segunda-feira, 29 de junho de 2020

As avós de Julho


Minhas avós tinham algo em comum: eram mulheres daqueles tempos em que casar era o destino cravado de toda mulher. Duas mulheres que resistiam bravamente às forças daqueles tempos duros nos quais viviam e sobreviviam carregando um mundo sobre os ombros. No caso delas, se resignaram ao destino que lhes fora imposto pela perda prematura de suas mães. 
Minha vó Cinda fez parte de uma entrega forçada, por causa da viuvez do meu bisavô Álvaro, teve o destino traçado por ele e por volta dos doze anos foi deixada com as tias paternas junto com seus irmãos menores para serem por elas cuidados e educados. Lá se foi minha vó migrar do campo pra cidade, jovem e desamparada de mãe. Neste destino, encontrou meu avô e, apesar de uma certa diferença de idade entre eles, casaram-se. Ela novamente retornou ao campo para assumir uma casa já habitada e comandada por uma matriarca de personalidade forte, minha bisavó Lídia. Uma mulher enlutada e reservada à sua cadeira de balanço, à sua tarefa cotidiana de varrer pátios e de ser auxiliada por uma filha de escrava alforriada, a Sinhá Maria, que realizava todos os afazeres domésticos da fazenda.

Mais de uma década depois, do outro lado do arroio que circundava e dividia as terras de cá com as terras do campo de lá, outra família fazia morada. O arroio da Divisa corria entre os dois campos, margeado por vastas várzeas alagadas, separando as terras de proprietários latifundiários, como as herdadas pelo meu avô Alberto, nascidos em famílias que tinham grandes extensões de campo desde o período do Império, daquelas cedidas pelo governo para ocupação de imigrantes austríacos e alemães, na margem direita do arroio da Divisa já entrando na altura do arroio do Salso. Meu avô paterno herdou sua chácara dos pais imigrantes austríacos que receberam uns hectares de terras devolutas do império para cultivo na virada do século XX. Eles vieram em uma leva de imigrantes que já haviam estado em terras uruguaias, e faziam sua segunda migração para se instalarem e produzirem na região oeste da zona rural município. As terras da chácara do meu avô paterno foi requerida depois da morte do meu bisavô, pois até aquele momento não tinham ainda o título de posse. Meus avós maternos e paternos eram lindeiros, suas terras circundavam um lado e outro nas imediações do encontro dois arroios, o da Divisa e do Salso

Exatamente nessas imediações do arroio do Salso é que se instalaram os avós do meu pai, ambos nascidos na Áustria. Minha bisavó era uma mulher muito doente, acamada, fraca e já quase paralítica por causa do Lúpus. Meu bisavô era carpinteiro, trabalhava construindo instrumentos agrários para pequenos agricultores da região e fazia outros trabalhos de carpintaria, mas bebia muito e não tinha condições de cuidar da vó Carolina. Então, pouco tempo depois de casados, meu avó João veio, com sua família recém formada, morar mais perto do casal.

Minha vó Xiruca, apelido que Lili achava grande e feio demais para ser carregado por uma mulher tão delicada e mansa, chegou como meu avô e sua primeira filha, dos dezessete filhos que viria a ter até os quarenta dois anos, levou metade da vida tendo filhos. Casou muito jovem, pois seu pai ficou viúvo muito cedo e tratou de criá-las, elas e as irmãs, até que pudessem arrumar um casamento para ter um destino na vida. Uma das tarefas assumidas pela minha vó era ajudar a cuidar da sogra e tratar de criar os filhos que nasciam a cada ano. Quando menina, durante o verão, eu passava uns dias de férias com eles e gostava de ter tias que não eram tão mais velhas que eu, pois meu pai era um dos filhos mais velhos e casou bem jovem. Com tantos filhos, a diferença de idade entre as minhas tias mais jovens e eu era relativamente pequena. Entre as mais velhas tinha minha madrinha Cristina, que me mimava muito, e foi mais uma mulher que me marcou, desta vez, pelo trágico fim que deu a sua vida quando eu tinha dez anos. Nunca se soube o motivo.

