terça-feira, 2 de novembro de 2021

Tia Betty e todos os cuidados que nos faziam falta

No quarto da minha mãe havia uma cômoda, uma banqueta e um espelho na parede, entre janela do lado esquerdo e a grande janela da frente, que raramente era aberta. Sobre a esta cômoda, minha mãe guardava uma caixa com material de costura e uma boneca minha, um brinquedo de borracha bem macio, fácil de apertar, de quando eu era bebê, que enfeitava a cômoda sobre um guardanapo de crochê verde claro. Ela deixava a boneca sobre o móvel para evitar que eu a levasse para brincar nos arredores da casa. Eu adorava brincar debaixo da sombra do cinamomos, mas deixava os brinquedos espalhados por onde andava. Eu perdi ali, no meio da terra solta, os bonecos de cerâmica de quando ela era criança, e ela ficou muito sentida. Muitas vezes minhas bonecas amanheciam no pátio com pés e mãos mascados pelos porcos. E eu tinha poucas bonecas, por isso chorava muito a cada perda.

Aquela bebê de plástico mole, abraçada em um ursinho, foi meu primeiro brinquedo, presente da tia Betty. Desde então ela parecia adivinhar o que eu desejava ganhar: uma caixa de giz de cera, uma caixa de lápis de doze cores, um caderno de desenho com uma capa dura alaranjada e minha única boneca negra. Tia Betty era assim, captava as vontades, os desejos e os interesses, porque ela olhava sempre para dentro da gente. 

Lili sabia desta escuta. Toda vez que ela vinha visitar a vó Cinda, trazia novidades, que não eram objetos, o que ela trazia era modos novos de fazer algo: uma costura, um bordado, uma receita, um remédio, nesse caso advindos dos saberes dela como farmacêutica. Ela achava saída para tantas situações. Eu tinha um encantamento pelo modo como ela silenciosamente prestava atenção sobre as pessoas e dava-lhes um tempo de escuta e cuidados.

Lili ficava à esperava do que ela trazia de novidade. Mal ela chegava, minha mãe se preparava para anotar alguma receita nova, pedia algum auxílio pra ela sobre como tratar algum incômodo físico, se aconselhava com a irmã, e absorvia todos os conselhos que podia. Tia Betty aprendia e ensinava, multiplicava seus conhecimentos. Eu me agarrava feliz nas roupas das minhas primas que ela repassava para mim, porque todas tinham sempre muitas delicadezas nas costuras, nas combinações e nos bordados. Ela fazia as roupas das filhas, copiava os modelos das vitrines das lojas. Ela era assim, criativa, original e com muito bom gosto. A sua elegância estava no jeito de ser, na fortaleza que brotava da sua personalidade, embora se vestisse de modo discreto, com saias bem alinhadas, camisas e blusas elegantes, tinha um ar de sofisticação genuíno. Eu admirava com ternura seu modo de demonstrar cuidado e preocupação com minha vó. Ela sabia das dores do corpo e da alma da vó Cinda. Quando jovem, em diversas ocasiões, ela enfrentou meu avô por suas seguidas intempéries com minha vó. Ela herdou a força emocional da minha vó.   

Tia Betty saiu muito cedo de casa. Rumou de trem para Ijuí para morar com tia Cecília e tio Bento, e lá frequentar a escola. Anos depois, mudou-se com eles para Santa Maria. Logo que terminou o chamado clássico no Colégio SantAnna, quis ser engenheira, mas naquela época não havia condições de se mudar para a capital, onde havia a faculdade de engenharia, além disso meu avô já tinha de ajudar mais duas das suas irmãs: tia Nira e tia Jane, que também estudavam no mesmo colégio e moravam na casa da tia Cecília. Não desistiu de fazer um curso superior e foi ser uma das alunas das primeiras turmas curso de Farmácia. Certamente foi a tia que menos morou na casa da fazenda, gostava de estudar, de ler e de se aprimorar. Ela era maior que aquele mundo do campo. Encheu meu avô e minha vó de orgulho ao ser a primeira da família a ter curso superior e o fez com coragem e generosidade.

Quando já morávamos na cidade, eu sabia que ela estava na Farmácia da tia Ivoloy, porque meu primo Titão, que era meu colega de escola, já havia me anunciado. Ela era a farmacêutica responsável, por um tempo ela e o marido, tio Cláudio, foram sócios da Farmácia Confiança. O nome do estabelecimento parecia ser a tradução do que ela nos passava: confiança. Eu entrava bem devagar pela portinha do balcão de atendimento da farmácia, à esquerda de quem entrava no estabelecimento, quase no cantinho onde ficava máquina de costura da tia Ivoloy e dali eu espiava a tia Betty concentrada no meio da pilha de receitas e de um grande caderno onde ela anotava tudo daquelas receitas especiais, que ficavam retidas na farmácia. Ela percebia minha presença, dava um sorriso afetuoso, perguntava pela escola e logo pela minha mãe. 

Naquele lugar, na mesa que meu tio Alfredo ocupava para seus afazeres de escritório, ela assumia um lugar de poder. Eu, ainda no curso da minha vida escolar, reverenciava aquela cena com admiração. Eu sentia uma vinculação imensa com ela, e pressentia algo grandioso no nosso caminho, um anúncio de que, em algum ponto da trajetória da Lili, haveria um tempo reservado para nós, para um encontro de acolhida e amorosidade, logo ali mais adiante.  


4 comentários:

  1. Mais um belo texto do lindo livro que precisa sair!

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  2. Lindo texto, Eliana! A simplicidade dos temas confere beleza às descrições.

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  3. Belíssimo texto! Indescritível sensibilidade nas palavras...

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  4. Que texto agradável de se ler e cheio de muita sensibilidade ! Acho que você tem muito da tia Betty! Parabéns, Eliana!

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