Quando éramos pequenos, a mãe colocava na sopa do inverno os pedaços de galinha preferidos de cada um de nós e, ao servi-la, já destinava a parte de cada um, assim evitava brigas na hora da comida. Meu pai aproveitava e nos distraía com o pedaço do jogador, fazendo o jogo da queda de braço para ver quem levava o lado maior e vencia a disputa. Ele sempre ficava com o pescoço da galinha, pedaço que dispensávamos solenemente. À medida que crescíamos, os pedaços da galinha assada ou com molho eram feitos e oferecidos conforme a preferência de cada um. Ela também separava as sobras duras de queijo, já envelhecidas, para que a gente pudesse assar presas em um garfo, colocávamos na boca do fogão à lenha sobre as brasas flamejantes. Depois de prontas, ao comer, subia na boca aquele sabor inigualável do queijo assado e amolecido, rolado no açúcar cristal. Um lanche de luxo que fazíamos em dia de chuva, assim como as gemadas e as limonadas durante as tardes de inverno. Cada comida era um aquecer a alma e o corpo. E minha mãe sabia muito bem sobre esse prazer da comida, de inventar quitutes diferentes para nos oferecer a comida do dia com o que tínhamos à mão, alimentos produzidos em casa, riquezas gastronômicas simples e nutritivas. Assim, ela fazia do muito pouco um banquete de sabores.
Ela nos servia a comida e saía para o pátio apressada, arrastando os tamancos, era a hora de dar milho para as galinhas, pois criá-las era sua atividade de maior dedicação, mas também a de preparar uma mamadeira com leite morno para alimentar algum cordeiro ou terneiro guacho que ela criava de igual modo, com todo o esmero. Em seguida, ela voltava, sentava-se na caixa da lenha com um prato de comida na mão e ali ela fazia as suas refeições, já de olho na pilha de louça que teria de lavar. Era corriqueiro ter mais gente para comer na nossa casa, algum ajudante do meu pai, um tio ou uma tia, irmãos do meu pai, que chegavam a passar temporadas conosco.
Tio nito chegava normalmente na metade da manhã, tomava chimarrão com meu pai e fazia questão de aceitar o convite para o almoço, especialmente, quando minha mãe fazia carne de ovelha frita na panela de ferro. Ele se deliciava, e se fosse domingo ainda tinha a sobremesa, e ele se lambuzava comendo os doces feitos por ela. Lá em casa, as visitas sempre saiam com alguma caixa de ovos, uma linguiça, umas batatas doces, um saquinho com roscas de mandioca ou pãezinhos recém feitos, uma sacola de bergamotas ou laranja. A gentileza no mundo do campo era regada por alimentos e mantinha um sistema de trocas, sobretudo, com a vizinhança. E minha mãe seguia a cartilha da minha vó, mantendo essa tradição.
Havia sobremesas somente nos domingos e em datas festivas como o Natal e a Páscoa. Ela revezava a escolha do cardápio, usando sua capacidade inventiva de aproveitamentos, alternava sagu com creme, e na falta do vinho, usava leite ou suco de laranja, ou então fazia arroz de leite e no domingo seguinte ovos nevados e pudim, sempre tínhamos leite e ovos em casa, a base das suas receitas. Aprendeu muitas delas com minha vó e as aperfeiçoava, e tal como a vó Cinda fazia, tinha doces e bolos para oferecer, na expectativa da chegada de visitas inesperadas, em geral, de parentes e vizinhos. Nos domingos, o Vergilino aparecia na janela da cozinha, vinha buscar o seu arroz de leite, o doce preferido dele. Minha mãe tinha sempre a sobremesa dele reservada, servida em um prato bem generoso.
