sexta-feira, 3 de julho de 2020

As carroças, as carretas e a charrete amarela

A especialidade do meu bisavô paterno Antônio era fazer trabalhos de carpintaria. As encomendas da vizinhança incluíam fabricar carroças, carretas, carro de mão e instrumentos para lida no campo, em especial, aqueles que auxiliavam no cuidado diário com os animais ou para o uso nas lavouras. As carretas eram especiais, porque exigiam uma feitura complexa e requeriam uma inteligência de engenheiro. Feitas de madeiras rústicas e resistentes, demandavam um trabalho bastante artesanal na sua montagem, praticamente toda a engrenagem era trabalhada em madeira bruta e de pouco polimento, embora mostrassem o esforço do artesão e sofisticação de uma mente inquieta que criava e fabricava um veículo. Depois de prontas, serviam para carregar as colheitas e também como meio de transporte de muita gente que vivia naquelas bandas. Não faz muitos anos meu pai recuperou uma carreta fabricada pelo meu bisavô Antônio. Corroída pelos seus mais de sessenta anos, sobraram as rodas, perfeitamente conservadas, com seus raios simétricos envolvidas por madeira vergada, amarrada por uma cinta de ferro que as fixam e que certamente as protegeu do desgaste desses longos anos de vida e das tantas cargas transportadas. Carroças, charretes e carretas fizeram parte do meu meio de transporte na infância. 

Meu avô João começou seu trabalho carregando sacos de arroz em uma grande carroça durante a época da colheita, e nela se empilhavam as sacas de arroz para transportar até algum engenho das redondezas. Um dia, muito anos depois dele ter falecido, minha avó me apresentou sua carteira de condutor de veículo de tração animal. Sim, motorista de carroça. Era preciso uma habilitação para trafegar de carroça nas estradas municipais e intermunicipais. Era, portanto, uma profissão importante naquele tempo, contribuía no escoamento da produção, além de ser o meio de sustento para a família, que havia iniciado sua vida para os lados do Umbu. A mudança para perto do meu bisavô Antônio fez meu avô João iniciar sua vida de plantador de arroz e abandonar sua vida de condutor de veículo de tração animal.

Meu avó João era um homem calado, de jeito carrancudo. Ou estava calado ou pronunciando palavras em alemão, língua dos seus pais. Essa talvez seja a mais remota lembrança que eu tenho do que era uma outra língua que não o português. Apesar de pouco dado aos afetos, ele sempre dava as honras para a Lili, permitia que eu sentasse na cabeceira da longa mesa de jantar. Naquela família de muitos filhos, a neta sentava no lado oposto da cabeceira destinada a ele, pois era uma autorização que permitia que ficássemos na mesma importância naquele momento da refeição. O afeto estava no gesto.
Na morada da vó Cinda, a grande peça contígua à casa, era um misto de garagem e galpão. Separava a casa da família das acomodações do galpão: a casa do arreios, os aposentos do Vergilino e a antiga peça da escola (outro dia tratarei dela), que há muito já não existia. Os nomes das peças diziam muito sobre a função da cada uma: casa do forno, casa dos arreios, estufa, fogo do chão, paiol, o banco de carpinteiro. Entre o fogo de chão e a estufa havia uma grande área, com cantos separados e organizados de modo improvisado, ali guardavam-se algumas cordas, pás, enxadas e sacos de sementes. A única parede de madeira que fazia divisão da grande peça era onde se colocavam as batatas doces depois da colheita. Logo que se passava pela porta interna do fogo de chão para dar acesso a esta peça, à esquerda, havia uma mesa velha e capenga sobre a qual se encontrava uma caixa maciça de pedra que, inapropriadamente, se chamava cocho do sal. Mais à frente, antes da porta interna que dava acesso à estufa, na parte superior, havia um jirau, uma espécie de mezanino, onde se guardavam sacos de estopa, caixas de abelha, cestas de vime. Nesta grande área vi a agonia do Moleque, que foi atropelado e ficou todo capenga. Era o cachorro do Vergilino, que ele cuidava e protegia com muito zelo. Eram inseparáveis, para encontrar o Vergilino bastava encontrar o Moleque.
 
No corredor se localizava o banco de carpinteiro, um grande maciço de madeira que servia para  a confecção de objetos de uso na lida doméstica e para uso das ferramentas de trabalho com madeira.  Era a principal ligação entre as peças da frente e dos fundos do enorme conglomerado da sede da fazenda. E dava nome a esta passagem.

