantar com minha avó. Trazia com ele uma lanterna para iluminar o caminho na volta, já na noite escura.
Sentada na ponta da mesa, vó Cinda fazia crochê com a luz que nos dava o lampião à gás, muito mais potente que a do Aladin, o lampião à querosene que ficava na mesa da cozinha. A luz elétrica chegou naquela região no final dos anos setenta, assim como a estrada asfaltada que cruzava o campo da fazenda, dividindo-o em duas grandes partes. O progresso custou a chegar na fazenda, embora já tivesse existido, no grande galpão da charrete, um quarto, uma separação em madeira onde havia um gerador e um velho motor a óleo desativados, dos tempos em que existia na fazenda um sistema de iluminação alimentado por uma pequena de usina a óleo.
Nos meus dias de Lili, esses dois lampiões, além das velas, eram as fontes de luz que tínhamos para as noites e os seu serões. Lili adorava esta palavra pronunciada por aqueles que iam até mais tarde terminando algum afazer inacabado, os serões ocorriam nas noites de jantas de aniversário ou de trabalho. Eram noites mais prolongadas, para finalizar uma costura ou mais uma carreira de crochê, escolher o feijão catando as sujeiras, colocando-o de molho para o almoço do outro dia ou aguardar o bolo terminar de assar para café da manhã seguinte.
Eu gostava de fazer de cama o velho banco de pintura descascada, já desgastada pelo anos de uso, o que lhe dava um ar de arte decoupage, parecia ter sido pintado com sobra da mesma tinta amarela da cor da charrete. Eu cabia exatamente no comprimento do banco, mas a toalha de plástico, de fundo branco, decorada com figuras de peras, figos e bananas encostava na altura do banco. Coberta pela toalha, fiquei um bom tempo ali enquanto a vó Cinda dava cabo de mais uma longa carreira do seu crochê. Pela grande volta, a tal carreira deveria ser a da pontilha de mais uma colcha, ou mais um crochê no acabamento dos quadrados da colcha de retalhos que há dias ela vinha trabalhando e combinando, ajustando os quadrados com cores e estampas. Uma colcha de retalhos nascia do  aproveitamento de sobras de tecido e serviam para cobrir as camas ou ainda de cobertas leves.
Minha vó Lucinda era uma mulher de muitos afazeres e de muitas habilidades, como era natural no papel assumido pelas mulheres que viviam no campo ao se encarregarem de suprir as necessidades e  o conforto da família. As suas rotinas se dividiam no criar e cuidar, desde os filhos até os animais domésticos. Minha mãe tinha sempre na sua lista de cuidados cordeiros e terneiros órfãos. Ela os alimentava, dava-lhes nomes e mimos, uma ocupação herdada da minha vó. Lili observava e aprendia a respeito da vida das mulheres nessas rotinas domésticas, que também incluíam atender ao protocolo de acolher e receber bem os membros da família e os parentes que traziam suas queixas e suas mazelas. Para esses dias de visitas, a despensa precisava estar abastecida com bolachas, doces de frutas como  peradas, goiabadas, figadas e pessegadas, algum licor de fruta, passas de pera, pêssego e figo em calda, doces de abóbora e batata doce. E uma galinha ou um pernil assados, de véspera, no grande forno localizado na área contígua à despensa, para o almoço do domingo. Semanas de trabalho e de preparo para ter sempre algo a oferecer às visitas. A etiqueta do bem receber na vida do campo abundava de produtos da fazenda, um orgulho pela fartura de comida a oferecer.
Eu havia dormido e caído do banco. Naquele estado de sonolência a vó Cinda deu um jeito de me erguer do chão frio e tomamos o rumo do quarto. Compartilhávamos o quarto que dava para o jardim, localizado bem no canto esquerdo da construção. Havia no quarto três camas de ferro pintadas de um amarelo claro contrastando com a pintura azul celeste das paredes. Entre elas havia uma mesinha de ferro onde colocávamos os castiçais com as velas, o livro de reza da vó e um rosário, no outro espaço entre as camas, a cadeira de madeira com uma almofada bordada que se usava para sentar junto à máquina de costura. Nessa cadeira eu sentava para a longa tarefa de fazer intermináveis tiras de correntinhas de crochê, por dias as fazia até aperfeiçoá-las. Era o modo que a Vó Cinda havia encontrado de me ocupar para que