quarta-feira, 17 de novembro de 2021

A mãe e o afeto pela comida

Lili levantava a mão de dentro da grande bacia de alumínio com alças arredondadas e via, escorrendo lentamente entre os seus dedos, o preparo para massa de pão. Era a pressa de comer a massa crua do pão que fazia com que eu enfiasse os dedos com muita vontade sob a toalha que cobria a bacia, na esperança de encontrar na verdade um pedaço da massa pronta, era o desejo de comer aquela massa adocicada e gostosa antes mesmo dela estar assada que me movia a enfiar a mão dentro da bacia sorrateiramente. Eu estava sempre em volta da mesa onde minha mãe e a vó Cinda preparavam as fornadas de pão. Desde que me reconheci como pessoa neste vasto mundo via imagens recorrentes da minha mãe fazendo pão. Aliás, fazendo comida e transformando-a constantemente em gesto de cuidado e afeto.

Quando éramos pequenos, a mãe colocava na sopa do inverno os pedaços de galinha preferidos de cada um de nós e, ao servi-la, já destinava a parte de cada um, assim evitava brigas na hora da comida. Meu pai aproveitava e nos distraía com o pedaço do jogador, fazendo o jogo da queda de braço para ver quem levava o lado maior e vencia a disputa. Ele sempre ficava com o pescoço da galinha, pedaço que dispensávamos solenemente. À medida que crescíamos, os pedaços da galinha assada ou com molho eram feitos e oferecidos conforme a preferência de cada um. Ela também separava as sobras duras de queijo, já envelhecidas, para que a gente pudesse assar presas em um garfo, colocávamos na boca do fogão à lenha sobre as brasas flamejantes. Depois de prontas, ao comer, subia na boca aquele sabor inigualável do queijo assado e amolecido, rolado no açúcar cristal. Um lanche de luxo que fazíamos em dia de chuva, assim como as gemadas e as limonadas durante as tardes de inverno. Cada comida era um aquecer a alma e o corpo. E minha mãe sabia muito bem sobre esse prazer da comida, de inventar quitutes diferentes para nos oferecer a comida do dia com o que tínhamos à mão, alimentos produzidos em casa, riquezas gastronômicas simples e nutritivas. Assim, ela fazia do muito pouco um banquete de sabores. 

Ela nos servia a comida e saía para o pátio apressada, arrastando os tamancos, era a hora de dar milho para as galinhas, pois criá-las era sua atividade de maior dedicação, mas também a de preparar uma mamadeira com leite morno para alimentar algum cordeiro ou terneiro guacho que ela criava de igual modo, com todo o esmero. Em seguida, ela voltava, sentava-se na caixa da lenha com um prato de comida na mão e ali ela fazia as suas refeições, já de olho na pilha de louça que teria de lavar. Era corriqueiro ter mais gente para comer na nossa casa, algum ajudante do meu pai, um tio ou uma tia, irmãos do meu pai, que chegavam a passar temporadas conosco. 

Tio nito chegava normalmente na metade da manhã, tomava chimarrão com meu pai e fazia questão de aceitar o convite para o almoço, especialmente, quando minha mãe fazia carne de ovelha frita na panela de ferro. Ele se deliciava, e se fosse domingo ainda tinha a sobremesa, e ele se lambuzava comendo os doces feitos por ela. Lá em casa, as visitas sempre saiam com alguma caixa de ovos, uma linguiça, umas batatas doces, um saquinho com roscas de mandioca ou pãezinhos recém feitos, uma sacola de bergamotas ou laranja. A gentileza no mundo do campo era regada por alimentos e mantinha um sistema de trocas, sobretudo, com a vizinhança. E minha mãe seguia a cartilha da minha vó, mantendo essa tradição.

Havia sobremesas somente nos domingos e em datas festivas como o Natal e a Páscoa. Ela revezava a escolha do cardápio, usando sua capacidade inventiva de aproveitamentos, alternava sagu com creme, e na falta do vinho, usava leite ou suco de laranja, ou então fazia arroz de leite e no domingo seguinte ovos nevados e pudim, sempre tínhamos leite e ovos em casa, a base das suas receitas. Aprendeu muitas delas com minha vó e as aperfeiçoava, e tal como a vó Cinda fazia, tinha doces e bolos para oferecer, na expectativa da chegada de visitas inesperadas, em geral, de parentes e vizinhos. Nos domingos, o Vergilino aparecia na janela da cozinha, vinha buscar o seu arroz de leite, o doce preferido dele. Minha mãe tinha sempre a sobremesa dele reservada, servida em um prato bem generoso.

