sexta-feira, 24 de julho de 2020

A tapera e a ladeira

Cada vez que aos domingos cruzávamos o arroio da Divisa de carreta, rumo à casa do vô Joãozinho, passando pelo trecho úmido e alagado da várzea, de longe já se avistava uma coxilha. Lá no alto havia uma tapera, onde ele, minha vó e alguns dos filhos mais velhos viveram nos primeiros tempos, quando vieram morar em uma chácara abandonada perto do meu bisavô Antônio. Depois da morte da vó Carolina, ele se sentia muito sozinho e chamou então o filho João para morar nas redondezas. Todos os dias minha vó Xiruca enviava os filhos mais velhos meu tio Nito, tia Carolina, que ganhou nome em homenagem a sua vó, e meu pai para levar comida para o vô Antônio. Na antiga morada, hoje uma tapera, meus avós permaneceram vivendo em uma casa simples de telhado de capim, ali nasceram outros filhos e foram plantando e criando bichos domésticos para subsistência. Alguns anos depois, meu bisavô Antonio faleceu, seu corpo não aguentou as consequências dos tantos tragos que tomava e sua mente ia piorando com as intempéries do seu mau humor e do seu gênio difícil. A construção da tapera foi desmanchada e a família do vô Joãozinho se mudou para um local mais abaixo da coxilha, na casa onde meus bisavós haviam morado.
Na tapera não sobraram vestígios da existência daquela moradia precária e sem conforto, apenas o taquaral e o pomar resistiram ao tempo. Quando passávamos com a carreta na altura da coxilha era uma festa, apanhávamos bergamotas de cima da carreta, no alto das árvores. Sem dúvida eram as melhores e mais saborosas bergamotas que Lili havia provado na sua infância. Também naquele lugar abandonado se encontravam figueiras, macieiras, pereiras, laranjeiras. Dizem por aí que frutas de uma tapera são sempre as mais doces. 
Na família do meu pai, onde se erguia uma morada, plantava-se muitas árvores frutíferas no entorno da casa. A casa que morei, quando muito pequena, além de já ter um grande arvoredo, com muitas bergamoteiras, laranjeiras, limoeiros e pereiras, meu pai foi variando as árvores frutíferas do arvoredo, tínhamos maçãs, pêssegos, ameixas, figos, cáqui. Em todas as casas que Lili conheceu tinha sempre um parreiral. A tapera marcava um lugar deixado para trás, esvaziado pela saída dos filhos e a morte dos moradores, a tapera das bergamotas, no entanto, ficou para Lili como uma referência da chácara onde nasceu o pai.
Meus bisavós se instalaram naquelas terras assim como outros imigrantes, depois de atravessarem fronteira, vindos do Uruguai, junto com vô Francisco e vó Cristina, os primeiros do núcleo familiar do meu pai. Finalmente foram definindo um lugar para erguer sua morada, fechando o ciclo da sua jornada de migração, desde saída da região abrangida pelo antigo território do império austro-húngaro, antes da primeira guerra mundial, até aquele rincão atravessado pelo arroio do Salso e da Divisa, no interior do Rio Grande do Sul.
Lili ouvia as conversas da tias contando sobre dona Maria Augusta e o senhor Adolfo, irmãos austríacos dessa leva de imigrantes que viviam na vizinhança, conhecidos por suas produções de doces de frutas, passas e aguardente. Adolfo era um senhor curioso, instruído, algo raro para aquela época, produzia mudas de árvores, especialmente de frutíferas, fazia fermentos caseiros, vinagre e vinho. Era um homem inventivo e de muitas práticas agroindustriais. Já dona Maria Augusta se vestia no capricho, colocava roupa boa e sapato de salto e lá ia de charrete comercializar na cidade os quitutes e os produtos fabricados pelos irmãos.
A tapera permaneceu como um lugar cheio de lembranças dos tempos difíceis da família do meu pai, de lugar de nascimento dos tantos filhos do meus avós paternos e das frutas saborosas. Lá ainda se colhiam frutas entre as árvores que restaram e se brincava no taquaral que suportou os ventos e os tempos. Passar pela tapera era o primeiro anúncio de que lá, logo depois de um pequeno açude, represando um riacho, na descida da coxilha, estava a morada que eu conhecia muito bem, a da memória dos meus avós.

