sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Autodeclarada ovelha negra

Uma certa tarde de Outono apareceu na fazenda um carro de aluguel com duas freiras trazendo junto com elas minha tia Cisa, nesta época, com cerca de oito anos. De batismo se chamava Luci, mas ganhou o apelido familiar de Cisa dado pela Dida, a senhora que cuidava dos trabalhos domésticos na casa da fazenda desde época da minha bisavó, quando meus tios e tias eram crianças. E todos nós os sobrinhos adotamos chamá-la de Cisa. A visita inesperada e inusitada surpreendeu meus avós, porque as freiras do Colégio de Jaguari tinham vindo devolver minha tia. A traquinagem que ela havia aprontado tinha sido grande, podia-se entender muito bem que um internato não combinava com ela, pois era uma alma livre, de arroubos inteligentes e desafiadores para aqueles comportamentos e horários rígidos, exigidos pelas irmãs nas rotinas do Colégio. Havia faltado às missas da madrugada, e se comportava sempre de modo inquieto nas missas, nas quais era obrigada a cantar em Latim, embora já tivesse decorado todos os cânticos. 

Ela era a caçula da família, mimada da minha bisavó e desfrutava do zelo e condescendência do vô Alberto que deixava passar, sem repressões, suas traquinagens e suas invenções. Minha mãe e as outras tias mais velhas contavam que ela criava histórias mirabolantes, cantava e dançava enquanto narrava suas invencionices. Lili ouvia ela sempre falar do casamento da Raposa, se tivesse chuva com sol ela nos dizia: dia de casamento da Raposa. Nunca entendi muito a origem desta história muito menos como uma raposa poderia se casar. Entre outras coisas, tia Cisa usava muitos ditados, ousava com certos palavrões tal como era o costume da Tia Idalina, minha tia bisavó. Aplicava os ditados com maestria às situações da vida: "eu conheço os bois com que eu lavro"; "atrás de mim vem quem me faça melhor", ditado preferido da minha vó Cinda, além de outros como: "quem sai ao seus não degenera"; e comparações do tipo: "amassado como bucho de vaca"; "enrugado como maracujá de gaveta; "frio de cagar gelo". Seu lado mais desbocado e engraçado se mostrava em horas inusitadas com esses ditados e eu me divertia aprendendo esses ditos familiares. 

Em ocasiões como as do dia de marcação do gado, quando se batizavam os terneiros jovens, marcando-os com um ferro quente sobre o couro, para assim identificar os donos de cada animal, ela sentava no alto da cerca da mangueira com a gurizada em volta e se divertia comparando a cara das vacas com alguns parentes. A gente ria muito porque a comparação sempre fazia sentido. Seu maior medo eram as cobras, davam-lhe pânico e horror. Um cobra que aparecesse no pátio ou no jardim, ainda que das verdes, já sabíamos que não se podia comentar, mas sempre tinha um guri sádico para abrir o bico e provocar: "vi uma cobra hoje", era certo que ela reagia nervosa e descambava com palavrões.

Eu gostava da alegria com que ela nos divertia, sem contar do quanto ela nos envolvia e, ao mesmo tempo, nos ensinava com suas faxinas, ou nas varridas do pátio nos colocando para ajudar, distribuía tarefas, afinal " trabalho de criança é pouco, mas quem despreza é louco", bradava dando risada do nosso esforço. Apreciava tudo muito limpo e com ar de arrumado, sem folhas secas no chão, sem bagunça nos quartos, camas impecavelmente arrumadas, nenhum pó sobre os móveis, e claro os guardanapos de crochê impecavelmente engomados e trocados a cada grande faxina da casa. 

A fase da faxina veio depois que ela se mudou para capital, as faxinas eram o modo dela cuidar da casa durante as férias na fazenda, muito mais ainda depois que minha vó Cinda faleceu. Ela deixava a casa pronta para ser habitada, ainda que a casa ficasse cada vez mais fechada com passar dos anos, sem a presença das pessoas da família, já que as temporadas na fazenda foram minguando e ficando mais raras. Porém, na juventude levou uma vida agitada, muito cigarro, festas, bebidas, bailes, banhos de rio. Contavam que sua maior aventura dessa época foi cruzar por dentro da praça em um fusca, durante uma madrugada, lotado de amigos.

