segunda-feira, 19 de setembro de 2022

O coreto

Toda vez que marcávamos um encontro, fosse para ver um jogo na quadra da praça, fosse para tomar um sorvete ou ficar na espreita de algum guri que a gente paquerava, era o coreto nosso ponto de referência e de encontro. Sentávamos nas escadas e ali ficávamos no final da tarde jogando conversa ao vento, comentando sobre a vida de quem passava. Às vezes nos debruçávamos sobre as muretas vazadas com suas pequenas colunas torneadas e espiávamos quem cruzava de um lado a outro da praça: os que voltavam do trabalho, os que traziam compras do mercado Encantado, as senhorinhas que se aproximavam da igreja para a missa das seis. 

Quando não tínhamos a vigilância do Tunico, até sobre as bacias em forma de conchas nós nos sentávamos, imaginando a água que deveria jorrar da boca dos leões, esculpidos logo acima daquelas grandes conchas distribuídas em volta de toda a construção. Lili não tinha memórias deste chafariz que as bocas dos leões pareciam formar, porque já não havia água correndo por ali. Na parte superior, lá no alto, as pombas faziam seus acasalamentos e ninhos de amor.

O coreto foi construído para comemorar o centenário da independência. Sua arquitetura é uma obra de arte, especialmente, pelos seus detalhes neoclássicos. Eu gostava de passar o dedo sobre os relevos, pensar sobre o desenho de suas colunas suntuosas e todo o trabalho do artista que o planejou. Contam que ele não foi apenas idealizado como um capricho do intendente da época, para enfeitar a praça, ele serviria de estrutura para uma grande caixa de água com objetivo de abastecer a cidade. Certamente o poço, logo ali entre a igreja e ele, já não comportava fornecer água à população que crescia. Sem contar, que o poço também concorria com o coreto como ponto de encontro.

Para Lili, o coreto era referência de tudo que acontecia entorno da vida dela. A posição central do coreto, de onde partiam todos os acessos calçados da praça em direção às ruas, eram raios que direcionavam a lugares importantes da cidade: a prefeitura, o cinema, o correio, o clube, a igreja, a rodoviária, o hotel e a sorveteria do seu Nelson. E a esquina da banca de revista, atraindo os compradores de cigarro, revistas, gibis e jornal. O coreto irradiava, desde sua imponência e beleza, tudo que movimentava a vida da cidade.

Duas cores eram combinadas a cada nova pintura do coreto. Um tom claro para o fundo da construção e uma cor de destaque, mais escura e vibrante, para os detalhes. Ele foi bege e marrom, ocre e azul, salmão e branco, amarelo claro e azul céu, creme e ocre. Nem sempre as cores caiam no gosto do povo. Logo se formava uma discussão nos grupos que se reuniam na esquina da banca e na do clube para debater sobre as cores escolhidas. Mas a curiosidade de Lili era sobre as cores originais, o coreto era como uma grande escultura, nada se comparava na cidade à riqueza da sua construção. Ele marcava aquela pequena cidade no mundo. Um cenário perfeito para muitos encontros românticos, namoros escondidos e palco de noitadas sem fim depois da saída dos bailes do Clube Vicentino. Em dia de céu azul e muito sol, ele se iluminava ainda mais com as flores exuberantes dos canteiros triangulares, que completavam o círculo calçado de pedras em sua volta.  

Quando sai do campo, o coreto era meu ponto de referência na cidade, tudo partia ou chegava nele. Lá estava ele, na sua beleza clássica me desafiando. Ele nos dava orgulho de viver onde vivíamos. Contemplá-lo me invadia de alegria, me ensinava a beleza, a mesma de quando eu podia ver o sol se por atrás daquela linha de cinamomos que atravessava um parte do campo das vacas mansas. As belezas tocavam Lili e provocavam sensações que o tempo ia produzindo nela enquanto crescia, e a criança dava lugar à adolescente. 


Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...