Eu rodopiava bailando na grande e impecável sala da casa da minha vó Xiruca, naquela casa simples de madeira, com muitos quartos, onde o rádio era ligado sempre no horário perto do meio-dia e no final da tarde. Era o horário que marcava o início do programa em que tocavam só músicas gauchescas. Vó Xiruca foi atribuindo reponsabilidades domésticas as filhas à medida que elas cresciam,  cuidado casa, arrumar as camas, lavar roupas, manter a lenha constante no fogão para preparar a comida para muita gente. E ainda lhe sobrava tempo para costurar, consertar roupas, fazer pão e doces.   

Mas eu praticamente morava era com minha vó Cinda. Quando nasci ela já era viúva, pois meu avô Alberto morreu no mesmo ano que minha bisavó Lídia, mulher longeva para aquela época, morreu aos 98 anos. Eu dormia em uma cama de ferro ao lado vó e durante o horário da sesta dormia nos seus braços, embora apertadas naquela cama de solteiro, o aconchego amoroso daquele momento era único. A dormida da tarde só acontecia depois dela ter alimentado todos os bichos domésticos, era um bando de galinhas recolhidas aos seus pés em busca de milho. Ela era alta, ou parecia alta para uma guria de cinco anos. Usava vestidos de estampas sóbrias, saias escuras e blusas claras e discretas, condizentes com seu estado de viuvez. E no cabelo sempre uma travessa de plástico marrom ou preta. No guarda-roupa, as roupas e os objetos exalam um perfume delicado de talco. Depois do banho dava para sentir o cheiro de longe e se notava ainda mais que era do talco pelo modo como ele se espalhava pelo seu colo. Era inquieta nos afazeres cotidianos: providenciar a comida, cuidar dos bichos, da horta e do jardim, costurar, fazer crochê, e toda sexta-feira fazer pão, com ajuda da minha mãe. Assava-se tudo que coubesse para ser assado no imenso forno, que tinha sua própria cobertura e varanda, a chamada Casa do Forno. Fazia-se assados de porco e galinha, se torrava amendoim e também se assava batata doce. Cuidava-se de abastecer a casa com pães para quase toda a semana, nesse dia do pão, minha mãe fazia pãezinhos para as crianças no formato de bichinhos, ornamentados com olhos de feijão. E tinham as bolachas, o pão de ló torrado e  o pão de milho, que era um pão que tinha um formato que eu sempre associava às bostas das vacas e, de fato, eles eram como uma plasta feita de farinha de milho, com se fossem doses generosas de polenta, atiradas na forma por uma grande concha. Se esperava a visita de parentes nos fins de semana e se abasteciam as latas de bolachas e os potes de vidros de doces. Na dispensa, sobre uma pequena mesa, repousavam gamelas de madeira repletas de carnes assadas e formas com batatas assadas.

No jardim, o velho pé de camélia de flores rosadas, de uma espécie em que os botões quando abriam dobravam-se em pétalas sobrepostas, tinha um lugar majestoso logo na entrada do portão. Em volta do pé alguns lírios e cravinas. As rosas eram as mais cuidadas e vigiadas pela minha vó. Todo ano tinham novas flores coloridas que ocupavam os canteiros feitos de formatos variados: redondos, quadrados, retangulares. O jardim podia ser visto e apreciado da janela grande de uma peça longa da casa, que integrava a sala de jantar com uma sala de estar, que chamávamos de varanda. Ali, bem em frente à janela, estava um pé de jasmim. Durante a noite ele enchia o ar com seu perfume e parecia cheirar mais adocicado com o sereno que umedecia as flores brancas, ainda mais iluminadas pela lua cheia que se levantada entre os eucaliptos, gigantesca para altura de onde Lili via o mundo. 

Minha vó Xiruca usava roupas simples, pouco coloridas, o que parecia ser a regra das mulheres casadas da época. Usava vestidos com botões e bolsos. Os longos cabelos, que só se viam soltos após o banho, eram presos por um pente de alumínio com dois dentes, eles ajudavam a prender o cabelo enrolado e finalizado na forma de um coque. Sempre a via assim, tinha poucas falas, um silêncio de resignação e uma delicadeza na acolhida regada por doces de calda, servidos generosamente em um prato de sobremesa.  

