Lili saía apressada da casa da Dona Dinorá, embora ela fosse a vizinha mais próxima, com quem dividíamos a cerca do jardim. Do nosso lado um pé de roseiras de cachopas frondosas, na cor de um rosa delicado; do lado dela, dois pés de palmeiras com uns cactus que desciam pelo tronco e floriam em setembro, flores escarlates grandes e esplendorosas. Já era próximo do meio-dia, Lili buscava a receita de um bolo de chocolate chamado Nega Maluca. Dona Dinorá dizia que era muito saboroso e que havia copiado a receita de um programa de rádio. Eu tinha em mim todo um gosto por aprender novidades em tudo, e muito especialmente, na culinária. Mas minha pressa era porque precisava tomar banho, almoçar e estar na escola no início da tarde.
Eu sempre chegava mais cedo e me reunia com as colegas. Sentava em um dos degraus da escada da entrada principal da escola, ali conversávamos antes da sirene tocar. Lili alimentava as ideias com as narrativas dos namoros das colegas para elaborar a trama das novelas que vinha escrevendo nas folhas de um caderno velho do ano anterior, inspirada nas fotonovelas da revista Grande Hotel.
O banho precisava ser rápido porque a comida estava na mesa. Minha mãe era pontual, minutos antes de dar meio-dia no relógio despertador, acomodado em uma das prateleiras laterais do armário aéreo, ela já estava gritando pelos guris, sempre atrasados, envolvidos com alguma brincadeira no pátio, em geral, com o jogo de bolita no terreno na lateral da casa.
O Lindolfo já estava nos fundos da cozinha esperando as sobras de pão e de gordura que minha mãe juntava para ele. Costumava recorrer a vizinhança buscando o que restava da comida do dia, mais ainda quando não encontrava um pátio para capinar. Era um homem baixinho, vestido com uma calça surrada, enrolada na altura do tornozelo e apertada na cintura com um pedaço de cinto. Usava um chinelo gasto pelo tempo, um chapéu de feltro amassado cheio de furos e uma camisa encardida, às vezes, andava com um casaco muito maior que seu corpo miúdo. Tinha fama de invocado e muitos o chamavam de "taruginho". Vivia de pequenos serviços nos pátios das casas, e tudo que lhe davam era para alimentar os filhos.
Na volta da escola, senti uma dor forte na garganta, febre e cansaço. Lili tinha histórico de doenças típicas da infância: sarampo, catapora, rubéola. Cada vez que alguém aparecia na escola com sintomas de algumas delas, sinal de que também tinham se instalado no corpo de Lili. Eu não era frágil nem magra, atraia vírus só de saber que eles andavam soltos no ar, em surtos que apareciam de tempos em tempos.
No menor sinal de desconforto, minha mãe era muito precavida, cruzava a rua e nos levava no posto de saúde. Cedo da manhã lá estávamos eu e ela sentadas na sala de espera. Era um espaço amplo com bancos de madeira encostados contra as paredes. O chão com ladrilhos geométricos me deixava tonta cada vez que me fixava nas formas, enjoada com todo aquele mal estar, a vontade de fugir dali rondava meus pensamentos febris. Lili não temia os médicos, nem a ameaça da injeção. A mão de meu pai e a da tia Ivoly costumavam ser leves quando aplicavam injeções, e eu confiava neles.
Entrei meio acanhada na sala bem iluminada da médica, predominava o ambiente claro, dava sensação de que estava tudo muito limpo e higienizado. A médica levantou a cabeça e nos cumprimentou com a cordialidade de sempre, pois já nos conhecíamos. Meu pai cuidava do gado da chácara do marido dela, o médico de todos os partos da minha mãe. Tinha cabelos castanhos claros quase na altura do ombro, levantou calmamente e veio em minha direção. Antes de me examinar, com o seu sorriso contido e a voz serena me olhou e perguntou: o que houve com esta moça? Bastou para que eu desfilasse uma quantidade de sintomas, descrevia-os com detalhes, eu era boa nisso. Ela simpatizava com a minha destreza em falar e explicar. Eu estava com caxumba, seriam dias em casa para não transmitir para os colegas. Meus irmãos, por outro lado, certamente não escapariam da quarentena.
Sempre que ficávamos amolados, lá ia minha mãe no posto ou no consultório na casa da médica. Era atravessar a praça e a casa dela estava ali, vizinha da casa paroquial e da igreja. Todo final de tarde era possível vê-la, religiosamente, após a última batida do sino, entrando na igreja. Para consultar na casa, era só entrar por um portão baixinho de ferro, contornando o jardim por uma calçadinha de pedra e tocar a campainha, caso a sala de espera já não estivesse aberta.
A médica cuidava de todos nós, sua especialidade era pediatria. Naquelas salas de espera do posto ou da casa dela haviam muitas mães e crianças. Mas também muitas mulheres sozinhas, consultando para assuntos da intimidade feminina. Para esses assuntos, também minha mãe recorria as prescrições da médica, até mesmo quando menstruei pela primeira vez ela foi se instruir com a médica, tal era o grau de confiança depositado na Dr.ª Daily, a pediatra que cuidava, principalmente, da saúde de toda criançada da cidade.