O hospital já estava na lembrança remota da Lili, de quando aos quatro anos foi levada por uma das tias paternas para conhecer, da janela lateral de um dos quartos, o irmão que acabava de nascer. As visitas estavam proibidas para os pequenos, minha birra e insistência levou a que encontrassem um modo de eu estar lá comprovando o nascimento do meu irmão, afinal tudo aquilo era um evento novo na minha vida. O santo exposto naquele saguão, tão discreto no seu pedestal, zelava os doentes. Enquanto eu olhava para ele, tinha a sensação de que passava despercebido pelas pessoas que chegavam ao hospital, como se ninguém se importasse com o lugar sagrado que ele ocupava naquele recinto. É, talvez toda a descrição da sua presença era ideia ali: estar na vigília dos cidadãos doentes, aflitos, desesperançados.
Na escola, o São Vicente Ferrer tinha seu lugar de honra na ampla área da entrada do prédio, era maior, destacando-se naquela ampla parede verde. Lá estava a postos nos recebendo e nos vigiando, para os mais crentes e tementes a Deus, nos protegendo. Ele estava ali, desde antes de Lili iniciar a segunda fase do primeiro grau. Desconfio que colocar o santo na escola foi obra da dona Maria Cony, a nossa eterna professora ilustre, era a diretora do colégio quando iniciei o quinto ano. Uma senhora altiva, estatura média, cabelos curtos e afofados, usava uns óculos de lentes grossas com aro preto quadrado, complementando a sua figura sóbria. Ela tinha o porte de grande dama, geralmente, andava vestida com terninhos escuros e bem alinhados. Muito religiosa, era comum vê-la ao final da tarde indo em direção à igreja, quase sempre acompanhada de sua irmã, dona Noemi, que tocava o órgão durante a missa.
Dona Maria e Dona Noemi e a irmã Maria Clara moravam em uma casa antiga, ao lado da prefeitura, de frente para a praça central. Seguidamente, tia Jane me enviava para buscar as famosas e deliciosas queijadinhas feitas por dona Noemi. Na entrada lateral, um portão de ferro dava acesso ao corredor, coberto de folhagens, por ele se chegava a uma área que lembrava um jardim de inverno. Na frente, havia um portal com um pequeno saguão antes da porta principal, decorado com ladrilhos de cores sóbrias, lembravam-me os da sala de jantar da casa da fazenda, então toquei a campainha. Lembro de sentir um certo constrangimento ao tocar, mas entrei na sala de estar e aguardei tranquilamente a encomenda. Durante a espera, eu fiquei analisando o ambiente, tudo era como elas, bem arrumado e discreto. A vergonha vinha do fato de que uma vez e outra eu me juntava à Tina, Jeane e Cecília na traquinagem de tocar a campainha da casa das Cony, para logo sair correndo às gargalhadas até conseguir dobrar a próxima esquina e desaparecer da vista das Cony. Tocar a campainha era uma brincadeira boba, nem sei bem do que achávamos graça, mas sabíamos que havia na cidade três lugares nos quais a campainha nunca falhava, sempre funcionava: a casa das Cony, a casa do padre e a farmácia da tia Ivoloy.
Na igreja, claro, o santo espanhol São Vicente Ferrer ficava no alto da sacristia, iluminado pela luz tênue das velas no centro do retábulo. No seu pedestal recebia também a luz indireta e amarelada das lâmpadas das luminárias redondas, de vidro leitoso e dispostas no entorno da peça da sacristia, que seguia a forma do semicírculo da construção. Ele figurava de modo harmonioso com o silêncio da igreja e se destacava entre os demais santos que se espalhavam no entorno do altar e nas laterais.
Na quarta série nos ensinavam sobre a história do município. Lili, então, descobriu que o santo padroeiro foi trazido pelos Jesuítas para aquelas terras entre os rios Ibicuí, Toropi e Jaguari. Nos primeiros tempos de ocupação, a localidade foi nomeada de Redução de São José, que deu origem primeiro à vila e depois ao município. Contavam na escola que na praça central havia muito gado pastando e também comentavam que, no terreno da casa da esquina onde moravam os médicos da cidade, haviam localizado um antigo cemitério indígena.
A estância de gado São José estava sobre a guarda e administração dos jesuítas da Redução de São Miguel, um grupo de índios guaranis se instalaram naquelas bandas, ajudavam no cuidado com o rebanho. A história missioneira da cidade tinha uma magia para Lili, aquele passado longínquo e pouco conhecido parecia tão importante, tornava a sua cidade um lugar no mundo e na história. O mesmo santo trazido pelos jesuítas continuava zelando por todos na igreja, situada em frente à praça, ela foi construída naquela mesma vasta área de pastoreio do gado da Estância de São Vicente, que adotou não só o santo como padroeiro como o seu nome ao ser elevado a município em 1876 e passando então a se chamar de São Vicente do Sul.
👏👏👏🙏🙏🙏,lembra cada detalhe
ResponderExcluirBeleza de texto, parece que estou vendo tua cidade, Lili.
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