Minha mãe administrava o tempo com tantos afazeres que a vida no campo havia imposto a ela, com dificuldades e sacríficos, por isso estipulou horários para tudo. Metódica, encontrou uma forma de controlar a realização das tarefas diárias e, nos pequenos intervalos, podia fazer pratos que dava-nos a sensação da fartura e nos ensinava a apreciar sabores novos. Tudo que sobrava de comida era transformado em um prato novo, não se desperdiçava alimentos: da nata se fazia manteiga, do leite azedo bolinhos de coalhada, das batatas murchas e muito maduras um doce para passar no pão, das cascas e caroços das frutas uma geleia, das uvas um suco, das sobras de churrasco um carreteiro ou uma fritada com ovo. Ela sofisticava uma pedaço de carne de ovelha em bifes acebolados e das sobras da galinha assada montava um arroz em camadas que ia ao forno para ficar mais crocante. Dos miúdos da galinha um molho saboroso para o macarrão e transformava em iguaria de luxo um mondongo, servido na forma de risoto, inigualável. E, no fim do dia, restava um tempinho para enfiar cactus nos troncos do cinamomos ou plantar, em uma panela velha, uma muda de flor que havia ganhado de alguma amiga ou comadre.

Nos seis anos de Lili fizeram uma festinha, com a presença das tias e avós. Aniversários no campo eram fartos de salgados e doces feitos em casa. A torta doce foi feita pelas irmãs do meu pai. Minha mãe aproveitou o calor do forno no dia do pão e fez merengues, roscas de nata e broas de polvilho. O docinho da festa, o que sabia fazer, foram as chamadas brasileirinhas, umas torres de coco com gemas que eram levemente coradas no forno do fogão à lenha. A bebida que acompanhava tudo, chá preto ou limonada. A abundância de sabores vinha da fabricação caseira e da mão dela para culinária. 

Quando fomos morar na cidade, a rotina ficou mais leve para ela, então incluiu no seu modo de viver, visitas às amigas, comadres, parentes. Toda semana ela escolhia uma pessoa para visitar, sem deixar de ver a tia Maria todo dia, para verem juntas a novela da seis da tarde. Assistir às novelas voltou a fazer parte da vida dela novamente, pois na juventude tinha também seus horários de ouvir as novelas de rádio. Embora não aparentasse, minha mãe se importava excessivamente com os outros, porque tinha nela um jeito generoso de ser amiga e solidária.

Lili se defrontava com as reclamações da mãe porque ela se apegava muito ao pai, não se dava conta do afeto nos gestos que a mãe se esmerava em demonstrar no cuidado com a roupa, a vida escolar e o alimento, que ela nos dava sustentação para a vida. Talvez porque Lili passou parte do tempo, nos seus primeiros anos de vida, sendo regada de mimos pela vó Cinda. Minha mãe não era uma mulher fácil de lidar, nem de enganar ou manipular. Ela era astuta, briguenta quando necessário, agradável quando gostava de algo ou alguém, pois facilmente exercia sua simpatia quando confiava e se agradava da pessoa. Embora vivendo a dura rotina da vida rural, mantinha-se informada, ouvia rádio, tinha fortes posições políticas. Uma das novas atividades dela quando passou a viver durante a semana na casa da cidade, era frequentar comícios no período das eleições municipais, movida pela oportunidade de participar da campanha e da escolha de prefeitos e vereadores, depois de um longo período em que tivemos interventores nesta função. O retrato do Getúlio Vargas na parede da sala lá na nossa casa no campo era a referência da sua veia política.

Lili sabia que ela não era uma mulher que se dobrava no primeiro argumento, tinha opiniões fortes e muitas convicções, era teimosa e intensa ao mesmo tempo. Mas havia algo nela que a fazia admirável, porque na intensidade do seu gênio sempre havia uma ruptura que vinha pelo sabor de uma comida, o cheiro de um pão novo em formato de lagarto ou pombinha, um caldo ralo de doce de pera ou pêssego que nos confortava, alimentava nosso mundo de afeto, tinha lá sua forma singular e única de expressar amor.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Tia Betty e todos os cuidados que nos faziam falta

No quarto da minha mãe havia uma cômoda, uma banqueta e um espelho na parede, entre janela do lado esquerdo e a grande janela da frente, que raramente era aberta. Sobre a esta cômoda, minha mãe guardava uma caixa com material de costura e uma boneca minha, um brinquedo de borracha bem macio, fácil de apertar, de quando eu era bebê, que enfeitava a cômoda sobre um guardanapo de crochê verde claro. Ela deixava a boneca sobre o móvel para evitar que eu a levasse para brincar nos arredores da casa. Eu adorava brincar debaixo da sombra do cinamomos, mas deixava os brinquedos espalhados por onde andava. Eu perdi ali, no meio da terra solta, os bonecos de cerâmica de quando ela era criança, e ela ficou muito sentida. Muitas vezes minhas bonecas amanheciam no pátio com pés e mãos mascados pelos porcos. E eu tinha poucas bonecas, por isso chorava muito a cada perda.