Todas as áreas eram interligadas por portas internas. A maior peça da zona de serviço era bem mais uma garagem por causa do lugar central que ocupava a elegante charrete amarela, pintada de um amarelo que lembrava a cor de uma gemada bem batida. Não havia carro na casa, a charrete era o transporte das pessoas e de pequenas bagagens e carregamentos. Na charrete, minha vó acudia as vizinhas recém paridas, visitava os parentes doentes ou fazia os passeios de cortesia. Em alguns destes passeios eu acompanhava à ela e à minha mãe, como na vez que fomos visitar o tio Penin. Ele era um homem alto e muito magro e dele lembro o modo como se acocava diante do fogo cuidando de esquentar, até o ponto de brasa, barras de ferro com um desenho moldado nas extremidades. As marcas aquecidas batizavam os terneiros no lombo e o dia desta lida era um tradicional momento de reunião familiar, o dia da marcação do gado. O ferro quente deixava no ar o cheiro de couro queimado, misturado com cheiro das folhas de eucalipto e de angico ardendo no fogo. Aquela sessão de batismo dos terneiros adolescentes era um ritual da vida campeira, mas não deixava de me produzir, talvez por minha pouca idade, uma repulsa pela crueldade daquele ferro quente sobre o lombo dos terneiros. Um sentimento de compaixão com os pequenos me invadia. Essa tarefa era atribuída a esse tio avô, como algo especial, pois fazia parte do compromisso tácito do convite para comparecer à celebração do dia das marcações. A outra lembrança que tenho dele foi uma visita de domingo, e não foi um passeio qualquer. Lá fomos as três mulheres na charrete amarela. O veículo se alinhava na estrada de chão e ganhava velocidade conforme o ritmo dado pelo Tarugo, cavalo gateado e  muito garboso que servia mansamente à sua função de puxar a charrete. O destino de Tarugo era servir, com exclusividade, como motor da charrete amarela, e por anos cumpriu este papel.

Tio Penin estava acamado, era o que eu conseguia ver de onde me indicaram para sentar. Não entrei no quarto, esperei sentada em uma cadeira de madeira colonial, daquelas usadas com mesas de cozinha na campanha. Meus pés mal tocavam o chão, um sinal de que eu era muito pequena. Minha mãe e minha vó conversavam com o Tio Penin dentro do quarto e, entre um e outro acesso de tosse, ele respondia a elas com uma voz baixa e fraca, já mostrando a debilidade dos seus pulmões. Da cozinha surgiu sua esposa, tia Laidinha, segundo matrimonio do meu tio avô. Uma mulher baixinha, morena, de cabelo curto, com uns delicados brincos dourados adornando as orelhas. Era afetuosa e gentil, carregava em uma bandeja pequenas taças servidas com alguma bebida. Atravessou a sala, posou a bandeja sobre a mesa e veio em minha direção oferecendo-me uma taça de licor. Trago na memória o primeiro sabor de uma bebida doce e perfumada: licor de pêssego. Hesitei com a oferta, talvez por não ter autorização das duas que seguiam na conversa com Tio Penin. Mas Tia Laidinha insistiu e com uma piscada me sinalizou não haver problema em sorver aquele néctar adocicado. Naquela altura eu já estava seduzida pelo aroma que o licor havia exalado pela sala.

A charrete amarela me levou para lugares inesquecíveis. Era como se o Tarugo me compensassem me levando a passeios e visitas depois do acidente que obrigou minha mãe se atirar da charrete na altura de um ponte, protegendo-me em seus braços. A charrete tombou por causa do desatino e corcoveadas descontroladas do Tarugo, que havia se assustado de um carro vindo em direção contrária.

Meu pai usou muito a charrete amarela para levar e trazer mantimentos da cidade, para ele e para vizinhança, dependendo do trajeto que fazia, ora pela estrada da cancha ora pela estradinha municipal, passando pelas moradas dos seus parentes: tio Luis, tio Adolfo....
O mundo urbano da Lili iniciou quando fui afastada de casa para ir para escola, saí cortando laços. Dois anos depois, minha mãe estava determinada que a prioridade era nos colocar na escola e isso significou morar durante a semana na cidade e nos fins de semana no campo. Por muito tempo a charrete foi o transporte do meu pai, que nos abastecia durante a semana com sacos de laranja, mais batata doce, mandioca, alguma carne de ovelha ou frango e hortaliças. Na volta, ele levava seu carregamento de erva, pacotes de maço de cigarros e algumas encomendas da minha vó e da vizinhança. De vez em quando eu pegava uma carona na Charrete amarela com meu pai e saltava na altura da padaria, onde comprava pão sovado ou cabrito. Durante a semana meu pai fazia as refeições na casa da minha avó e todas as tardes cumpria religiosamente com a hora de tomar mate com ela. No verão, sentados na frente da casa, tomavam o mate sob a sombra dos cinamomos, que dava um frescor ao ambiente e amenizava os dias de muito calor. O ritual diminuía a nossa ausência semanal e fortalecia o respeito do meu pai por sua sogra.

