segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Tia Jane, para sempre a professora


No quarto da Vó Cinda, Lili sempre escolhia dormir na cama do lado esquerdo, abaixo do quadro de um Jesus melancólico que povoava as suas indagações sobre a vida e sobre o mundo. Encostada na parede azul ficava uma cama cor amarelo claro de ferro, com uma cabeceira vazada com barras arredondadas, parecendo uma grade. A cama tinha lastro de molas e pular sobre ela era a primeira diversão do dia, era meu brinquedo de pula-pula particular. Então, eu me apossava da cama da tia Jane durante os dias da semana, quando ela não estava na fazenda ou quando ela viajava. Nossa divisão da cama respeitava os limites da gentileza familiar, misto de respeito pelos mais velhos e da hospitalidade para a qual éramos educadas. Nestas ocasiões, eu saltava para a cama da direita ou dormia em uma cama improvisada no chão, sobre o tapete de couro em frente ao guarda-roupa da vó Cinda.

Tia Jane nas primeiras lembranças da Lili era uma mulher não muito alta, de cabelos fartos, muito longos, pesados e de uma linda cor castanho escuro. Nela tudo parecia charmoso e de bom gosto. Usava umas tiaras no cabelo, faixas ou lenços com os quais os amarrava em dias de calor. Ela fazia gestos amorosos na mesma intensidade com que usava sua franqueza em apontar o que não gostava e na firmeza em nos corrigir, sobretudo, o nosso modo de falara língua portuguesa. Era a professora que se sobressaia, muitas vezes, mais que a tia. Educava-nos na mesa, no comportamento com os outros e na higiene pessoal.

Todo ano, durante as férias vinham os primos mais velhos passar as férias na casa da fazenda. As tias cuidavam nessa época do ano de fazer grandes mudanças e faxinas. E para nos manter ocupados, sobretudo os menores, nos convocavam para tarefas rotineiras: ajudar com retirada de uma montanha de lixo, um amontoado de muitas folhas dos cinamomos, depois de varrido, o pátio fica impecável. Lavar copos e arrumar a mesa, tarefa solitária da Lili, por ser a única menina na casa grande parte do ano, pois as atribuições do chamado mundo feminino eram todas pra mim. Com a Tia Jane arrumávamos o jardim, seguindo o capricho com as formas e alinhamentos que ela determinava, tudo tinha uma simetria, como a distribuição das mudas de amor-perfeito e cravinas nos canteiros, circundando o pé de roseira ou do jasmim, que ficavam centralizados e adornados por outras flores. Ela primava pela ordem caprichosa das coisas do mesmo modo que vigiava a concordância nominal e verbal da nossa fala.

Nestes dias de férias, tia Jane não deixava escapar os erros de português da gurizada, alguns alunos dela no Colégio Estadual. O gosto pelas combinações se sobressaia no modo com que seguidamente rearranjava os quadrados de tecido com crochê para montar uma colcha que minha vó confeccionava. Nestes momentos, durante as conversas,  ela aproveitava para também fazer adequações linguísticas na fala da vó Cinda. Explicava a ela que agora com a circulação de ônibus intermunicipais, passando na estrada em frente à fazenda, não se poderia dizer que a pessoa apeava do ônibus, e com  seu ar professoral, insistia: mãe se diz "desembarca". Minha vó seguindo à risca a aula dada pela tia Jane, um dia quando um compadre apareceu à cavalo para fazer uma breve visita à fazenda, minha vó correu imediatamente para recebê-lo, e no apuro de ser gentil, dizia: "desembarque, desembarque".

O cuidado com as formas era repetido na hora de picar as frutas para famosa salada de frutas, tradicional sobremesa do dia primeiro ano. Ela cortava as frutas e revisava o corte dos pedaços, buscando a delicadeza harmoniosa dos tamanhos. Por esta razão, os mais velhos lembravam como ela tinha manias da tia Dina, tia da minha vó Cinda, dado o hábito dessa tia de picar batatas ou mandiocas em quadrados similares. Deste zelo com a harmonia das coisas, tia Jane também instituiu na Torta de Nescau como uma nova sobremesa de fim de ano e, ainda, para essa e outras ocasiões de reunião familiar, o creme de camadinhas: uma camada de gelatina, uma de creme inglês e, por último, a camada de merengada. Na culinária fazia poucas coisas, mas se esmerava pela apresentação do prato, por isso o creme de camadinhas era colocado em cremeiras individuais transparentes, decoradas com círculos coloridos, que se confundiam com as camadas do creme. 

Lili via nela um jeito de ser elegante e charmoso, era o estilo de uma professora de francês, já que ministrava também língua francesa na escola, reproduzido no modo de vestir: vestidos retos e discretos, conjuntos de casacos e calças combinando, de cores variadas e muito bem ajustados ao corpo pequeno. Usava batom de cores alaranjadas e rosadas, que passava até para ir na farmácia do meu tio, poucos metros de distância da casa onde morava na cidade. No seu guarda-roupa havia uma prateleira cheia de sapatos mocassim com salto médio de madeira, ela usava uma cartela de cores desses sapatos: preto, azul-marino, marrom, vermelho, verde escuro, bege, amarelo... cores que ainda vivem nas memórias de Lili. 

Era uma mulher de beleza diferente, com um nariz adunco que não combinava com a doçura do seu sorriso, porém combinava perfeitamente com a franqueza habitual como expressava suas opiniões. Tinha lá suas implicâncias, e um desejo permanente de ver tudo bonito. Era uma personalidade que de fato gostava de ser quem era, nesta certeza, solicitou mudança do nome que constava na certidão de nascimento. O cartório havia registrado como seu nome: Janiz, mas ela se reconhecia como Jane. O jeito didático como ordenava o seu mundo, suas aulas, seu trabalho docente, era um estilo de ser. Inspiração que Lili carregou consigo e que certamente transformou a escola em um sonho ainda maior para sua vida de menina do campo.

 




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