sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Bordados da vida

A arte de bordar entrou na vida de Lili pela primeira vez através do álbum com riscos de bordados da sua mãe: arranjos de flores, guirlandas, cestas de frutas, grinaldas de flores do campo, além de desenhos de linhas sinuosas arrematadas com arabescos delicados que serviam para decorar as barras dos lençóis, inclusive a do lençol preferido de Lili, de que ela tanto gostava. 

Nas tardes chuvosas eu me distraia remexendo nas caixas onde vinham as camisas que minha mãe comprava para meu pai, ela reaproveitava a embalagem para guardar sua coleção de modelos de desenhos para bordar, riscos feitos à lápis sobre papel de seda. Era um mundo de delicadezas, caixas repletas de linhas coloridas, reunindo uma gama de cores e matizes impressionantes, com meadas de linhas de tipos diferentes, um cartão na forma de cesta com agulhas de várias espessuras, pedaços de tecidos com agulhas em uso presas, retalhos coloridos, pedaços de rendas e gregas, carretéis usados com sobras de fios, tudo para ser utilizado em algum bordado no futuro. As meadas mais longas e volumosas eram das famosas linhas da ilha da Madeira. Lili pensava intrigada que lugar seria este? quão distante seria esta ilha? pois nem o mar ela conhecia. Havia nessas linhas um requinte e nas outras, as mais sedosas, um brilho intenso que dava fineza a qualquer bordado, fosse um babador para bebê, um conjunto de quarto, um colcha, uma barra de lençol.

Minha mãe, como todas as mulheres da família, aproveitava quase toda a sobra, como as caixas de madeira ou as de papelão, ou papéis sedosos das embalagens de presentes que recebia da madrinha dela ou das irmãs. No guarda-roupa do quarto do casal, na parte destinada ao meu pai, tinha um local para pendurar os cabides com camisas e casacos e, logo abaixo, havia uma prateleira onde minha mãe guardava uma caixa de madeira. Eu mexia muito nos roupeiros, descobri dentro dessa caixa uma grande quantidade de recortes de jornal com poesias. Eram lembranças da vida de solteira da minha mãe, quando ela podia se dar ao luxo de se deleitar com aquelas poesias que havia selecionado ao longo do tempo, retirou-as das páginas de jornais da época, quando alguém os trazia para a fazenda. A caixa era um baú de recordações. Os tantos afazeres domésticos, os filhos pequenos e mais a rotina dura da vida no campo, tudo tomava muito do tempo dela e o interesse pela leitura das poesias foi sendo deixado pra trás. A coleção de recortes ficou guardada por anos dentro daquela caixa de madeira, escondida entre algumas mangas de camisa do meu pai. 

No roupeiro dela, na prateleira mais alta, estavam guardados seus objetos pessoais como uma caixa com lenços bordados, para usar quando saia para cidade ou ia alguma festa da família, um batom e um estojo de pó de arroz com um espelho. Também tinha uma embalagem acrílica de talco de tocador, que depois de vazia, se transformou em um porta bijouterias. Ela não dispensava o uso do talco logo depois do banho; ela cheirava a talco e distribuía o perfume pela casa. Nessa caixa de bijouterias estavam guardados brincos, correntes, pregadores de roupa, enfeites que na juventude ela comprava pelo catálogo da Hermes, pagava e buscava os produtos no correio. A tal prateleira era tão alta pra mim, que eu só conseguia ver o que estava nela se subida em um dos bancos da cozinha, eu sabia que ela guardava ali presentes que ela mesmo fazia, ou alguma encomenda de bordado já concluída. 

Durante algumas horas da tarde, minha mãe se dedicava a consertar e remendar roupas, mas também fazia alguns conjuntos de cozinha para as irmãs do meu pai, sendo tantas, cada ano tinha uma casando. O bordado era feito com aplicações de tecidos, morangos, cachos de uva, peras, ou então eram cenouras, tomates, cebolas Os bordados com aplicações de tecido eram mais para ambientes como os de cozinha. Ela também bordava golas para camisas de bebê ou os chamados vira mantilhas, sempre com delicados arranjos de flores. Levava um bom tempo elaborando as aplicações, fazendo os acabamentos de cada peça bordada. Depois de concluídos, elas eram lavadas, passadas e colocadas em caixas na prateleira mais alta do roupeiro para a hora oportuna de entregá-los. Meus melhores achados de guria arteira vinham do que eu vasculhava nos guardados da minha mãe, ainda que, na maioria das vezes, eu fosse repreendida exatamente por ser mexer em tais caixas. 

