sábado, 12 de setembro de 2020

Maria baila um xote

Sentada na lateral da mesa, Lili desenhava paisagens sob a luz do Aladin, o lampião à querosene que iluminava a cozinha. No entanto, para olhar bem dentro das panelas sobre o fogão à lenha, era preciso segurar um castiçal com uma vela branca um pouco mais que altura do peito, para ter uma maior claridade e analisar o ponto da comida, nosso jantar que fumegava no calor do fogão. Maria começava o jantar ouvindo o programa de músicas gaúchas na rádio Jaguari, no horário do final da tarde, antes do programa Voz do Brasil. Assoviava uns trechos de alguma vanera ou um xote, pois a música tornava a tarefa de fazer o jantar um evento, principalmente, quando estávamos em poucas pessoas na casa e jantávamos todos na mesa da cozinha. Maria sentia-se acompanhada e integrada aos demais que faziam seus afazeres em volta da mesa: Lili desenhava seu mundo de cenas da vida no campo, vó Cinda fazia o seu crochê e o Vergilino escolhia o feijão para o almoço do dia seguinte. Quando estava mais animada, por algum trago que tomava às escondidas, Maria bailava pela cozinha, me puxava de onde eu estava sentada e bailava comigo, sem deixar de dar umas gargalhadas ao ver que eu não conseguia acompanhá-la. A bebida soltava-lhe o pudor e a condição de empregada ficava-lhe menos definida.

Maria era um mulher magra, de cabelos curtos e crespos, nariz achatado e uma pele com os poros cheios de cravos, quando caminhava parecia levitar, era ligeira e risonha, mas eram as gargalhadas sua marca registrada. Elas eram reconhecidas de longe, pois achava graça das nossas brincadeiras, das nossas brigas e das nossas invenções. Sabendo do espantada que ela era, preparávamos várias formas de assustá-la, como colar um lençol branco por cima e fingir ser um fantasma. Em silêncio e no escuro, escondidos no último quarto da casa, lá no final do longo corredor, começávamos a chamá-la, ela corria para nos atender e ao abrir a porta aquele que estava vestido com lençol se atirava sobre ela. Maria dava um grito ensurdecedor e depois desatava a dar risadas e nos chamar de medonhos. 

No inverno Maria fazia bolinho de chuva enquanto jogávamos uma partida de canastra ou dorminhoco. De vez em quando chegava perto da mesa da sala de jantar para espiar o que fazíamos, dava uma olhada no jogo, dava uma provocada com o jogo de cada um, e soltava mais uma boa gargalhada com as nossas respostas. Ela se dava tempo para nos apreciar, parecia não ter pressa de terminar com a pilha da louça do almoço ainda sobre a pia da cozinha. 

Muitos domingos da minha infância assim como dos meus irmãos e primos eram programados pela Maria em mais aventura, o que incluía um acampamento com direito a passar o dia no meio do mato, entre pitangueiras e maricás, uma pescaria no açude do campo das vacas mansas, um piquenique durante as tardes de domingo, regado a bolo, k-suco ou um empadão que ela preparava especialmente para a ocasião. Uma vez Maria nos levou até o córrego na saída do açude grande, a água descia por baixo de uma ponte de madeira, pois a estrada ainda não era asfaltada, ali se pescava lambaris e se podia correr atrás das preás que se escondiam no matagal. A gente podia pescar no alto da ponte, sob vigilância dela, que cuidava dos carros. Enquanto não avistava os carros vindo pela estrada, ela bailava sobre a ponte e cantava o xote laranjeira, sua música preferida, rodava feliz com sua saia plissada cor de rosa já bem desbotada. Ela se divertia conosco fazendo aquelas tardes de domingo mais intensas e inesquecíveis.

Maria me ensinou os primeiros pontos de tricô, me auxiliava cada vez que eu caia no choro porque perdia os pontos na agulha e o tricô ia se desmanchando. Uma noite, cansada e sem saber onde iria dormir com a casa lotada de gente, adormeci na cama dela, ao levantar vi que havíamos dormido uma para o lado da cabeceira da cama e a outra para lado dos pés. Ela dava um jeito de eu não voltar para casa dos meus pais, porque queria seguir ali na casa da Vó Cinda, com as tias e os primos. 

Mas Maria não só nos alegrava com os passeios domingueiros, ela criava receitas, algumas exóticas para nosso paladar de criança, como omelete com as beldroegas do jardim, vísceras de ovelha empanadas e o doce de geleia de mocotó, comíamos como se fosse uma gelatina de doce de leite. Era especialista em doce de laranja azeda em calda, pudim de leite e carreteiro. Com ela, aprendi comer coalhada com açúcar no café da manhã e arrancar com mãos na lavoura as batatas para sopa da noite. Ensinamentos e sabores que ela nos oferecia como novidade, e assim também nos expandia o paladar.

Uma vez por mês ia visitar seus pais e ver seus filhos, alguns muito pequenos, talvez por esta razão nos oferecia tanto afeto e acolhida. Vi lágrimas nos olhos dela por saudades dos filhos e também por um amor mal resolvido. O vento às vezes me traz o eco das gargalhadas generosas da Maria se divertindo com a gurizada da casa. Se o Vergilino era nosso guardião, a Maria era nossa recreacionista rural, por isso ambos são memórias felizes da Lili. 

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