O jardim da casa da vó Xiruca era uma combinação de capricho e detalhes. No lado de fora da porta de entrada, que dava diretamente em uma sala espaçosa, havia uma trepadeira que fazia o contorno do marco da porta, eram flores em cachos generosos chamadas Lágrima de Cristo. Mais adiante havia, quase no meio do jardim, um pé de brinco de princesa, muitas vezes meus brincos de verdade, e que podia ser visto da janela do grande quarto do casal. Era um jardim de terra batida, sem lajotas, sem calçadas, com muitas dálias e um pé de camélia próximo do cercado  que o protegia da invasão dos paros, porcos e galinhas que andavam pelas redondezas. O jardim era varrido diariamente pelas minhas tias, o que dava a ele um ar de  capricho e cuidado, que foi marcando minha memória e meu gosto por flores.
 
Lili andava pelos jardins espiando ou acompanhando mais um dos tantos afazeres destas avós que viviam entre os cuidados da casa, o que incluía pátios e jardins, a criação dos filhos, lidando com os rompantes dos maridos e os brutos silêncios que travavam ao se recolherem nos seus assuntos de homens. Delas fui aprendendo a ter o gosto pelo cultivo das flores e por fazer doces e pães, às vezes também usar o cabelo preso com um coque ou presos por uma simples travessa. Duas avós nascidas em Julho, duas forças nos tempos de  menina de Lili.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Lili inventa o mundo nasce

Lili inventa o mundo - Mario Quintana

Lili é meu codinome. Fui inventada logo depois de nascer. Meu tio Ruco me chamava de Lili, dizia ele que era por eu ser tão miúda e graciosa, provavelmente também se inspirou-se nome da boneca da minha prima mais velha. Desde então sempre me identifiquei como Lili, só me cabia, ao longo dos primeiros anos da infância, ir me recompondo dos sustos que minha mãe me dava cada vez que me chamava pelo meu nome de batismo e registro. Ao me chamar pelo nome que me deu funcionava para eu estar alerta sobre quem eu era naqueles tempos em que minha identidade estava toda moldada pela existência da Lili, sendo um pouco real outro pouco inventada.
Aos seis anos e meio fui para escola, longe do largo mundo livre da casa onde eu mais habitava, a casa da minha vó Cinda. Fui morar com meu tio que inventou meu apelido de infância, ele era o elo que permanecia nesta minha passagem entre meu mundo rural e o mundo urbano, porque a escola era meu destino, pois assim minha mãe tinha decidido. No primeiro dia de aula fui levada ao Grupo Escolar pelos meus tios. Lembro de me sentir deslocada, embora já houvesse experimentado a arte da escrita,de ter me familiarizado com a ideia da alfabetização, eu havia iniciado na casa fazenda os movimentos de curvas e retas para escrever as letras do alfabeto em folhas de papel soltas, onde cada letra ganhava um significado. Minha vó Cinda, enquanto fazia seu crochê, especialmente nas tardes de inverno, me desvendava o mundo da palavra através de um rótulo das linhas Cléa. Para cada letra que ela me ensinava, fazíamos correspondências com os nomes das pessoas da família e, daí pra frente, outras tantas palavras foram possíveis. Não fui ao jardim de infância, mas cheguei à escola determinada a conhecer muito mais do mundo das letras, que minha avó me havia apresentado, despertando em mim o gosto pela escrita e povoando-me de sonhos. A escola foi meu passo para a chegada à consciência da outra identidade, a do registro civil. Na primeira vez que a professora fez a chamada, me senti ausente, olhei para as fileiras de colegas ao meu lado e notei que só eu não respondia a tal da chamada. Lá pelas tantas meu mundo Lili ouvia ecos da voz da minha mãe me chamando, afinal era a única da família que não me chamava de Lili. Por que diabos ela iria me chamar por este codinome se havia escolhido meu nome inspirado nas novelas de rádio, se havia escolhido meu nome para lembrar a protagonista do Direito de Nascer? A escola definiu-me entre o nome e o codinome. Porém,  muitos dos meus afetos estão guardados com maior força na memória do codinome.
Anos depois, já na faculdade de Letras´, ganhei um livro de uma tia que morava em Porto Alegre. Impossível não prever este destino anunciado pela pedagogia do crochê da minha avó, porque quase certo aquele rótulo foi um oráculo prevendo meu futuro. O livro que ganhei tem a mesma capa desta imagem. Ele está autografado pelo Mário Quintana, pois minha tia  disse a ele que era para uma Lili. Então o poeta escreveu: " Para uma Lili que possa inventar um mundo". Eis que agora tomei coragem de escrever sobre as memórias vividas pela Lili inventada, e sobre tantas outras memórias daquele nome de batismo que a vida adulta me restituiu como identidade. 

Carapé

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