Trabalhou um bom tempo na cidade, trabalhava na prefeitura, gostava da política, ocupou cargo de Secretária de Finanças do Município, era boa nas contas. Nos nos fins de semana ia para fazenda, fazer ambrosia, ajudar nas faxinas e preparar alguma janta para reunir os amigos, sentar na frente da casa pra ver as estrelas, beber uma cerveja enquanto ouviam a melodia do violão tocado por algum amigo. Com ela ouvíamos rádio todo tempo, ela cantava e dançava. Quando os sobrinhos mais velhos ficaram moços ela, magra e leve, bailava com eles, às vezes, descalça e vestida com o que ela nomeava "roupas rurais". Puxava um dos meus primos pelo braço e dizia: "Cavalheiro me dá honra desta dança? Ela também nos apurou o gosto musical, ouvindo as canções de Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, a trilha sonora da sua juventude. 

Mas a tia Cisa era de humor variável, sofria de frequentes dores de cabeça e seu gênio de questionadora se revelou. Lili observava seus destemperos, era estranho porque na verdade se opunha ao que não aceitava, era aguda nos argumentos e tinha uma grande intuição sobre o comportamento das pessoas. Eu admirava o grau de inteligência dela, que se mostrava na sua rebeldia, como a de andar só de biquini pela casa e pelo pátio na Fazenda, sem se importar com os homens que trabalhavam na lida do campo ou da lavoura, que a olhavam meio envergonhados, nem com com o olhar atravessado dos meus tios. 

Era verão, mês de fevereiro e ela vestia uma avental sobre o biquini e coordenava uma fabricação caseira de goiabada. Mexia um tacho de doce de goiaba com gosto, depois de azucrinar o Vergilino para armar um fogo de chão no pátio dos cavalos, debaixo dos cinamomos. O doce era resultado dos muitos frutos dos pés de goiaba como os das primeiras e únicas nogueiras da fazenda, coisa rara naqueles idos dos anos setenta, mudas que ela havia trazido no bagageiro de um ônibus que fazia a linha Porto Alegre - São Borja. Meu pai fez o plantio das goiabeiras e nogueiras. Quando ela descia cedo da manhã na beira da estrada, ele sempre a esperava e auxiliava com a bagagem. Um vez ela trouxe enroladas num papel bem dobrado algumas sementes de melão americano para meu pai plantar, sempre uma novidade vinha com ela. Para nós, crianças vivendo no campo, a chegada dela perto do Natal era  também sinal de presentes bons.

Ela e meu pai eram companheiros de chimarrão e de beber cerveja nas festas da família. Quando bebia muito, em geral, ela passava do ponto e ficava agressiva. Afloravam todas suas inquietações, implicava com alguém no ambiente ou com quem tinha algum dissabor e se descontrolava. Dava no jeito de apressar sua volta para a capital, assim que se recuperava, percebia-se ressacada da bebida e atarantada por suas explosões de comportamento. Lili descobria nessas explosões uma amostra da sua lucidez. Ser quem ela era, tão independente, era um sopro no meio de tanta gente apegada ao modelo de vida interiorana e conservadora. Por esta razão, ela se identificava com a letra do rock da Rita Lee, ironicamente, em um dado momento da sua vida, passou a se autodeclarar a Ovelha Negra da família. 

 

3 comentários:

  1. Lembrei de meus tempos de internato, nos idos de 1966, em Arroio Grande, vizinha de Jaguarão. Eu aprontei poucas e boas nas freiras! Obrigada por propiciar boas lembranças com teu texto, Lili, personagem realidade da vida.

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  2. Texto lindo, cheio de lembranças. Eliana, você precisa publicar um livro!

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  3. Descreveu com muita inteligência a tia Cisa. Amiga e fiel companheira pessoa idônea e de muitos valores morais.Eu particularmente adorava seu jeito maluco de viver.

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