sábado, 27 de fevereiro de 2021

O tapete de couro de vaca

Deitada sobre o tapete de couro de vaca, estendido no meio da sala da casa da fazenda, Lili  imaginava mundos coloridos olhando para o teto. Através daquele forro de tábuas largas, pintado de uma cor cinza claro, contrastando com o azul céu das paredes, eu passava uma hora do dia no silêncio respeitoso daquela peça da casa. Ao olhar para as paredes, Lili ficava sempre desconfiada da seriedade dos antepassados que figuravam nos retratos pendurados. Eram quadros grandes, adornados com molduras largas e com detalhes em dourado, que ficaram ainda mais resplandecentes com o restauro feito pela tia Nira durante a reforma da casa. 
Sobre o chão de tábuas sempre lustradas no capricho havia um tapete comprido, uma passadeira feita de um tipo de ráfia amarronzada, com barras laterais vermelhas, estendido desde entrada da porta da frente até a porta de acesso para o longo corredor que dava para as demais peças da casa. Embaixo da mesa, estava o item obrigatório da decoração rural gaúcha, o tapete feito do couro de vaca. Este era um tapete de uma vaca brasina, tinha discretas listras acinzentadas sobre toda a extensão do couro amarelado, cor que dominava todo o fundo do tapete. Sobre aquele tapete, Lili fazia os primeiros esboços no caderno de desenho com lápis giz de cera, ambos presentes de Natal da tia Betty. Meu primeiro desenho no silêncio daquela sala foi dedicado a representar a tia Jane e seu noivo. Eles costumavam namorar na sala, lugar tradicionalmente destinado às visitas importantes e para receber os noivos e os namorados das mulheres solteiras da casa. 

Na parede do fundo da sala, a bela cristaleira era o móvel mais destacado do ambiente, nela minha vó guardava as louças da família, algumas já estavam na casa antes da minha vó Cinda chegar à fazenda, quando casou com vó Alberto, pois  já eram do casamento da nossa bisavó Lídia. Dentro de uma das xícaras de porcelana, sabíamos que estava escondida a famosa lista da Vó Cinda, registrando quem herdaria cada uma daquelas louças delicadas, de tanto valor afetivo, guardadas na última prateleira da parte superior do móvel. A cristaleira era de uma madeira de cor muito escura, quase preta, e também passou por uma limpeza e restauro durante a reforma da casa no final dos anos 60. Durante o verão, a gurizada de férias na fazenda ajudou na limpeza, pintura e revestimento dos móveis da casa, comandada pelo trio de tias solteiras que trabalhavam com afinco na empreitada da reforma e da restauração da casa. A tal cristaleira deu muito trabalho na limpeza, pois tivemos de passar o dia lixando o móvel. Várias mãos se dedicaram à tarefa, os corpos cheios de um pó escuro e suados se divertiam e ansiavam o esperado prêmio pela execução do trabalho: um banho nas águas refrescantes do Passo dos Vidais. Era a recompensa que mais desejávamos no calor escaldante daquele mês de janeiro. 
A casa em que meus pais foram morar, quando eu já tinha uns dois anos, era pequena se comparada à casa da fazenda. Ela tinha uma sala de estar com um jogo de sofás, uma mesa de centro, uma porta sempre fechada na parede que separava a peça do quarto dos meus pais. Na parede um quadro grande, com molduras largas, e a figura do retrato era um homem sério , com óculos quase na ponta do nariz,  tinha pose de gente importante, e era: lá estava Getúlio Vargas em lugar de destaque na parede da  nossa sala, coisas da minha mãe. Havia também uma porta principal muito alta, que abria em duas folhas, de onde se avistava uma pequena porteira de entrada no pátio e um cinamomo onde meu pai deixava seu cavalo descansar. Quase nunca aquela porta se abria, só quando minha mãe fazia faxina. A metade da porta para cima tinha vidros, era como se fosse mais uma janela e quando ela se abria dava para uma pequena área, fechada por muretas na parte da frente e em uma das laterais. Elas eram feitas com estruturas de tijolos que deixavam vazadas pequenas aberturas. Na nossa sala também havia um tapete de couro de vaca, mas a estampa era a do couro de uma vaca malhada, preto e branco. Minha mãe tirava-o para fora para bater, varrer e tirar o pó, mas ele pouco parecia sujar, pois a sala era uma peça sem uso, eventualmente se arredava a mesa de centro e se arrumava, sobre o tapete de couro da vaca malhada, uma boa cama para uma visita. 
O tapete de couro de vaca era uma escolha importante, muitas vezes era de um animal de grande apego por parte do proprietário. Este era precisamente o caso da minha mãe que sempre tinha seus animais identificados, com filiação e nome. Ela certamente escolheu fazer o tapete de uma vaca muito mimosa. Antes de mandar curtir o couro nos curtumes de Nova Esperança, o couro era estaqueado em uma armação de madeira, para secar e esticar ao ponto de ganhar o contorno preciso, que lembrava então a imagem de uma vaca.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Sopa de pera