Entre as coisas prazerosas que o verão no campo trazia era cuidar de abastecer a carreta de melancias. Tarefa que se realizava cedo da manhã, para apanhá-las ainda com o restinho do frescor proporcionado pelo sereno da noite. Ou era trabalho para o final da tarde, quando o calor se dissipava e a terra da lavoura já não queimava nossos pés, nem provocava um suor insano em quem selecionava, cortava e separava as frutas, para que depois elas fossem carregadas e amontoadas para fora da cerca e, finalmente, acomodadas em pequenos montes. Evitava-se entrar com a carreta na lavoura para não machucar os baraços das frutas ou esmagar os pés desalinhados. Meu pai tinha gentileza e delicadeza com as frutas, que eram seu fruto de trabalho e renda. Percorria os pés para ajeitar as folhas sobre as frutas ainda verdes, protegendo-as do sol escaldante do verão.
 
Abastecida, a carreta partia balançando, era um sacolejar de corpos e risos de crianças. Os pequenos tinham autorização para juntarem-se às melancias, pois a carreta se movia lentamente por causa do peso e do tranco do andar dos bois, que se arrastavam pelos sulcos daquela estradinha estreita de chão batido, já marcada por dois sulcos desenhados e afundados pelas rodas de carros, charretes e carroças que por ali passavam. Havia uma diversão inigualável em acompanhar o movimento e o ruído das rodas pesadas desde do alto de uma farta carga de melancias. Acompanhar meu pai na colheita de melancias para abastecer o tabuleiro à beira da estrada, onde eram expostas à venda era uma aventura  compartilhada entre eu, meus irmãos e meus primos. O prêmio pela ajuda vinha na forma de balas distribuídas pelo meu pai, vindas dos bolsos de suas bombachas.

Por muito tempo a carreta das melancias também foi o nosso transporte para as visitas familiares à casa do vô Joãozinho e da vó Xiruca nos domingos. Cortando o campo, a carreta chegava ao arroio da Divisa, cruzando na altura da água mais rasa. No momento da passagem, minha mãe jogava uma colcha velha sobre nós para nos proteger dos mosquitos do mato, enquanto nos ajeitávamos nos pelegos que cobriam os banquinhos mochos, arrumados pelo meu pai para nos acomodar na carreta. Na travessia nos segurávamos firmes, agarrados nas laterais da carreta para não cair com solavancos nos buracos na saída da barranca do arroio, rezando para que a junta de bois, Canarinho e Cardeal, não empacassem, pois afinal era dia de passeio.   

Mas Lili era a única menina e à ela não era permitido ser a vendedora de melancias, embora já tivesse na escola e ali entre os meninos fosse a de mais idade. Os cuidados do meu pai era pelo temor de que me roubassem, especialmente temia o assédio dos caminhoneiros, o que só entendi como zelo  muito anos depois. Eu costumava protestar pelo direito de apresentar e negociar as melhores e maiores frutas, o que só me era permitido sob os olhos atentos e vigilantes da minha mãe, quando todo o bando de homens, inclusive os pequenos, partiam de madrugada para as campeiradas nos dias de recorrer o gado nas lonjuras do campo.

Em certas épocas apareciam carroças diferentes por aquelas bandas. As carroças cor de rosa dos ciganos, que se alojavam debaixo da velha timbaúva. Era uma árvore frondosa, depois da florada surgiam as vagens pretas, que mais pareciam orelhas de macaco, e nos serviam para imaginar inúmeras brincadeiras. Ela era a referência das pessoas, pois ali onde ela se erguia, identificava-se o local da parada de ônibus da antiga estrada intermunicipal. Ela nunca perdeu sua majestade entre a fileira de velhos eucaliptos, costeando os dois lados da estrada diante da Fazenda. No inverno, já desfolhada, era como uma cortina feita de um delicado crochê, por onde se vislumbravam os primeiros raios de sol lá da janela da varanda da casa. 

Não sei quando a charrete amarela se foi. Sobraram as rodas da carreta fabricada pelo meu bisavô, resistindo no tempo e nas memórias da Lili lá do mundo do campo. 

5 comentários:

  1. Lili,tô encantado com tua narrativa,me remeteu ao passado de boas lembranças, início de uma nova etapa,valeu, continues nos fazendo relembrar,conta com meu apoio📸

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  2. Estou amando o mundo de Lili. Cheio de detalhes, de cuidados, de si e dos outros. Um universo narrativo encantador!

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  3. Bacana demais. Lembranças de minha infância. Obrigado.

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  4. Quanta lindeza! Lembrei tanto do meu avô durante a leitura💖💖 dos mates, das rapaduras, dos "causos"...

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