A fachada da casa da fazenda do vô Alberto e vó Cinda emoldurava, ao fundo, um dos lados do grande gramado em frente à morada. O gramado era nosso espaço livre de brincar, de correr, jogar futebol e caçador, rolar na grama quando chovia no verão e, à noite, caçar vaga-lumes. Imaginávamos lanternas com os vaga-lumes presos em saquinhos de papel transparente que retirávamos da parte externa das carteiras de cigarro do meu pai e das minhas tias. E as lanternas de vaga-lumes iluminavam nossas brincadeiras naquele vasto gramado, confundindo-se com a luz das estrelas, milhares delas surgiam no escuro da noite.
Quando se chegava na porteira de acesso às imediações da casa, via-se a lenheira à esquerda e, do outro lado, à direita, as mangueiras. A mangueira grande, com seu solitário coqueiro servia para  encerrar as vacas de leite para no outro dia bem cedinho se fazer a ordenha. Nela também se reunia o rebanho de ovelhas para, em uma mangueira menor, separá-las para cuidar dos machucados e dar remédios. Quando a mangueira grande estava vazia, dávamos um jeito de pular a cerca alta de tábuas ou abríamos a pesada porteira de madeira com ajuda de um dos maiores. Com uma longa taquara cutucávamos os coquinhos para que caíssem lá do alto do coqueiro solitário. Eram um cocos diferentes, meio ovalados, com uma fibra por fora, para abri-los, pegávamos uma martelo para golpear o coco e comer suas deliciosas amêndoas. Na família contavam que o coqueiro era proveniente de uma muda trazida por um mineiro que se casou com a tia Santinha, irmã do meu avô Alberto. Havia duas grandes porteiras na mangueira do coqueiro solitário, a do fundo dava para a ladeira. Na mesma linha da cerca da mangueira seguia uma cerca de arame, dividindo o espaço das redondezas da casa e o campo de baixo. Ali havia um conjunto de pés de uva do japão, que os animais adoravam comer, e uma porteira pequena por onde também se cruzava para o lado da ladeira.
A ladeira descia alguns metros em direção ao mato da Divisa, passando por um banhado coberto de caraguatá, ali ninguém entrava a pé, só a cavalo para rebanhar alguma vaca ou ovelha perdidas. Caraguatá é um tipo de bromélia do mato, cheia de espinhos nas folhas, lá a gente não se atrevia a chegar para não encher o corpo de arranhões por causa dos espinhos. A ladeira era um campo onde ficavam os animais que precisavam ser alimentados, como as ovelhas com cria e as vacas de leite. Era o campo do Tarugo, da Ruana e do Petiço, cavalos mansos da lida diária. Porém, a magia da ladeira era aproveitar o declive do terreno e descer escorregando o gramado roçado pelas ovelhas. Lili, os irmãos e os primos desciam a ladeira cuidando de não ultrapassar o limite do mato de maricás, para não se arriscarem e se meterem no meio dos caraguatás. Meu irmão ganhou um carro de madeira feito pelo meu tio Nito, um carrinho de quatro rodas, fechado nas laterais, que parecia mais a carroceria de um caminhão. Colocávamos os mais pequenos dentro e lá do alto empurrávamos e íamos correndo, gritando e dando risadas junto ao carrinho para testemunhar a cambota que ele dava no final, derrubando quem estava dentro. Posicionávamos o carro logo abaixo do grande cocho de alimentar as ovelhas, na parte mais alta do campo, onde o terreno era mais limpo e livre para dar impulso no carro e ver ele descer ladeira abaixo. Neste lugar, se avistava a estrada intermunicipal pela direita, seguida, até uma em certa altura, por uma linha de velhos eucaliptos, que davam para dentro do campo. Bem depois da longa curva da estrada, chegava-se a uma ponte de madeira sobre arroio da Divisa. Quando o ônibus apontava na saída da ponte, era preciso correr para chegar a tempo até a parada em frente à timbaúva, na porteira da fazenda.
Do outro lado do matinho de maricá, que floria sempre no mês de março, prenunciando a chegada do outono, podia-se sentir o perfume das flores e o zumbido das abelhas, dando-nos certeza de que o mel daquele ano seria com aroma da flor de maricá. Neste outro lado, o terreno era um tapete mantido pela ovelhas que pastavam e, ao mesmo tempo, roçavam o campinho. Ali a ladeira tinha uma descida mais abrupta e, na parte mais baixa, um pequeno poço de água. Por muito tempo existiu a sobra de uma armação coberta de santa fé nas imediações do poço e, bem à direita, na curva do poço, uma cacimba de água cristalina. Uma água limpa e fresca que podíamos beber sem restrição e que minha vó Cinda mandava buscar para lavar os cabelos, tal era sua pureza e efeitos na saúde dos cabelos. O medo maior era o de cair nas águas fundas da cacimba, medo que sempre me rondava. Por muito tempo minha mãe lavou roupa naquele poço da ladeira. Trouxas de roupa eram esfregadas e lavadas ali desde da época da Dida, que lavava toda a roupa da casa da vó Cinda naquele poço. Levava-se manhãs lavando roupa, estendia-se sobre uma parte plana as roupas que precisavam ser alvejadas, para o que o sol fizesse o trabalho de desencardi-las. Nosso cachorro Titinho acompanhava minha mãe e ficava na vigília das vacas e ovelhas que se aproximavam para que não pisoteassem nas roupas, quarando no sol quente do meio da manhã.
Outra diversão na ladeira incluía pescar lambari no poço. Sobre a tábua de lavar roupas um dos maiores se apoiava na espreita de que os lambaris viessem beliscar as minhocas que usávamos como isca, assim ocupávamos algumas tardes na pescaria. Desde a parte mais baixa da ladeira, entre o poço e a várzea tomada de caraguatá, eu olhava para linha de pinheiros araucárias que meu pai havia plantado na divisa do arvoredo novo com campo da ladeira, mudas feitas pela vó Cinda. Intercalados entre as araucárias, pés de goiabeira e, mais adiante, seguindo a cerca, na mesma linha divisória um mato com muitas pitangueiras. Naquele alto da ladeira, no entardecer vislumbra-se o pôr do sol entre os pinheiros e também se avistava, lá muito distante, o imponente cerro do Loreto.
A tapera e a ladeira são lugares de memória, de sabores frutados, adocicados e frescos. Lugares nos quais Lili aprendeu o significado dos espaços, enquanto comia bergamotas da tapera e deslizava pela maciez do gramado no declive da ladeira. 

5 comentários:

  1. Lili,me reportei aqueles tempos,aquela morada que até hoje encanta,tive o privilégio de muitas vezes ir lá, carregar lã,e muita melancia que levávamos p São Borja,pena que não tínhamos a perspicácia de um dia sermos colegas, irmãos,amigos.meu sogro Adolfo Lutz muitas histórias de visitas feitas por ele a teus pais, teus pais a ele, contava essas histórias com uma precisão incrível.obgd mais uma vez por me fazer recordar tempos bons.💪

    ResponderExcluir

Carapé

O senso de localização de quem vive em uma cidade pequena segue indicações personalizadas, as zonas urbanas não são identificadas pelos pont...