eu não fugisse para a área do galpão, território masculino pouco permitido a meninas inquietas como Lili. A cama do meio era dela e ficava em uma posição privilegiada, já que em certas noites, deitada na cama, podia-se apreciar a lua cheia bem em frente à janela e acompanhá-la subindo no céu. E também localizar, no céu estrelado, as três marias que no verão se erguiam no alto do jardim. As outras duas camas eram usadas por duas das tias solteiras que ainda moravam na casa. As duas tias trabalhavam na cidade e durante os fins de semana voltavam à fazenda, por isso que nos intervalos entre os fins de semana eu me adonava de uma das camas, dormia sempre ao lado da minha vó e a observava antes de dormir, rezando e contemplando um quadro com uma ilustração da via crucis, acima da cama que eu dormia. O quarto tinha um guarda-roupa com um espelho na porta do meio, onde eu gostava de me olhar cada vez que experimentava uma roupa feita pela vó. Lembro que na porta da direita, na última prateleira, entre algumas caixas, tinha um livro de ervas medicinais. Minha vó era precavida como toda mãe e avó que cuida, consultava o livro para tratar de algumas dores comuns que uma vez e outra atacava alguém da casa. Logo à direita, passando a porta cinza de duas folhas, na entrada do quarto, estava uma penteadeira. Na parte superior três espelhos, um central grande e dois laterais que permitiam as tias verificarem como os cabelos estavam penteados atrás da nuca. Os espelhos laterais se moviam e facilitavam para ver os rabos de cavalo, os coques e ajeitar as vestimentas na parte detrás. Na parte inferior do armário, duas portas e duas prateleiras onde eu guardava minhas roupas. A parte mais bonita do móvel era a dos desenhos de flores nos azulejos, que pareciam trombetas de anjos, localizados entre o conjunto de espelhos e o tampo de mármore. Aquela barra decorada com azulejos dava requinte à penteadeira, por coincidência, as flores se pareciam com as de um arbusto que ficava logo abaixo da janela lateral do quarto, que minha vó Cinda chamava de cartucho. Na altura dessa janela, atrás da cama, encostada na parede, havia uma máquina de costura, sob o olhar do retrato da minha trisavó Amélia, um quadro oval com uma fotografia com apresentava retoques de pintura. Me sentia incomodada com o seu ar severo e carrancudo, tinha cabelo muito curto, feições duras, vestida com roupa preta de luto e uma corrente com um medalhão. Dali ela podia ver sua neta Lucinda costurando durante algumas tardes. Ora fazendo suas roupas íntimas como camisolas, calcinhas, pijamas, ora fazendo remendos e pequenos consertos.
A hora mais divertida neste quarto era o momento de costurar as roupas para as minhas bonecas. Os dias de costura da vó Cinda eram meus dias de criação. Naquela oficina de remendos e também de confecção de lençóis, toalhas, guardanapos, minha mãe batia o pedal da máquina fazendo remendos nas bombachas do meu pai ou improvisando joelheiras para calças dos meus irmãos. Em frente ao guarda-roupa eu brincava sobre o tapete de couro de vaca já gasto pelo tempo, e recolhia retalhos dos tecidos, juntava os botões perdidos no chão e as sobras de fitas, galões e vieses coloridos para criar as roupas das bonecas. Confeccionava as vestimentas da Luci, dei-lhe o nome da tia que me presenteou, Karen, minha sorridente boneca negra e Nina, a boneca de plástico simples, a maior das minhas bonecas, que ganhou um vestido de festa da Vó Cinda: uma saia de organza azul claro com uma blusa de um tecido azul bordado com fios dourados. Minha boneca de plástico simples era glamuorosa por causa da minha vó.