Minha mãe administrava o tempo com tantos afazeres que a vida no campo havia imposto a ela, com dificuldades e sacríficos, por isso estipulou horários para tudo. Metódica, encontrou uma forma de controlar a realização das tarefas diárias e, nos pequenos intervalos, podia fazer pratos que dava-nos a sensação da fartura e nos ensinava a apreciar sabores novos. Tudo que sobrava de comida era transformado em um prato novo, não se desperdiçava alimentos: da nata se fazia manteiga, do leite azedo bolinhos de coalhada, das batatas murchas e muito maduras um doce para passar no pão, das cascas e caroços das frutas uma geleia, das uvas um suco, das sobras de churrasco um carreteiro ou uma fritada com ovo. Ela sofisticava uma pedaço de carne de ovelha em bifes acebolados e das sobras da galinha assada montava um arroz em camadas que ia ao forno para ficar mais crocante. Dos miúdos da galinha um molho saboroso para o macarrão e transformava em iguaria de luxo um mondongo, servido na forma de risoto, inigualável. E, no fim do dia, restava um tempinho para enfiar cactus nos troncos do cinamomos ou plantar, em uma panela velha, uma muda de flor que havia ganhado de alguma amiga ou comadre.
Nos seis anos de Lili fizeram uma festinha, com a presença das tias e avós. Aniversários no campo eram fartos de salgados e doces feitos em casa. A torta doce foi feita pelas irmãs do meu pai. Minha mãe aproveitou o calor do forno no dia do pão e fez merengues, roscas de nata e broas de polvilho. O docinho da festa, o que sabia fazer, foram as chamadas brasileirinhas, umas torres de coco com gemas que eram levemente coradas no forno do fogão à lenha. A bebida que acompanhava tudo, chá preto ou limonada. A abundância de sabores vinha da fabricação caseira e da mão dela para culinária.
Quando fomos morar na cidade, a rotina ficou mais leve para ela, então incluiu no seu modo de viver, visitas às amigas, comadres, parentes. Toda semana ela escolhia uma pessoa para visitar, sem deixar de ver a tia Maria todo dia, para verem juntas a novela da seis da tarde. Assistir às novelas voltou a fazer parte da vida dela novamente, pois na juventude tinha também seus horários de ouvir as novelas de rádio. Embora não aparentasse, minha mãe se importava excessivamente com os outros, porque tinha nela um jeito generoso de ser amiga e solidária.
Lili se defrontava com as reclamações da mãe porque ela se apegava muito ao pai, não se dava conta do afeto nos gestos que a mãe se esmerava em demonstrar no cuidado com a roupa, a vida escolar e o alimento, que ela nos dava sustentação para a vida. Talvez porque Lili passou parte do tempo, nos seus primeiros anos de vida, sendo regada de mimos pela vó Cinda. Minha mãe não era uma mulher fácil de lidar, nem de enganar ou manipular. Ela era astuta, briguenta quando necessário, agradável quando gostava de algo ou alguém, pois facilmente exercia sua simpatia quando confiava e se agradava da pessoa. Embora vivendo a dura rotina da vida rural, mantinha-se informada, ouvia rádio, tinha fortes posições políticas. Uma das novas atividades dela quando passou a viver durante a semana na casa da cidade, era frequentar comícios no período das eleições municipais, movida pela oportunidade de participar da campanha e da escolha de prefeitos e vereadores, depois de um longo período em que tivemos interventores nesta função. O retrato do Getúlio Vargas na parede da sala lá na nossa casa no campo era a referência da sua veia política.
Lili sabia que ela não era uma mulher que se dobrava no primeiro argumento, tinha opiniões fortes e muitas convicções, era teimosa e intensa ao mesmo tempo. Mas havia algo nela que a fazia admirável, porque na intensidade do seu gênio sempre havia uma ruptura que vinha pelo sabor de uma comida, o cheiro de um pão novo em formato de lagarto ou pombinha, um caldo ralo de doce de pera ou pêssego que nos confortava, alimentava nosso mundo de afeto, tinha lá sua forma singular e única de expressar amor.