aroma de cravo e canela invadia os cômodos da casa. Logo que o caldo levantava a fervura na panela, exalava então o cheiro inigualável da sopa de pera. Em meados de dezembro Lili se reunia à mãe e aos irmãos para colherem as primeiras peras maduras, colhidas nas pereiras que se enfileiravam no arvoredo entre a linha das laranjeiras e dos pessegueiros. Na linha das pereiras, também havia dois pés de cáqui, com frutas de polpa doce e alaranjada. As pereiras cruzavam sua linha de pés até altura do galinheiro, ali se localizavam quatro pés de peras duras, que amadureciam no final do verão. Os demais pés eram de peras d'água, macias e suculentas,  e era com elas que se fazia o caldo com pedaços da fruta e especiarias, um caldo doce e perfumado que também chamávamos de sopa. Pouco antes da temporada das peras maduras, fazia-se a sopa com os primeiros pêssegos que amadureciam, no mesmo processo, fatias da fruta cortadas em forma de lascas, cozidas na água com açúcar, cravo e canela. A sopa de pera era prenúncio do verão com seus banhos de açude, tardes de mormaço passadas debaixo das sombras dos cinamomos comendo melancia e voltas a cavalo no final da tarde pelas redondezas da casa. 

Quando dava no jeito e meu pai pacientemente nos ajudava encilhar o cavalo, podíamos dar umas voltas. Lili se enchia de alegria porque com as primas passando férias na fazenda, podia andar a cavalo, e isso seria ainda mais divertido, pois as meninas quase sempre andavam na garupa umas das outras. De longe se ouviam os gritos de medo e as gargalhadas das gurias comandando o pitiço ou a égua Ruana, principalmente, quando arriscávamos uma galopada pelo vasto gramado em frente à casa da fazenda. 

No verão, antes da chegada das primas, os finais de tarde eram dias de Lili  ficar observando as ovelhas saindo apressadas e encabuladas do cercado onde eram capturadas para tosquia, naquela aparência de que pareciam se sentir despidas. Eu sentia uma enorme compaixão daqueles constrangimentos, demonstrado pela cabeça baixa das ovelhas cada vez que se livravam das mãos do tosquiador. Era final do mês de novembro, as peras estavam começando a amadurecer, no ponto para iniciar a temporada das sopas de pera da minha mãe.

Outras tardes, aguardávamos a chuva, olhando como tempo se armava para os lados dos cerros de Jaguari. Calculávamos a aproximação da pancada de chuva, sabíamos por experiência que, ao chegar na curva da antiga estrada, na parte mais baixa da ladeira, era hora de corrermos e garantirmos lugar debaixo das calhas da casa para um farto banho de chuva. As águas que desciam pelas calhas eram cachoeiras imaginárias, a brincadeira virava  um jogo de empurra na disputa para caber mais de um debaixo daquela água que jorrava torrencialmente e com força total. 

À noite, depois de um bom banho e de uma saborosa janta com direito à sopa de milho verde da vó Cinda, a sopa de pera adoçava e confortava mais um dia de verão bem vivido.

   

Carapé

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