sexta-feira, 26 de junho de 2020

Lili inventa o mundo nasce

Lili inventa o mundo - Mario Quintana

Lili é meu codinome. Fui inventada logo depois de nascer. Meu tio Ruco me chamava de Lili, dizia ele que era por eu ser tão miúda e graciosa, provavelmente também se inspirou-se nome da boneca da minha prima mais velha. Desde então sempre me identifiquei como Lili, só me cabia, ao longo dos primeiros anos da infância, ir me recompondo dos sustos que minha mãe me dava cada vez que me chamava pelo meu nome de batismo e registro. Ao me chamar pelo nome que me deu funcionava para eu estar alerta sobre quem eu era naqueles tempos em que minha identidade estava toda moldada pela existência da Lili, sendo um pouco real outro pouco inventada.
Aos seis anos e meio fui para escola, longe do largo mundo livre da casa onde eu mais habitava, a casa da minha vó Cinda. Fui morar com meu tio que inventou meu apelido de infância, ele era o elo que permanecia nesta minha passagem entre meu mundo rural e o mundo urbano, porque a escola era meu destino, pois assim minha mãe tinha decidido. No primeiro dia de aula fui levada ao Grupo Escolar pelos meus tios. Lembro de me sentir deslocada, embora já houvesse experimentado a arte da escrita,de ter me familiarizado com a ideia da alfabetização, eu havia iniciado na casa fazenda os movimentos de curvas e retas para escrever as letras do alfabeto em folhas de papel soltas, onde cada letra ganhava um significado. Minha vó Cinda, enquanto fazia seu crochê, especialmente nas tardes de inverno, me desvendava o mundo da palavra através de um rótulo das linhas Cléa. Para cada letra que ela me ensinava, fazíamos correspondências com os nomes das pessoas da família e, daí pra frente, outras tantas palavras foram possíveis. Não fui ao jardim de infância, mas cheguei à escola determinada a conhecer muito mais do mundo das letras, que minha avó me havia apresentado, despertando em mim o gosto pela escrita e povoando-me de sonhos. A escola foi meu passo para a chegada à consciência da outra identidade, a do registro civil. Na primeira vez que a professora fez a chamada, me senti ausente, olhei para as fileiras de colegas ao meu lado e notei que só eu não respondia a tal da chamada. Lá pelas tantas meu mundo Lili ouvia ecos da voz da minha mãe me chamando, afinal era a única da família que não me chamava de Lili. Por que diabos ela iria me chamar por este codinome se havia escolhido meu nome inspirado nas novelas de rádio, se havia escolhido meu nome para lembrar a protagonista do Direito de Nascer? A escola definiu-me entre o nome e o codinome. Porém,  muitos dos meus afetos estão guardados com maior força na memória do codinome.
Anos depois, já na faculdade de Letras´, ganhei um livro de uma tia que morava em Porto Alegre. Impossível não prever este destino anunciado pela pedagogia do crochê da minha avó, porque quase certo aquele rótulo foi um oráculo prevendo meu futuro. O livro que ganhei tem a mesma capa desta imagem. Ele está autografado pelo Mário Quintana, pois minha tia  disse a ele que era para uma Lili. Então o poeta escreveu: " Para uma Lili que possa inventar um mundo". Eis que agora tomei coragem de escrever sobre as memórias vividas pela Lili inventada, e sobre tantas outras memórias daquele nome de batismo que a vida adulta me restituiu como identidade. 

9 comentários:

  1. Muito legal, Eliana. Acho que Lili combina nto contigo ainda. Bj

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  2. Olha colega,amiga,tuas palavras são tua caminhada,bj no seu coração,continue sempre essa pessoa delicada e expressiva

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  3. Lili: tua história é muito linda. Tu passaste pela vida de pessoas Importantes que também te ajudaram a ser quem és, e tu foste como filha para elas. Ao longo de tua trajetória, de menina graciosa a profissional das letras, foste colhendo vivências e relatos que deves compartilhar para contar um pouco dessas pessoas e famílias Maravilhosas.

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  4. Adorei Lili! Sempre foste uma ótima escritora e este teu primeiro post só veio confirmar isto. Muito sucesso minha querida amiga. Vou adorar ler os teus posts.👏💖

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  5. Que lindo texto, Eliana! Que lindo saber que a Lili que mora em ti te inspira escritas e vivências tão significativas. Quero saber mais destas gurias que te habitam. Um abraço desta tua sempre aluna e fã.

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  6. Que memórias fantásticas! O texto ficou leve e com gostinho de quero mais! Já estou esperando o próximo!! ❤️❤️

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