Aquela bebê de plástico mole, abraçada em um ursinho, foi meu primeiro brinquedo, presente da tia Betty. Desde então ela parecia adivinhar o que eu desejava ganhar: uma caixa de giz de cera, uma caixa de lápis de doze cores, um caderno de desenho com uma capa dura alaranjada e minha única boneca negra. Tia Betty era assim, captava as vontades, os desejos e os interesses, porque ela olhava sempre para dentro da gente. 

Lili sabia desta escuta. Toda vez que ela vinha visitar a vó Cinda, trazia novidades, que não eram objetos, o que ela trazia era modos novos de fazer algo: uma costura, um bordado, uma receita, um remédio, nesse caso advindos dos saberes dela como farmacêutica. Ela achava saída para tantas situações. Eu tinha um encantamento pelo modo como ela silenciosamente prestava atenção sobre as pessoas e dava-lhes um tempo de escuta e cuidados.

Lili ficava à esperava do que ela trazia de novidade. Mal ela chegava, minha mãe se preparava para anotar alguma receita nova, pedia algum auxílio pra ela sobre como tratar algum incômodo físico, se aconselhava com a irmã, e absorvia todos os conselhos que podia. Tia Betty aprendia e ensinava, multiplicava seus conhecimentos. Eu me agarrava feliz nas roupas das minhas primas que ela repassava para mim, porque todas tinham sempre muitas delicadezas nas costuras, nas combinações e nos bordados. Ela fazia as roupas das filhas, copiava os modelos das vitrines das lojas. Ela era assim, criativa, original e com muito bom gosto. A sua elegância estava no jeito de ser, na fortaleza que brotava da sua personalidade, embora se vestisse de modo discreto, com saias bem alinhadas, camisas e blusas elegantes, tinha um ar de sofisticação genuíno. Eu admirava com ternura seu modo de demonstrar cuidado e preocupação com minha vó. Ela sabia das dores do corpo e da alma da vó Cinda. Quando jovem, em diversas ocasiões, ela enfrentou meu avô por suas seguidas intempéries com minha vó. Ela herdou a força emocional da minha vó.   

Tia Betty saiu muito cedo de casa. Rumou de trem para Ijuí para morar com tia Cecília e tio Bento, e lá frequentar a escola. Anos depois, mudou-se com eles para Santa Maria. Logo que terminou o chamado clássico no Colégio SantAnna, quis ser engenheira, mas naquela época não havia condições de se mudar para a capital, onde havia a faculdade de engenharia, além disso meu avô já tinha de ajudar mais duas das suas irmãs: tia Nira e tia Jane, que também estudavam no mesmo colégio e moravam na casa da tia Cecília. Não desistiu de fazer um curso superior e foi ser uma das alunas das primeiras turmas curso de Farmácia. Certamente foi a tia que menos morou na casa da fazenda, gostava de estudar, de ler e de se aprimorar. Ela era maior que aquele mundo do campo. Encheu meu avô e minha vó de orgulho ao ser a primeira da família a ter curso superior e o fez com coragem e generosidade.

Quando já morávamos na cidade, eu sabia que ela estava na Farmácia da tia Ivoloy, porque meu primo Titão, que era meu colega de escola, já havia me anunciado. Ela era a farmacêutica responsável, por um tempo ela e o marido, tio Cláudio, foram sócios da Farmácia Confiança. O nome do estabelecimento parecia ser a tradução do que ela nos passava: confiança. Eu entrava bem devagar pela portinha do balcão de atendimento da farmácia, à esquerda de quem entrava no estabelecimento, quase no cantinho onde ficava máquina de costura da tia Ivoloy e dali eu espiava a tia Betty concentrada no meio da pilha de receitas e de um grande caderno onde ela anotava tudo daquelas receitas especiais, que ficavam retidas na farmácia. Ela percebia minha presença, dava um sorriso afetuoso, perguntava pela escola e logo pela minha mãe. 

Naquele lugar, na mesa que meu tio Alfredo ocupava para seus afazeres de escritório, ela assumia um lugar de poder. Eu, ainda no curso da minha vida escolar, reverenciava aquela cena com admiração. Eu sentia uma vinculação imensa com ela, e pressentia algo grandioso no nosso caminho, um anúncio de que, em algum ponto da trajetória da Lili, haveria um tempo reservado para nós, para um encontro de acolhida e amorosidade, logo ali mais adiante.  


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