Lili se debruçava o que podia sobre a mesa da sala de jantar, ajoelhada sobre uma das cadeiras de madeira que ficavam no entorno da mesa, para poder assim ver mais de perto os bordados que estavam fazendo a da tia Nira e a tia Jane. Insistia em aprender, então elas selecionavam um pedaço de tecido, me davam uma agulha com uma linha para iniciar um bordado, mas antes era preciso copiar um desenho. Eu escolhi um ramo de flores, então elas passaram o lápis sobre o desenho no papel de seda para que o carbono, entre o tecido e o papel, reproduzisse o risco que eu havia indicado para bordar. Eu errava, desfazia, fazia de novo para manter o bordado sobre as linhas do desenho. Mal aprendia um ponto, já me cansava, queria mudar para outro, pois eu sabia, de tanto olhar os trabalhos delas, e de passar os dedos sobre os bordados dos guardanapos da casa, que se podia fazer outros pontos, de jeitos diferentes. Me aborrecia de tanto ponto atrás, queria a escama de peixe, queria as linhas harmônicas do caseado que se usava para contornar as bordas dos guardanapos. Eu  ansiava por ver aquele desenho do buquê de flores coloridas, amarrado com um laço azul, pronto. Eu tinha pressa de concretizar o que minha mente vislumbrava através das cores daquele risco desenhado sobre o tecido, o acabamento do meu aprendizado era por fim concluir o tal bordado. Tia Nira era paciente, me sinalizava em gestos que refazer era o primeiro passo para o capricho e a perfeição. Nos bordados dela, o direito e o avesso eram quase indistintos dado o esmero com que se dedicava a cada detalhe. Tia Jane perdia a paciência comigo rapidamente, de vez em quando soltava um "que guria enjoada". Muito tempo depois, me ensinou a tricotar e aprendi o jeito único com que ela tecia os pontos do tricô.

Quando nos mudamos para chalé da cidade, assim que meu irmão do meio precisou entrar na escola, fomos vizinhar com Dona Lalá e seu Noé. Ela era bordadeira de mão cheia, ele dono de um açougue que ficava junto à casa deles. Era uma casa grande, pintada de verde escuro, com a entrada pelo corredor lateral, que fazia divisa com nosso terreno. Logo depois do portãozinho de ferro, localizado bem junto da calçada da rua, havia uns degraus que davam acesso à porta de entrada da sala de visitas. Na casa havia duas salas: a da entrada, que tinha um sofá grande contra parede do fundo, umas poltronas e uma mesa de centro. A outra, contígua à sala da entrada, era a sua sala de trabalho, tinha uma mesa, um armário com muitas caixas com linhas e fios e, sobre as prateleiras, cortes de tecidos. Naquela sala ela acolhia as noivas, para quem bordava as peças dos enxovais. Algumas tardes, ela sentava naquele sofá e deixava a porta aberta, da janela do meu quarto eu a via bordando pacientemente lençóis e colchas. Cravos, rosas, flores do campo se espalhavam sobre os tecidos, os claros para os lençóis e os coloridos para as colchas. Tudo delicadamente bordado, eram dias e dias dando formato àqueles desenhos escolhidos pelas noivas, caprichosamente ela ia escolhendo pontos, cores e traçados para cada peça conforme o gosto de cada noiva.

Depois de fazer minhas tarefas da escola, mais para final da tarde, gostava de visitá-la, tocava os bordados para sentir os traçados, com a permissão dela, é claro. Meu fascínio não era porque aquelas eram peças para noivas, que ela bordava com tanta maestria, era o trabalho dela que me encantava, era aquela arte de preencher formas e linhas que se transformavam em tanta beleza, em guirlandas coloridas, laços robustos, folhas e flores entrelaçados, buquês frondosos. Dona Lalá exercia a arte de preencher linhas e espaços com tanta paciência, tardes infindáveis sentada ali, bordando. Uma parte da vida dedicada à cada conjunto de lençol, às colchas, vida  dela se estreitava com o destino daquelas noivas.

sábado, 4 de setembro de 2021

As galinhas e a minha mãe

Liberdade para Lili era correr pelo gramado em frente à casa da fazenda. Parecia-lhe um campo imenso, abria os braços como quem quisesse colocar para dentro de um abraço toda a beleza do sol do poente, dourando os altos eucaliptos que faziam a linha de frente no gramado, e separavam a estrada da área da moradia: casa, jardim, galpões, mangueiras para lida diária com ovelhas e vacas de leite. Final de tarde, os terneiros eram colocados em uma área coberta, separados das vacas. Davam a eles algum farelo ou cana para alimentá-los enquanto não podiam tomar leite das suas mães. O cheiro de cada mãe vinha com cheiro do leite, e cedo da manhã, depois da ordenha, eram liberados e assim reconheciam suas mães.

