sábado, 27 de maio de 2023

O tempo e a vida na cidade pequena

Logo depois de passar pelo prédio do hospital acabava o calçamento de pedras da rua Antônio Gomes, começava então uma rua cascalhada, onde a poeira levantava fina e abundante. Em dias de chuva a gente precisava saber como desviar das poças de água e, ao mesmo tempo, se livrar do barro que se acumulava nas laterais da rua, poucas casas tinham calçadas, faixas de grama predominavam em frente as construções. Justo por estas bandas morava a vó Xiruca. Lili preferia ir visitá-la fazendo o caminho pela rua Cipriano Dávila, tinha a impressão de que a subida das duas últimas quadras nas proximidades do Alto da Bronze era mais suave do que indo pela sete de Setembro. Ali estava o ponto mais elevado da cidade, local conhecido pelo campo de futebol.

Lili saia pelo fundos de casa, cruzava o terreno do seu Noé. Era fácil descer pelo campinho, bastava se esquivar com cuidado das vacas de leite. A rua de baixo, diferente da sete de Setembro, era só poeira, terra fina e muito buraco. Andando por ela, a cidade tinha outro encanto: moradas com terrenos grandes, casas amplas, muitas de madeira, com jardins, hortas e pomares. Eu podia avistar minhas colegas que moravam naquelas quadras logo acima de onde eu havia cruzado: a Ceres, a Iara e a Mara. Abanava para a Ceres, a primeira que eu avistava. Algumas vezes fiz trabalhos da escola com a Mara, que morava em um chalé todo azul cor do céu, contrastando com as janelas pintadas de vermelho escuro. A casa da família era grande e o pátio caprichosamente coberto de folhagens variadas, dentro de casa se repetia o mesmo capricho do jardim, cômodos organizados e limpos. Localizada na esquina da Cipriano Dávila com a Antônio Gomes, no lado oposto do famoso campo de futebol do Alto da Bronze, a morada parecia um sítio. Antes de chegar passava pelo boteco do Mingo, pai da Iara. Uma construção de alvenaria, posicionada na linha da calçada, já desbotada das tantas pinturas recebidas, mesclas de tons de azul, verde e branco. Uma casa de fachada alta, com portas abertas recebendo, desde cedo, os borrachos de plantão.

Uma vez por semana eu dobrava aquela esquina, passava pelo minúsculo estabelecimento do João sapateiro. Seguidamente minha mãe tinha algo para eu deixar para conserto:  sacolas, sapatos, bolsas, botas do meu pai ou dos guris. Umas casas mais adiante, avistava dona Alemoa me olhando da janela, eu fazia um aceno com a cabeça, sem erguer muito os olhos. Lili ficava constrangida, pois não conseguia desviar o olhar daquele papo enorme grudado no pescoço da vizinha da vó Xiruca. Dona Alemoa tinha um bócio enorme logo abaixo do queixo. A ignorância do povo levava a comentarem que era dela fazer tanto esforço quando jovem, tinha o ofício de lavadeira, trouxas e pilhas de roupas ao longo de uma vida de sacrifícios. Coitada, aquilo era uma anomalia, com certeza sinal de algum problema de saúde. 

Eu a via como uma figura de contos de fadas: as rugas faziam sulcos no rostro, o nariz era grande e pontudo, parecia usar muitas roupas sobrepostas. Usava um lenço branco amarrado na cabeça, o que disfarçava bem seus cabelos grisalhos e desalinhados. Embora usasse sempre saias longas, no inverno colocava calças compridas por debaixo da saia para se aquecer. Ela alimentava minhas ideias na criação de personagens, pois naquelas alturas de início da adolescência, eu já me ocupava com a escrita.

Os arredores da cidade ficavam tão próximos da zona central, caminhava-se quatro a cinco quadras e se chegava à parte mais urbana. Em verdade, havia poucas ruas calçadas, o que dava um ar de vilarejo à cidade. Os terrenos baldios entre as casas iam surgindo cada vez mais à medida que a gente ia se afastando da praça. Eu gostava dessa passagem mágica, do mais urbano para o mais rural, das ruas para as estradas. Tudo o que era mais povoado e desenvolvido se concentrava no entorno da praça central. 

O desenho da praça destaca-se pelos vários acessos, pode-se ir para qualquer lado da cidade. Do centro, onde está o majestoso coreto, partem suas calçadas largas, seguidas por árvores frondosas. Eu tinha um gosto inexplicável por sentar nos bancos de pedra no círculo grande  em volta do coreto. Naqueles bancos, Lili tinha longas conversas, repletas de confidências e risadas, com as colegas da escola enquanto o sol se punha e pintava de tons dourados as colunas neoclássicas do coreto. 

A praça com suas extremosas rosadas, além das palmeiras solitárias que circundam o coreto, surgiu de uma área grande, em frente a igreja. As ruas que foram surgindo a partir  da praça, atraindo a construção de mais casas, e assim comércio também foi se estabelecendo. Antes, tudo ali era um campo aberto, onde cavalos e vacas pastavam soltos, pastoreados por indígenas guaranis. O campo deu lugar à praça central, pois a sede definitiva da igreja matriz estava pronta e havia se instalado um poço para abastecer de água a população da pequena cidade que se emancipava. Depois, a construção do coreto deu à cidade um patamar mais civilizado. A chegada de mais de cinco mil imigrantes na época aumentou consideravelmente a população, embora eles tivessem se estabelecido no campo, nas imediações da cidade, dando origem às pequenas chácaras e moradas do interior, houve uma mudança definitiva na paisagem do município, antes dominada pelos campos vastos das fazendas localizadas muito distantes da cidade.

Os antigos contavam e recontavam, nas suas conversas rotineiras, muitas histórias dos seus antepassados; discutiam fatos, recordavam detalhes e acrescentavam mais um ponto naquela rede de conversas sobre as pessoas e suas histórias. As rodas de conversa se armavam com amigos, compadres e parentes, tecendo comentários sobre como a cidade foi crescendo, recordavam causos de todo tipo: os inusitados, os vergonhosos e os divertidos. Os velhos tinham apreço por  se reunirem em pequenas rodas nas esquinas, a mais conhecida era a da praça no entorno da banca de revista ou, então, na do clube, do outro lado da rua. Nos dias de frio, os homens de pala e bombacha se aqueciam ao sol e se atualizavam sobre os últimos acontecimentos, ou puxavam da memória um enredo sem fim de uma história passada. Pouco antes do relógio bater as doze, rumavam para casa, hora do almoço. Suas esposas os aguardavam com mesa servida: tempo e vida de cidade pequena. 

   


Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...