Enquanto estavam na máquina de costura, minha vó e minha mãe deixavam espalhadas sobre a cama caixas com sobras de tecidos e acabamentos e vidros com botões variados. Em uma tarde de costura, Lili se encantou por uma argola verde limão com bordas onduladas, provavelmente detalhe usado em alguma roupa das tias. Lili viu nela um lindo anel, colocou-o no dedo anular, porém ao querer retirá-lo ele não saia do dedo. Lili então buscou socorro com Marlene, uma jovem que desde menina foi trabalhar na casa da Fazenda e ajudava a cuidar os pequenos. Ela providenciou água e sabão e fez massagens no meu dedo anular para facilitar que a argola se soltasse. Uma das tias zombava de que a argola iria ficar pra sempre no meu dedo e vendo meu choro compulsivo, minha mãe resolveu então apelar para meu pai para resolver o problema. Em seguida, vi meu pai aparecer na porta da cozinha com um alicate na mão. Desesperada, com medo e já imaginando que fosse necessário cortar o dedo, para se ver livre da argola verde limão, Lili se desesperou e escapou. Corri umas duas voltas no enorme gramado em frente à casa até meu pai me alcançar e quebrar o meu anel verde com o alicante. A argola verde limão se foi e o meu dedo saiu ileso.
Em umas férias de verão fui passar uns dias na casa da minha vó Xiruca. Lá minhas tardes se dividiam em comer queijo com mel ou frutas do arvoredo, tão bem cuidado do meu avô Joãozinho, e correr os patos para dentro do açude, para ver como colocavam a cabeça para debaixo da água bicando os lambaris para se alimentarem. Pelas manhãs, via minha avó e tias mais velhas lavando uma grande quantidade de roupas da casa no açude, lavavam sobre tábuas improvisadas. Na beira do açude esfregavam, batiam e torciam as roupas de toda família. Com muitos filhos minha vó se desdobrava entre os afazeres do dia a dia, assava pão em um forno pequeno na forma de iglu, localizado logo na saída da grande cozinha da casa. E fabricava bolachas, bolos e doces. A família do meu pai, descendentes de imigrantes, não tinha empregados, desde muito pequenos os filhos se ocupavam de auxiliar na lavoura e na criação dos animais. De madrugada, meu pai e meu tio mais velho, desde guris se encarregavam da entrega do leite fresquinho para os fregueses da cidade e, no retorno pra casa, traziam as encomendas do meu avô como rolo de tabaco e erva.
A entrada na chácara era por cima da taipa do açude, logo na chegada à taipa havia um pontilhão por onde corria um canal de água para abastecer os animais, fazendo a volta no entorno do terreno próximo à casa. Um taquaral contornava o açude do outro lado, fazendo um quebra vento que protegia o arvoredo. Entre as raízes daquele imenso taquaral, uma quantidade inacreditável de patos se reproduziam e se criavam livremente. Os patos e marrecos nadavam nas águas do açude e davam beleza àquela entrada nas imediações da casa. E alimentavam a grande família do meu pai assim como a variedade de plantas na horta, as frutas no pomar e as plantações das pequenas lavouras, caprichosamente cultivadas pelo meu avô.
Igual que minha vó Cinda, minha vó Xiruca precisava dar conta das tarefas domésticas e ainda ter tempo para bordar, costurar e remendar. Era uma rotina intensa de trabalho para suprir as necessidades de todos e ainda sobreviver às dificuldades da vida no campo. Era a ultima a se recolher, depois de arrumar a cozinha, fechava a porta e carregava o lampião à querosene para chegar até o quarto. Deitava tarde e exausta, logo cedo era a primeira a levantar. Ela madrugava para tirar leite e bem cedinho enviar os filhos mais velhos para cidade entregar as garrafas e os tarros de leite. A venda de leite era uma das fontes de renda da família e a primeira obrigação do dia para minha avó, mesmo nas madrugadas frias de inverno, normalmente com a barriga crescida de mais uma gravidez.
Os verbos do feminino assim se apresentavam para Lili como sinônimos de trabalho e cuidado. A dedicação resignada das mulheres mais maduras apontava um esforço para viver no campo, meu primeiro mundo. Mas havia ali um modo de resistir. Resistir pelo amor, pelo zelo, pelos remendos e consertos, pelo alimento que se produzia a cada dia. Enquanto observava o movimento das mulheres, Lili criava as roupas para as bonecas e desenhava futuros.

3 comentários:

  1. Lili, tú me faz voltar no tempo, passei tudo isso com minhas tias,o mesmo ritual,minha mãe e seus crochês, serões, tudo,obgd por isso,

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  2. Narrativa linda e sensível. Perfeito retrato do protagonismo feminino no campo! Uma reflexão importante para os nossos dias para repensar tantas coisas.

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  3. Narrativa de memórias são genuínos registros de compreensão de mundo! ❤

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