domingo, 7 de agosto de 2022

Treme Terra, o propagandista do cinema

A cidade da Lili tinha encantos que iam sendo descobertos por ela como novidades típicas da vida urbana, sempre em contradição com a vida silenciosa e lenta que os tempos vividos no campo haviam impregnado na sua alma. Aos doze anos meus interesses voltavam-se para diversões que só a cidade podiam me proporcionar. Eu vivia conflitos constantes, dividida entre o campo e a cidade. Eu sabia que o campo não sairia de mim, e a cidade eu precisava ainda descobrir. 

Toda sexta-feira minha mãe arrumava sacolas com roupas para lavar com a água límpida e doce tirada de balde do poço da nossa casa lá nas terras da fazenda. Ela juntava as roupas da casa em um saco de viagem e nos carregava para rodoviária depois do almoço. No sábado era roupa estendida por todos lados, debaixo da parreira, nos arames do varal no pátio, onde podia ela distribuía as roupas para secar. Queria aproveitar o sol, o vento e água doce do poço.

A água que corria nas torneiras da casa do chalé era salobra, como a de todas as outras casas da cidade. Quando se fervia, na superfície boiava uma película embranquecida criando, ao longo do tempo, crostas brancas dentro das chaleiras. Além disso, a água salobra não ajudava o sabão fazer espuma suficiente para uma lavada eficiente de louças, menos ainda das roupas, tarefa que minha mãe se dedicava ao extremo, nossos uniformes precisavam ficar alvos para a segunda-feira. Mas a ida para o campo nas sextas-feiras à tarde me tirava de certas diversões, como ir ao cinema, ver os jogos na quadra da praça à noite, comprar sorvete de creme e morango sábado de tarde no bar do seu Nelson ao lado da rodoviária e depois conversar com as amigas nas escadas do coreto.

O cinema da cidade era mais frequentado por guris e homens, não muito recomendado para as meninas, talvez porque lá dentro ficava escuro demais quando iniciava o filme. As meninas entravam sempre acompanhadas dos pais, irmãos ou em grupo. Um vez e outra vinha uma peça de teatro para cidade e se apresentavam no palco do cinema. Então, a escola nos levava, foi assim que entrei pela primeira vez no cine teatro Carlos Gomes, situado em frente à praça, quase ao lado do correio. A cor do prédio tornava impossível não reconhecê-lo de longe, era pintado também naquela cor azul calipso dos armários da cozinha da casa da fazenda. 

Nada superava assistir uma peça de teatro ou ver um filme quando se abriam aquelas cortinas de cetim vermelho escuro. Elas iam abrindo lentamente assim que começava a tocar uma música, e nos enchia de expectativas, fosse pela peça, fosse pela sessão do filme.

O funcionário do cinema fazia todo serviço, trabalhava na bilheteria, vendia os doces, andava com a lanterna procurando poltronas vazias para nos acomodar quando as luzes se apagavam. Quando algum filme entrava em cartaz, ele saia pelas ruas da cidade carregando sobre o corpo um cavalete com cartazes de filmes pendurados. Cada vez que a gente cruzava por ele ficávamos tentando ler o nome do filme. Divulgava-os na parte da frente e nas costas, aproveitando para fazer dois anúncios ao mesmo tempo. 

João Treme Terra cruzava a praça em todas as direções, ou andava várias vezes na quadra da rodoviária, parando de vez em quando para descansar na banca de revistas, na esquina da praça, no cruzamento da rua 7 de Setembro com a General João Antônio. Treme Terra tinha este apelido porque tinha a língua presa, o que dificultava clareza na sua fala, se atrapalhava com a dificuldade que tinha para que o entendessem, se tremia todo. Era muito magro, queixo proeminente, olhos espantados. Algumas crianças temiam sua presença. Lili desde pequena se fascinava com a função que o Treme Terra cumpria. Para ela, ele era nada mais nada menos que o grande propagandista do cinema. Foi assim que o identificou aos sete anos, tentando explicar quem ele era para o irmão menor que se assustou com a sua figura.

Certo dia, Lili foi autorizada a ir ao cinema assistir um filme do Teixerinha, chamado "Ela tornou-se Freira", pois os filmes dele faziam muito sucesso. No cine teatro Carlos Gomes passavam só filmes de faroeste ou filmes do Teixerinha. A tela do cinema me fascinou do mesmo jeito que a tela da televisão em preto e branco que a vó Cinda ganhou de aniversário, pois juntas descobrimos as novelas. As telas e palcos despertaram em Lili o desejo de ser artista. A cidade então começava a me colocar no mundo de outro jeito.

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