sábado, 4 de setembro de 2021

As galinhas e a minha mãe

Liberdade para Lili era correr pelo gramado em frente à casa da fazenda. Parecia-lhe um campo imenso, abria os braços como quem quisesse colocar para dentro de um abraço toda a beleza do sol do poente, dourando os altos eucaliptos que faziam a linha de frente no gramado, e separavam a estrada da área da moradia: casa, jardim, galpões, mangueiras para lida diária com ovelhas e vacas de leite. Final de tarde, os terneiros eram colocados em uma área coberta, separados das vacas. Davam a eles algum farelo ou cana para alimentá-los enquanto não podiam tomar leite das suas mães. O cheiro de cada mãe vinha com cheiro do leite, e cedo da manhã, depois da ordenha, eram liberados e assim reconheciam suas mães.

Quase todo ano, durante o inverno, tínhamos um terneirinho para cuidar. Minha mãe tomava a tarefa de criá-los como uma missão, ela passava a ter uma rotina de dedicação para cuidá-los, era como se a atenção dela estivesse totalmente focada em consolar os terneiros da perda prematura de suas mães. Um filhote tinha suas horas de alimentar, de soltar para pastar e de colocar em um local protegido para não pegarem o frio da noite. Ela preparava uma garrafa de vidro com leite morno, colocava no gargalo um bico feito de borracha para que pudesse sugar o leite, imitando a teta da vaca e, três vezes ao dia, os alimentava. Dependendo do rigor do inverno, tínhamos de  dois a três órfãos para cuidar. As grandes enchentes, as enfermidades ou fraqueza das mães as levavam à morte logo após darem cria. E uma vez e outra também acolhíamos cordeirinhos.

Lili só se encarregava de dar as sobras de comida para o Titinho. Um cusco baio, bem menor que nosso cachorro chamado foguete. Era um bulldog mal humorado, carrancudo e sempre na vigilia do cavalo do meu pai. Passava horas deitado ao lado do cavalo encilhado, até meu pai montar para alguma lida no campo. Não era muito amistoso para brincadeiras. Já o Titinho nos acompanhava, era a melhor pista para minha mãe nos localizar pelas imediações do arvoredo ou lenheira. Excepcionalmente, meu pai dava permissão dele entrar na cozinha, ficava nos procurando pelos cantos.  Fora esses dois, havia uns gatos ariscos no galpão, prontos para uma caçada de ratos. E claro, meu pai criava uma boa quantia de porcos e minha mãe uma centena de galinhas.

A criação das galinhas não só era tarefa primordial da vida rural para minha mãe, era uma paixão que ela desenvolveu desde pequena. Ela e a tia Nira, com pouca diferença de idade uma da outra, andavam sempre juntas. Vó Cinda fazia roupas iguais para as duas, em muitas ocasiões se apresentavam como se fossem gêmeas. Elas compartilhavam o mesmo gosto por criar os pintinhos e, quando crescidos identificar e separar os frangos, escolher os que poderiam ser garbosos galos do terreiro e também aquelas galinhas que seriam cevadas para depois serem abatidas e se ter carne para o almoço de domingo. Elas atribuíam nomes para as galinhas e cuidavam de protegê-las das raposas e graxains que sorrateiros batiam no galinheiro durante à noite.

Na nossa casa, minha mãe estava sempre alerta para invasores que à noite viam saborear alguma galinha. Cada pintinho que nascia com dificuldade ou se machucava, ganhava um lugar especial, ela preparava uma caixa de madeira ou papelão, com pedaço de pano, água e um pouco de quirera de milho. Colocava a caixa embaixo do fogão à lenha para garantir que os pintinhos ficassem aquecidos, às vezes, eles ainda estavam saindo da casca do ovo. Depois os pintinhos viravam frangos e andavam atrás dela, estabelecia uma relação de confiança tal com ela, o que explicava o fato dela nunca abater uma galinha, designava a tarefa para meu pai. 

Toda rotina da minha mãe era madrugar, abrir o galinheiro para soltar as galinhas, dar milho a elas, repor a água dos cochos de madeira dispostos embaixo das pereiras. Três pés de pereira faziam sombra na parte da frente para peça de madeira que servia de galinheiro. Toda manhã, logo depois do café ela limpava tudo e, no meio da tarde, religiosamente revisava os ninhos em busca dos ovos. Final da tarde, ia trazendo as galinhas que estavam debaixo das taquaras, no arvoredo, na lenheira, em geral, elas sabiam a hora de se recolher e rumavam ao galinheiro. Aquela centena de aves que se aglomeravam entorno dela tinham o ritmo e a rotina que ela havia imposto  O prazer da minha mãe era conhecer a linhagem de cada galinha, uma que sumisse ou desaparecesse, ela logo se dava conta. Na folhinha de calendário do ano, pendurada na parede acima da caixa da lenha, marcava a data que cada galinha era colocada para chocar, daí para frente contava os dias e ficava na espreita de quando nasceria o primeiro pintinho.  

Lili não se achegava muito às galinhas, temia as bicadas e unhadas. mas se encantava com os pintinhos. Colocava-os entre as mãos e os apertava como um brinquedo, o carinho em excesso os sufocava demais. Vez que outra, meu pai socorria os coitadinhos para evitar que fossem esmagados. Observava sua mãe sempre entorno daquele bando galinhas, vermelhas, amarelas, brancas, carijós. Via como ela negociava novas penugens e raças com vizinhos e parentes, trocava seus frangos e galinhas por galos. Todo cuidado na criação das galinhas se mostrava no brilho das penas, na gordura das galinhas, na elegância dos galos. Desde que nasci minha mãe já estava nesta labuta e vivendo o prazer de  fazer algo que ama. Viver no campo para ela era gozar da liberdade de criar os bichos, de resgatá-los, de acolhê-los e cuidá-los.

2 comentários:

  1. Lindas lembranças, mãe é mãe, em qualquer lugar. A minha, uma vez, cozinhou a Mariquinha, uma. das melhores alunas, minha

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  2. Minha carijó preferida nas minhas "aulas","alunas" atentas, entre as bonecas. Acho que era pelo milho que eu lhes atirava.

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