sábado, 7 de agosto de 2021

Nas ondas do rádio

No auge dos anos setenta a disputa pela vez de ter o rádio portátil em mãos e, por fim, sintonizar na estação preferida, era fato corriqueiro na fazenda. Eu sempre tinha de resgatar o rádio nas horas que os guris da casa davam sossego no rádio portátil que a Tia Nira havia trazido para vó Cinda. A herança histórica das peleias familiares  pelo direito de garantir o horário de uso do rádio, foi costume passado para nós desde os tempos de juventude da minha mãe. O rádio nos fascinava, ele  possibilitava sonhos de alcançarmos o mundo além daquela vida serena do campo. Alargamos nossos olhares  lá para as bandas do leste, onde nos diziam que se localizava a capital, bem depois da curva delicada desenhada no alto da coxilha, contra a linha do horizonte. O rádio nos deu acesso a muito lugares, às novidades  às curiosidades do mundo, antes da chegada da televisão.

Meu avô Alberto comprou um aparelho de rádio grande por volta dos anos cinquenta, precisou de um lugar especial para a novidade, assim o pessoal da casa podia sentar em volta e ouvir, principalmente, as notícias que chegavam até fazenda pelas ondas do rádio. Era um móvel no formato de uma bela caixa de madeira lustrada, com os botões brancos que moviam o dial em busca de algum estação ou possibilitavam mudar o tipo de ondas de transmissão. Ter um rádio daqueles era um luxo. Contam que minha mãe disputava a hora de uso do rádio com meus tios, e a batalha se dava por causa do horário de sua novela preferida, para ela era coisa sagrada. Acompanhava assiduamente as novelas de rádio, encantava-se com as histórias e as emoções provocadas por cada capítulo da novela Direito de Nascer. Também admirava Ângela Maria e ficava atenta à estreia de suas canções nos programas da rádio nacional, além de ser fã da dupla Eliana e Adelaide e do som do acordeon tocado pelas artistas. O rádio era a novidade de entretenimento não só dela, mas também das moças mais velhas da casa. Ela e minhas tias foram conhecendo mais da cultura nacional pelas ondas das emissoras de rádio lá no campo, inclusive, inspirando minha mãe na escolha do meu nome.

Ao longo da vida de Lili no campo sempre houve um rádio ao seu redor. Meu pai tinha sua rotina regulada pelos programas de rádio que, coincidentemente, entravam em sintonia com os horários em que ele parava a lida para tomar mate. Aprontava cedo da manhã o primeiro chimarrão do dia já com o rádio sintonizado na rádio Jaguari para ouvir música gauchesca. Passando das onze horas, o rádio sobre o armário da cozinha era ligado outra vez e logo o anúncio de mais um horário de músicas gaúchas se iniciava com "ohhh de casa...", a hora de escutar os sucessos do Teixerinha, Gildo de Freitas, José Mendes. Nos intervalos entre as músicas e os comerciais, havia a seção de comunicados informando algum falecimento, às vezes, algum nascimento, muitos recados repassados para quem vivia no interior, aviso de visitas, de missa e batismos nas capelas dos distritos, boletins dando conta do estado de saúde de algum parente hospitalizado; o rádio era mesmo a descoberta do mundo da comunicação. Outra vez, no final da tarde, antes de mudar de estação e sintonizar a faixa na rádio Guaíba para ouvir o noticiário "correspondente Renner", ouvia-se mais uma programa de música gauchesca na rádio Jaguari. O rádio marcava o dia do meu pai e, durante as manhãs, oportunizava uma trilha sonora para a hora de passar roupas da minha mãe.

No inverno nos recolhíamos cedo, ouvíamos os programas em volta do fogão à lenha enquanto minha mãe preparava a janta. Logo depois de deitarmos e meu pai pegar no sono, iniciava-se mais uma batalha pelo nosso rádio portátil retangular, forrado com uma napa vermelho escuro, que pulava de uma cama a outra. Éramos três na disputa pelo rádio, cada noite um ficava com ele. Na minha vez, colocava-o contra a parede e a ponta do travesseiro, a cama ficava bem encostada junto àquela parede em que coloquei alguns pôsteres de artistas que vinham nas revistas para meninas. Ouvia músicas e passava um bom tempo tentando conseguir a melhor sintonia da rádio "el mundo", a rádio que me transportava para muitos lugares em viagens imaginárias, já meus irmãos ouviam futebol e um programa de humor na rádio Tupi. Desse programa humorístico, meu pai aprendia charadas e nas noites de verão, nas frestas iluminadas pela lua entre as sombras dos cinamomos naquele chão de terra batida, varrido no capricho pela minha mãe, sentávamos em bancos mochinhos para a hora de responder os enigmas e charadas do meu pai. Já mais crescidos nos demos conta que ele memorizava o que ouvia nesses programas: o que cai em pé e corre deitado? e lá ia ele emendando uma charada na outra. Era o modo dele nos divertir e prolongar nosso tempo na fresca da noite nos dias em que o calor do verão era insuportável. 

Meu avô Joãozinho também comprou um rádio grande, quando meus tios e tias já estavam mais crescidos. Ele ficava em uma prateleira, à direita da porta de saída da grande sala para parte externa que dava acesso à cozinha. Entre a ampla peça da cozinha e resto da casa, estava o poço, essa partes eram ligadas por uma calçada de tijolos. O rádio ficava em uma prateleira bem alta, pois assim parecia para minha pouca altura de sete anos, não me permitia mexer nos botões, ali o rádio era uma preciosidade sobre a toalha de crochê. Além das notícias, o rádio trouxe muita alegria para casa, pois minhas tias e meus tios gostavam de dançar, de frequentar bailes na vizinhança. Minhas tias se aprimoravam nos ritmos dos xotes e das vaneiras com as músicas que ouviam na rádio Jaguari, treinando as danças, bailando umas com as outras. 

Na casa da fazenda, a luta de Lili pelo rádio com os primos mais velhos vinha assim que as as tias se ausentavam. O rádio portátil da tia Nira, forrado com um couro fininho de uma cor caramelo que lembrava a cor do doce de leite, circulava entre a cozinha, o quarto da vó Cinda, o quarto dos guris e as rodas que eles faziam no entorno do banco velho e descascado da frente da casa. Lili só queria ouvir as músicas do momento, nesta época já havia alargando suas opções para também ouvir as emissoras de Santa Maria. Percorria o dial para localizar a rádio que tocava as músicas de Roberto Carlos e, mais tarde, também os sucessos das trilhas sonoras das novelas como as de Anjo Mau. Quando as tias chegavam,  ouvia-se a rádio Guaíba, e o gosto musical se sofisticava com músicas dos cantores da Tropicália e Bossa Nova.

Sempre tivemos rádios, os modelos portáteis permitiam levá-los para debaixo das árvores na hora do chimarrão ou acompanhar algum afazer nas imediações da casa,  às vezes sobre o tabuleiro das melancias, junto das frutas, enquanto esperávamos ansiosos por um cliente, por algum carro que parasse e comprasse muitas melancias. Havia sempre uma trilha sonora nos acompanhando vindas pelas ondas do rádio.


Um comentário:

  1. Eu também vivi essa relação familiar com o rádio, no interior de Minas. Trouxe o aparelho, que para mim materializa o passado, para Santa Maria. Belo texto, Eliana!

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