Quase todo ano, durante o inverno, tínhamos um terneirinho para cuidar. Minha mãe tomava a tarefa de criá-los como uma missão, ela passava a ter uma rotina de dedicação para cuidá-los, era como se a atenção dela estivesse totalmente focada em consolar os terneiros da perda prematura de suas mães. Um filhote tinha suas horas de alimentar, de soltar para pastar e de colocar em um local protegido para não pegarem o frio da noite. Ela preparava uma garrafa de vidro com leite morno, colocava no gargalo um bico feito de borracha para que pudesse sugar o leite, imitando a teta da vaca e, três vezes ao dia, os alimentava. Dependendo do rigor do inverno, tínhamos de  dois a três órfãos para cuidar. As grandes enchentes, as enfermidades ou fraqueza das mães as levavam à morte logo após darem cria. E uma vez e outra também acolhíamos cordeirinhos.

Lili só se encarregava de dar as sobras de comida para o Titinho. Um cusco baio, bem menor que nosso cachorro chamado foguete. Era um bulldog mal humorado, carrancudo e sempre na vigilia do cavalo do meu pai. Passava horas deitado ao lado do cavalo encilhado, até meu pai montar para alguma lida no campo. Não era muito amistoso para brincadeiras. Já o Titinho nos acompanhava, era a melhor pista para minha mãe nos localizar pelas imediações do arvoredo ou lenheira. Excepcionalmente, meu pai dava permissão dele entrar na cozinha, ficava nos procurando pelos cantos.  Fora esses dois, havia uns gatos ariscos no galpão, prontos para uma caçada de ratos. E claro, meu pai criava uma boa quantia de porcos e minha mãe uma centena de galinhas.

A criação das galinhas não só era tarefa primordial da vida rural para minha mãe, era uma paixão que ela desenvolveu desde pequena. Ela e a tia Nira, com pouca diferença de idade uma da outra, andavam sempre juntas. Vó Cinda fazia roupas iguais para as duas, em muitas ocasiões se apresentavam como se fossem gêmeas. Elas compartilhavam o mesmo gosto por criar os pintinhos e, quando crescidos identificar e separar os frangos, escolher os que poderiam ser garbosos galos do terreiro e também aquelas galinhas que seriam cevadas para depois serem abatidas e se ter carne para o almoço de domingo. Elas atribuíam nomes para as galinhas e cuidavam de protegê-las das raposas e graxains que sorrateiros batiam no galinheiro durante à noite.

Na nossa casa, minha mãe estava sempre alerta para invasores que à noite viam saborear alguma galinha. Cada pintinho que nascia com dificuldade ou se machucava, ganhava um lugar especial, ela preparava uma caixa de madeira ou papelão, com pedaço de pano, água e um pouco de quirera de milho. Colocava a caixa embaixo do fogão à lenha para garantir que os pintinhos ficassem aquecidos, às vezes, eles ainda estavam saindo da casca do ovo. Depois os pintinhos viravam frangos e andavam atrás dela, estabelecia uma relação de confiança tal com ela, o que explicava o fato dela nunca abater uma galinha, designava a tarefa para meu pai. 

Toda rotina da minha mãe era madrugar, abrir o galinheiro para soltar as galinhas, dar milho a elas, repor a água dos cochos de madeira dispostos embaixo das pereiras. Três pés de pereira faziam sombra na parte da frente para peça de madeira que servia de galinheiro. Toda manhã, logo depois do café ela limpava tudo e, no meio da tarde, religiosamente revisava os ninhos em busca dos ovos. Final da tarde, ia trazendo as galinhas que estavam debaixo das taquaras, no arvoredo, na lenheira, em geral, elas sabiam a hora de se recolher e rumavam ao galinheiro. Aquela centena de aves que se aglomeravam entorno dela tinham o ritmo e a rotina que ela havia imposto  O prazer da minha mãe era conhecer a linhagem de cada galinha, uma que sumisse ou desaparecesse, ela logo se dava conta. Na folhinha de calendário do ano, pendurada na parede acima da caixa da lenha, marcava a data que cada galinha era colocada para chocar, daí para frente contava os dias e ficava na espreita de quando nasceria o primeiro pintinho.  

Lili não se achegava muito às galinhas, temia as bicadas e unhadas. mas se encantava com os pintinhos. Colocava-os entre as mãos e os apertava como um brinquedo, o carinho em excesso os sufocava demais. Vez que outra, meu pai socorria os coitadinhos para evitar que fossem esmagados. Observava sua mãe sempre entorno daquele bando galinhas, vermelhas, amarelas, brancas, carijós. Via como ela negociava novas penugens e raças com vizinhos e parentes, trocava seus frangos e galinhas por galos. Todo cuidado na criação das galinhas se mostrava no brilho das penas, na gordura das galinhas, na elegância dos galos. Desde que nasci minha mãe já estava nesta labuta e vivendo o prazer de  fazer algo que ama. Viver no campo para ela era gozar da liberdade de criar os bichos, de resgatá-los, de acolhê-los e cuidá-los.

Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...